Uma das mais famosas experiências sobrenaturais envolvendo os papas da Igreja refere-se à visão que o Papa Leão XIII (1878 - 1903) teria tido, durante a celebração de uma missa, sobre um período futuro de extremada ação demoníaca sobre a Igreja de Cristo. A visão teria ocorrido em alguma data entre 1884 e 1886 e, desde então, foi objeto de diferentes versões e muitas descrições fantasiosas.
Na obra 'Um Exorcista Conta-nos', do Pe. Gabrielle Amorth, famoso exorcista do Vaticano, encontra-se a transcrição de um texto do Pe. Domenico Pechenino, publicado em 1955 na revista Ephemerides Liturgicae, que relata os fatos ocorridos na condição de uma testemunha ocular dos mesmos e descritos da seguinte forma:
'Não me lembro exatamente do ano. Uma manhã, o grande Pontífice Leão XIII tinha celebrado a santa Missa e estava a assistir a uma outra de ação de graças, como de costume. De repente, o papa virou energicamente a cabeça e passou a fixar intensamente alguma coisa acima da cabeça do celebrante. Manteve-se assim imóvel por algum tempo, sem pestanejar, mas com uma expressão de terror e de admiração, tendo o seu rosto mudado de cor'.
Finalmente, voltando a si, o papa bateu ligeira mas energicamente com a mão, e levantou-se. Dirigindo-se ao seu escritório particular, seguido por auxiliares preocupados e ansiosos, isolou-se ali e assim teria redigido as chamadas orações leoninas, uma dedicada a Nossa Senhora e a outra dedicada a São Miguel Arcanjo, como medidas de proteção da Igreja contra a ação das forças malignas. Em seguida, promoveu a rápida divulgação destas orações em todo o mundo, conclamando a sua oração contínua pelos fieis, prostrados de joelhos e ao final de cada Santa Missa, e por toda a Igreja. Mais tarde, elaborou ainda um próprio e específico ritual de exorcismo, que frequentemente utilizou durante o seu pontificado.
Todos estes fatos demonstram que o Papa Leão XIII teve certamente uma visão espantosa dos espíritos infernais naquela ocasião e, com tal intensidade e clareza sobre eventos próximos e deletérios sobre a Igreja oriundos da mesma, que o levou a escrever de pronto as orações e até mesmo um ritual de exorcismo. A visão, por outro lado, certamente produziu um grande impacto no Santo Padre, a ponto de fazê-lo resguardar da mesma como um segredo quase particular. Assim, é bastante razoável assumir a veracidade e o caráter extraordinário da visão; outra coisa é expressar o real conteúdo da visão.
Em carta pastoral dirigida à comunidade de Bolonha, na quaresma de 1946, o cardeal Natalli Rocca menciona explicitamente que ouviu, por várias vezes, do Mons. Rinaldo Angeli, que exercera a função de secretário particular do Papa Leão XIII, que o papa era realmente o autor das orações e que Leão XIII tivera uma visão de uma legião de espíritos infernais precipitando sobre a cidade de Roma. Esta revelação é bastante pertinente com o contexto das mensagens de Fátima e com aquilo que o Papa Paulo VI referiu-se como sendo a 'fumaça de Satanás' adentrando o vértice da Igreja.
No contexto da visão, o Papa Leão XIII teria sido testemunha também de um espantoso diálogo entre Jesus e Satanás, no qual o demônio teria solicitado a Jesus mais tempo e poder para destruir a Igreja na terra e que o Senhor teria concedido esse poder e esse tempo (fixado comumente como tendo sido um período de 100 anos) para o inferno exercer a sua ação demoníaca extremada sobre a Igreja de Cristo. Não existe uma fonte confiável para os termos deste diálogo sobrenatural e a descrição comumente publicada parece ser bastante inverossímil.
Mais recentemente, Kevin Symonds realizou uma exaustiva reavaliação histórica destes fatos na obra 'Papa Leão XIII e a Oração a São Miguel' (ainda sem versão em português), na qual apresenta, em primeira mão, uma homilia sobre a visão do Papa Leão XIII atribuída ao Cardeal Pedro Segura y Saenz. Nesta homilia, o cardeal assegura que o diálogo é verdadeiro (não necessariamente nos termos comumente publicados) e que nele Satanás, movido pela soberba diabólica, teria proposto a Jesus o desafio de destruir a Igreja na terra, se lhe fosse outorgado mais tempo e poder sobre as criaturas sob a sua influência maligna. Jesus, então, concede ao demônio tais condições, cujo propósito sabe ser inútil e inepto. Entretanto, o autor mencionou na homilia que o tempo pedido e posteriormente concedido não teria sido 100 anos como normalmente exposto (ou 75 anos, em outras versões), mas de 60 anos.
A extrapolação direta deste evento e de suas clássicas interpretações no contexto da história da Igreja ao longo dos séculos XX e atual parecem desdizer os fatos, pelo menos em termos. O prazo de 60 anos parece ser bastante irrazoável no conjunto destas previsões. Mas há que se considerar não apenas o prazo em si, mas o próprio início desse prazo. Parece que o próprio Papa Leão XIII aludiu para essa questão, quando afirmou que o diálogo referia-se a um tempo futuro e não ao tempo em que fora dado a conhecer. Isso parece bem coerente: se, de um lado, Jesus concedia ao inferno a sua obra satânica de tentativa de destruição da Igreja, dava à Igreja o conhecimento dessa propensão do inferno, no sentido dela se preparar para enfrentar as ciladas do Maligno. Isso é bem explicitado pela ação imediata do Papa Leão XIII na elaboração da oração a São Miguel e de um exorcismo ritual, como armas espirituais prévias da Igreja contra a ação futura do inferno contra ela.
