quinta-feira, 18 de agosto de 2016

CARTAS A MEU PAI (VII)

Pai:

A igrejinha estava imersa na obscuridade, embora lá fora o sol ainda estivesse a pino. Tive que me acostumar com as sombras até divisar os dois personagens presentes. A velha senhora estava ajoelhada logo no segundo banco. O homem estava sentado quase ao final da igreja, se abanando com uma espécie de lenço. Na verdade, ele estava sentado meio de lado, aparentemente incomodado com alguma coisa. A senhora permanecia quase que imobilizada de joelhos, envolvida completamente em sua oração e recolhimento.

De alguma forma, eu sabia que aquele encontro, aparentemente fortuito, aparentemente trivial, era um complemento de duas vidas que se fechavam no plano dos dias e diante a Vossa misericórdia infinita. Nada para Vós ocorre ao acaso, nada se faz, se fala ou se pensa sem que engrenagens espirituais complexas e extraordinárias sejam mobilizadas e encaixadas de forma admirável para produzir frutos de justiça ou de salvação. Nada é tangido pelo tempo e pela graça sem uma finalidade ensurdecedora que se move do Céu. Mas, para a maioria dos homens, a imensa maioria dos homens e mulheres deste mundo, tudo parece ser fruto das circunstâncias e contingências do acaso.

M.D. continuava a sua oração. Estava na quinta ave-maria do terceiro mistério gozoso. Seus lábios moviam silenciosa e harmonicamente, embebidos de cada palavra. Seu pensamento, naquele momento, não. Havia abandonado o aconchego da igrejinha e voado com a preocupação mundana da necessidade de achar a receita de um certo bolo de cenoura. Seus olhos percorreram a imagem do Crucificado no altar, sem percepção de detalhes ou um gesto de amor, mas na inteira absorção de pousar os olhos no reflexo vazio de quaisquer imagens.

Lá atrás, D. tossiu rapidamente e o ar se impregnou do ricochete do gesto. O som se esvaiu na imensa quietude da nave, mas uma espécie de reverberação continuou percorrendo as alas entre os bancos e as paredes adornadas com as imagens da via crucis, espraiando-se em todas as direções do templo. Por um momento, se endireitou no banco e olhou na direção do altar, depreciando o fato do crucifixo parecer desproporcional ao próprio altar, quase que 'sumido' no espaço central em branco. A distração tomou a forma da figura da senhora que rezava no segundo banco, depois numa estação qualquer da via crucis e, em seguida, no gesto de enfurnar a cabeça entre as mãos e fechar os olhos.  

Ali, na obscuridade da pequena igrejinha, bálsamo do calor e da secura de mais uma tarde de verão, dois dos Vossos filhos construíam tempos e memórias de vida e eternidade. A senhora investia agora, muito mais concentrada na oração, pelo quarto mistério do Rosário. O homem se sentia devidamente refrescado e se preparava para encontrar a família lá fora para visitarem qualquer coisa mais daquele lugar de uma parada não obrigatória. Na toada da vida, que importava a reza diária do terço da velha senhora ou o descanso propício do turista de última hora? Não era apenas mais um dia na vida cotidiana de todos nós, um dia absolutamente comum?

Não, na verdade, não. Não seria um dia comum; pelo contrário: o último dia da vida de um homem é absolutamente incomum. O livre arbítrio não vai poder mais construir qualquer gesto ou distração, nem controlar o olhar ou a tosse, nem optar pela oração ou pela sombra refrescante de um lugar. Tiveram ali a visão do Crucificado, a última chance de estar diante dEle. O homem se levantou e saiu, seguido pelo seu Anjo da Guarda que me dirigiu ainda um olhar que, definido na dimensão humana, emanava algo como um traço de dor. A senhora estava terminando o terço, o seu último terço, e o seu Anjo rezava junto com ela. Quando saí da igrejinha, o sol começava a se por no horizonte, ao final de um dia mais que comum para a maioria dos homens e absolutamente incomum para muitos outros.

R.

('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).