quinta-feira, 4 de março de 2021

A IGREJA PODE TER DOIS PAPAS? (I)

Essa questão atual já tem 8 anos de idade. Mas continua atual como nunca. Afinal, a Igreja de Cristo pode ou não pode ter dois papas? E dependendo do SIM ou do NÃO, um verdadeiro tsunami cismático pode resultar desta resposta... Em ambos os casos, os argumentos a favor ou contra essa condição estão baseados na possibilidade de um papa poder ou não poder renunciar. Se a renúncia do papa Bento XVI não foi válida, ele seria ainda o papa da Igreja e a Igreja não teria dois papas. Se, ao contrário, a renúncia papal foi válida, Francisco é o papa da Igreja e Bento XVI um papa emérito e, assim, a Igreja tem hoje efetivamente dois papas. 


Os argumentos apresentados a seguir, subdivididos em duas postagens distintas, resumem as principais premissas ou hipóteses que tendem a favorecer uma ou outra concepção da resposta à questão 'A Igreja pode ter dois papas?', na acepção análoga à questão 'Um papa pode renunciar em favor de um outro papa?' 

PARTE I - ARGUMENTOS A FAVOR DO NÃO

(i) existe um vínculo de matrimônio espiritual entre o papa e a Igreja que, uma vez consubstanciado pela ação do Espírito Santo na sua indicação, somente pode ser dissolvido pelo poder divino e nunca pelo poder humano (assim como Deus proíbe que o marido abandone a sua esposa para unir-se a uma outra mulher e vice-versa, assim também, um bispo não pode abandonar a igreja que lhe foi confiada e vice-versa);

(ii) ninguém possui autoridade sobre si mesmo para definir atos de imposição pessoal, seja para o bem, seja para o mal (um sacerdote não pode aplicar sobre si mesmo um dado sacramento; um bispo tem que apresentar um pedido de renúncia ao seu superior legitimamente constituído e, somente após essa aceitação explícita, a renúncia passa a ser legitimamente válida); ao papa isso é vedado explicitamente, uma vez que não há nenhuma autoridade ou tribunal superior ao papa na hierarquia da Igreja;

(iii) Jesus Cristo concedeu a Pedro o poder espiritual, estabelecendo-o como chefe visível de sua Igreja e é, mediante esse poder, que o Pontífice Romano deve atuar na Terra, para estar em absoluta sintonia com as coisas do céu; dispor deste poder seria simplesmente ligar ou desligar na Terra o que estaria desligado ou ligado nos Céus;

(iv) Uma vez que somente Deus tem o poder de conceder ou retirar o poder papal, pela mesma razão poder humano algum, nem mesmo o do papa, seria possível no sentido de abortar, anular ou diminuir a sua grandeza intrínseca (o que seria uma consequência óbvia de uma renúncia da função).

(v) Qualquer manifestação de renúncia papal fere o primado de Pedro e a tradição bimilenar da Igreja e tal ato não seria nem válido e nem legítimo por constituir, longe de uma salvaguarda da autêntica fé cristã, uma novidade de natureza grave e profana, condenada explicitamente nos textos bíblicos: 'Ó Timóteo, guarda o bem que te foi confiado! Evita as conversas frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa ciência. Alguns, por segui-las, se transviaram da fé' (I Tm 6,20-21). 

(vi) a renúncia de um papa é tão ilegítima que sequer é tratada no âmbito do Direito Canônico; se fosse passível de ocorrer, e considerando o impacto que tal decisão imporia à vida da Igreja, deveria ser objeto de ressalvas, condicionantes e critérios muito específicos por diferentes cânones;

(vii) a hipótese de renúncia papal nunca foi objeto ou tema de discussão dos grandes Concílios da Igreja, simplesmente porque nunca foi uma hipótese de possível consideração;

(viii) se a renúncia de um papa fosse válida ou se a função do papado não fosse vitalícia, a grande maioria dos papas teria renunciado ou abdicado de suas funções numa determinada idade, pela enorme pressão e responsabilidade de conduzir a Igreja de Cristo no mundo, longe do mundo (qual teria sido o impacto disso na vida da Igreja na terra?);

(ix) se a renúncia papal fosse uma hipótese válida, seria apenas mais uma função entre tantas outras, com grave risco de se perder a unidade da doutrina da Igreja (mantida ao longo dos séculos) e de se transferir ao governo eclesiástico a mesma instabilidade dos governos da terra;

(x) na Antiga Lei, o novo sumo sacerdote era imposto somente após a morte do seu antecessor e, assim, de forma similar, um novo papa só poderia ser estabelecido após a morte do seu antecessor (no Novo Testamento, o mandato dos sumos sacerdotes deixou de ser vitalício, quase sempre porque passou a ser possível a destituição sumária deles pelos interesses do Império Romano; há, por isto, algumas passagens do Novo Testamento que mostram dois sumos sacerdotes vivos; Anás e Caifás são exemplos desse cenário, ou seja, que se caracterizam por meios de absoluta exceção ou de objeto de intervenções externas).