Outra consideração relevante é fazer, na total impossibilidade humana de se tentar compreender a natureza e o desfecho de um tal diálogo sobrenatural, uma abstração destes fatos à luz de potenciais eventos bíblicos correlatos. Embora excepcionais, são registradas nas Sagradas Escrituras arguições diretas entre o demônio e os Céus, como nos casos das tentações de Jesus no deserto (Mt 4, 1-11) e das provações impostas a Jó: 'Um dia em que os filhos de Deus se apresentaram diante do Senhor, veio também Satanás entre eles' (Jó 1,6).
Satanás pediu a Deus submeter Jó à prova e recebeu do Senhor poder para isso, de modo que pudesse atentar contra todos os seus bens, mas não à sua própria pessoa (Jó 1,12). Diante de todas as fatalidades que se seguiram contra os seus bens e contra os seus filhos, 'Jó não cometeu pecado algum, nem proferiu contra Deus blasfêmia alguma (Jó, 1,21). Uma segunda vez, Satanás retornou à presença do Senhor (Jó, 2,1), depois de 'passear pelo mundo' (Jó 2,2) e incitou novamente a Deus a perda do seu servo, se lhe fosse possível infringir o mal 'nos ossos e na carne' (Jó 2,5). Dado esse poder, Satanás vai ferir Jó com uma úlcera maligna, 'desde a planta dos pés até o alto da cabeça' (Jó 2,7). Jó superou, mais uma vez, essa provação tremenda e foi contemplado por Deus com bens e valores muito maiores que os de antes; Jó teve outros sete filhos e três filhas e, depois disso, 'viveu ainda cento e quarenta anos e conheceu até a quarta geração dos filhos de seus filhos. Depois, velho e cheio de dias, morreu' (Jó 48, 16-17).
Neste contexto, a provação da Igreja tenderá a ser, por analogia, semelhante a de Jó e, portanto, será tremenda. Mas, como Jó, a Igreja triunfará no final: 'Porque guardaste a palavra de minha paciência, também eu te guardarei da hora da provação, que está para sobrevir ao mundo inteiro, para provar os habitantes da terra' (Ap 3,10); e ainda: 'Esses são os sobreviventes da grande tribulação; lavaram as suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro' (Ap 7,14). Ou, nas palavras de Nossa Senhora em Fátima: 'Por fim, o Meu Imaculado Coração triunfará'.
A provação da Igreja deverá, nesta analogia, ocorrer também em duas etapas distintas (e, neste caso, a visão do Papa Leão XIII referir-se-ia ao primeiro diálogo de Satanás com Jesus sobre a destruição da Igreja e que contemplaria, portanto, um primeiro tempo de provações de 60 anos). O prazo total concedido seria, portanto, de 120 anos: primeiro, as provações afetariam os bens da Igreja (particularmente incidindo sobre a doutrina católica e os fundamentos da fé cristã) e os filhos da Igreja (os fieis da Igreja Militante). O cenário propício à ação diabólica neste primeiro tempo seria, então, o advento das grandes heresias, a perseguição aos cristãos, o vilipêndio da sã doutrina, as duas grandes guerras e os infindáveis conflitos e matanças que se disseminaram pelo mundo inteiro. Mas a Igreja continuou sendo ainda a Igreja de Cristo; mas abandonou a Oração de São Miguel; mas abandonou o exercício dos exorcismos, que passaram a ser vistos como práticas excepcionais ou obsoletas; mas abandonou os contrapontos dos Céus ao influxo das forças diabólicas.
Eis que se abriram então as portas para um segundo cenário de provações, muitíssimo mais tormentosas e difíceis, pois tratam-se agora de provações que atingem a Igreja na sua carne e nos seus ossos, desde a planta dos pés até o alto da cabeça, ou seja, afeta o fiel mais desavisado até o vértice do poder eclesiástico; é interna, abrangente e profundamente dolorosa (como uma úlcera maligna). Não foi provavelmente neste contexto a mensagem mais angustiante dada por Nossa Senhora em Fátima? (a data de 1960, a qual se referiu, não teria sido uma data limite das primeiras provações?).
Os ataques e as perseguições já não são mais externos; nascem e se alimentam dos cismas internos e da dilapidação crescente dos valores da sã doutrina pelos seus próprios expoentes; a indiferença ao pecado é joio que consome e asfixia o trigo; a perplexidade é imensa e a fé tornou-se frágil e vacilante em muitíssimos. Neste terreno minado, a perda de acesso aos sacramentos e a supressão do Santo Sacrifício durante a atual pandemia parecem constituir uma inflexão ainda mais tenebrosa no apogeu dessa tormenta. Será que os eventos não tenderão a uma precipitação tremenda nestes nossos tristes tempos? 120 anos não parece ser hoje, muito próximo, o nosso limite de tempo da visão do Papa Leão XIII? Pode ser que estes tempos estejam ainda além um pouco. A única certeza de tudo isso é que a barca de Pedro vai atravessar este mar revolto e chegar, enfim, num dia glorioso, a um porto seguro.