sábado, 27 de maio de 2023

A DEMOCRACIA PODE SER CRISTÃ?


Para São Tomás, as formas possíveis de uma sociedade são três: monarquia, aristocracia e democracia. A monarquia é o governo exercido por uma única pessoa; a aristocracia é a administração da sociedade por um grupo limitado de pessoas e a democracia é o governo do Estado por uma classe numerosa de pessoas (que expressam a 'vontade soberana' de um povo). Qual seria a melhor forma de governo dentre estas três opções ou, em outras palavras, o que seria mais proveitoso para uma dada sociedade, submeter-se ao governo de um só ou ao governo de muitos?

Em primeiro lugar, há que se considerar que não existe um regime social perfeito pois estamos falando de homens e dos pecados dos homens, que tendem a corromper todas as coisas e todos os cenários possíveis. A monarquia pode se aviltar como tirania; a oligarquia seria a corrupção direta da aristocracia e a demagogia conspurca e envilece quaisquer espasmos de democracia. A tirania, porém, representa também o fruto mais podre da corrupção da aristocracia e da democracia e tende a ser mais dolorosa e brutal sob o regime de alguns ou de muitos. Em quaisquer circunstâncias, entretanto, a tirania - seja de um só, de poucos ou de muitos - é o arbítrio mais monstruoso e o cenário mais pervertido da opressão e de usurpação dos direitos e deveres de qualquer povo ou sociedade. 

'Tudo para nós mesmos e nada para os demais parece ter sido, sempre e em qualquer lugar, a máxima vil dos seres humanos'

(Adam Smith)

Neste contexto, a premissa de refrear mais sólida e efetivamente a viabilização ou a implantação de um regime tirânico deveria constituir as bases e diretrizes de qualquer forma de governo. No altar das oferendas democráticas, vende-se o oráculo de que o equilíbrio entre os três poderes - executivo, legislativo e judiciário - modelados por princípios constitucionais de autonomia, independência e harmonia - garantem plenamente a sanidade e o livre exercício do regime. É bastante estúpido acreditar em quaisquer oráculos, mormente um de tal solicitude: se a tirania é, nesse caso, propiciada por muitos, é evidente que a mesma somente poderia ser exercida pelo conluio de muitos, engajados e aliciados pela mesma causa comum, com origens e atuações específicas nos três poderes constitucionalmente instituídos.

Quando este cenário se impõe, a corrupção da sociedade tende a ser sistêmica. E a decantada democracia das falsas liberdades e dos direitos ilimitados - seja qual for o seu apelido ou o seu engodo - mostra a real expressão da sua mímica brutal: uma sociedade em que alguns se governam sem restrição alguma; governam para si, para outros iguais, para a manutenção de um sistema completamente dominado pela imposição sem tréguas de suas ideias, interesses e perspectivas. E o povo, amordaçado e passivamente controlado, é um tributo sem vez e sem voz.

'O poder do homem para fazer de si mesmo o que bem quiser significa o poder de alguns homens para fazer dos outros o que bem quiserem'

(C. S. Lewis)

E dois elementos - siameses em sua gestação - alimentam e reforçam esse estado de coisas. O primeiro resulta da ideia de que a 'soberania popular' (?) é concretizada pelo sufrágio universal e pelo voto direto para a escolha dos seus governantes e representantes. Qualquer princípio de avaliação segura é baseada no critério inconteste de mérito: quem decide e delibera é o mais capaz. É a competência do cidadão comum que molda a escolha pelo voto? São os mais qualificados que assumem os cargos mais relevantes de governo? Na hierarquia dos poderes, são os mais preparados que ditam as normas e as prescrições aos demais? Na maioria das vezes, estes valores de referência tendem a ser exatamente o oposto, ditados por imposições de ordem econômica, ideológica ou corporativista e, quase sempre, pela associação extrema de todas elas.
  
'O que nós devemos respeitar é a vontade do povo e não os votos do povo; dar a um homem o direito de voto contra a sua vontade é fazer do direito de voto uma coisa mais valiosa do que a democracia que esse direito expressa'

(G.K.Chesterton)

O segundo elemento é traduzido pelo solapamento das instituições e pelo adensamento crônico do modelo que é sempre repetido, cada vez mais corrompido e corruptor. O sistema é sempre gerido pelo domínio da maioria sob quaisquer preços e medidas. As forças econômicas e ideológicas impõem toda sorte de tributos ou serventias aos poderes vigentes, dependendo do interesses imediatos. O que era apanágio, vira direito pronto e estabelecido. A reação intempestiva passa a ser refém do indiferentismo. O odor de esgoto se espalha e, de repente, torna-se tolerável. As regras e as leis, infringidas e conspurcadas, são meros fetiches de uma realidade que tende a se tornar extrema e tenebrosa. Os que a dominam, a exaltam como democracia. E ai de quem ousar confrontar suas sequelas e infortúnios... 

A democracia [este modelo falacioso de liberdade plena e do progresso do relativismo como forma de conduta permissiva e generalizada] não tem nada de cristã; não pode ser cristã alguma coisa que, irremediavelmente sujeita às vicissitudes humanas, tende a descambar em tirania [uma democracia cristã somente seria possível se fosse um regime de todos governado, em caráter irrevogável, exclusivamente pela Lei de Deus; fora isso, seria meramente mais um lugar comum das democracias de fachada]. Tais modelos de democracia não podem nunca fomentar a paz e a concórdia porque resultam sempre na imposição de ideologias, a ferro e a fogo, de muitos homens sobre outros tantos. Nenhuma democracia assim pode prosperar. Nenhuma democracia assim pode acabar bem. 

'É mais que evidente que o povo não pode conferir a outro um poder que ele próprio não possui; o verdadeiro poder só pode vir do alto, e é por isso que só pode ser legitimado pela sanção de alguma coisa superior à ordem social, ou seja, uma autoridade espiritual. Se for de outra maneira, será apenas uma contrafação de poder, um estado de fato que é injustificável por defeito de princípio, e em que não pode haver senão desordem e confusão'.
(René Guénon)

Mas, seria realmente a democracia um sistema assim tão intrinsecamente mau, a ponto de não constituir uma alternativa cristã de regramento social? É relevante destacar, nesse contexto, que a única manifestação democrática inserida nas Sagradas Escrituras refere-se a uma escolha, por parte da turba ensandecida, pela libertação de um certo Barrabás. Isso diz muito sobre 'democracia' e a civilização cristã, como abismos intransponíveis, mesmo porque a barbárie da democracia é o comunismo:

'O comunismo precisa da democracia
como o corpo humano precisa de oxigênio'

(Leon Trotsky)