segunda-feira, 19 de maio de 2014

HISTÓRIAS MEDIEVAIS

DO VALOR DO EXEMPLO

Um abade da Ordem Negra (Beneditinos), um bom homem de comprovada experiência, tinha monges muito singulares e relapsos. Alguns deles haviam conseguido certo dia diversas espécies de carne e vinhos finos. Com medo do abade, não se atreveram a consumir tais coisas num dos quartos do mosteiro, mas reuniram-se num grande tonel de vinho, levando para lá suas provisões. 

Isso foi delatado e o abade, profundamente entristecido, chegou correndo, olhou para dentro do tonel e, com a sua chegada, transformou a alegria dos moleques em tristeza. Vendo como estavam assustados, bancou o alegre, entrou junto deles no barril e disse: 

- Ah, irmãos, queríeis comer e beber aí sem mim? Isso não é justo. Na verdade, vou participar.

Lavou as mãos, comeu e bebeu com eles e, pelo exemplo, devolveu-lhes a alegria perdida. No dia seguinte, depois de preparar e instruir o prior, o abade postou-se diante dele no Capítulo, pediu perdão com a maior humildade, fingiu terror e medo, e exclamou:

- Senhor prior, confesso a vós e a todos os meus irmãos presentes que eu, pecador, caí no pecado da gula, e ontem, secretamente, escondido num tonel de vinho, pequei contra a prescrição e a regra do meu santo pai São Bento, saboreando carne. E prostrou-se no chão, preparando-se para a penitência. Quando o prior quis dissuadi-lo, respondeu: 

- Deixai-me sofrer punição e penitência, pois é melhor pagar aqui do que na outra vida. 

Depois da punição e da penitência, voltou ao seu lugar. Mas aqueles monges, com medo de fossem chamados se ocultassem sua culpa, também se ergueram e confessaram seu pecado. O abade mandou dar-lhes severos castigos, conforme combinara antes com o outro monge, censurou-os asperamente e ameaçou-os com duras penas para que não acontecesse mais semelhante coisa. 

Assim, como médico esperto, ele curou, pelo exemplo, o mal que não pudera combater com palavras.


DO PECADO DO ORGULHO

Certa vez, reinava o poderoso Imperador Joviniano; estando ele deitado na sua cama, o coração lhe inchou inacreditavelmente de orgulho, e ele disse para si mesmo: 'Haverá outro Deus além de mim?' Enquanto ainda pensava nisso, o sono o dominou, e quando se ergueu cedo pela manhã, reuniu seus guerreiros, dizendo-lhes:

- Meus caros, será bom comermos alguma coisa. pois hoje tenho vontade de ir à caça. Estavam dispostos a cumprir sua vontade, comeram e partiram para caçar. Contudo, enquanto o imperador cavalgava, assaltou-o um calor intolerável, pareceu-lhe que morreria, se não pudesse banhar-se em água fria. Por isso olhou em torno e viu a distância um grande lago. Falou então aos seus soldados: - Fiquem aqui, até que eu tenha me refrescado.

Depois esporeou seu cavalo e galopou até à água, saltou do cavalo, tirou todas as roupas, entrou na água e ficou ali até estar totalmente refrescado. Mas enquanto estava na água chegou certo homem, que era parecido com ele em rosto e postura, vestiu sua roupa, montou seu cavalo, e dirigiu-se até os guerreiros do imperador. Foi recebido por todos como o imperador em pessoa, e quando a caça terminara, dirigiu-se com eles ao castelo. 

Depois Joviniano saiu depressa da água, não encontrando seu cavalo nem sua roupa. Admirou-se muito com isso, e ficou muito triste; porém estando nu e não vendo ninguém, pensou: 'Que farei agora? Fui miseravelmente logrado'. Por fim voltou a si e disse: 'Aqui perto mora um soldado a quem promovi de posto; irei até ele e arranjarei cavalo e roupas, depois cavalgarei até meu castelo e verei como e por quem fui confundido dessa maneira'. Joviniano andou pois inteiramente nu até à moradia daquele soldado e bateu no portão. O porteiro, porém, perguntou pela razão de estar batendo, e Joviniano disse:

- Abre a porta e verás quem sou. O porteiro abriu a porta e depois de vê-lo, espantou-se e indagou: - Mas quem és? O outro respondeu: - Sou o Imperador Joviniano; vai até teu senhor e diz-lhe que me empreste roupas; pois perdi meu cavalo e minhas vestes. O outro, porém, respondeu:

- Estás mentindo, miserável ladrão, pois, antes de ti, o senhor Imperador Joviniano passou por aqui a caminho do castelo, com seus guerreiros; meu senhor o acompanhou, já voltou e está sentado à mesa. Mas vou anunciar-lhe que te fazes passar pelo imperador. O porteiro apresentou-se logo ao seu senhor e contou-lhe o que o outro dissera. Assim que escutou tudo, o soldado mandou que lhe trouxessem aquele homem; e contemplando-o, o guerreiro não o reconheceu, mas o imperador o reconhecia bem.

Então o guerreiro disse: - Diz-me quem és e como te chamas. O outro respondeu: - Sou o Imperador Joviniano, e há pouco tempo te promovi a um posto superior. O outro retrucou: - Oh, miserável ladrão, com que atrevimento te chamas de imperador? Pois há pouco, o meu senhor, o imperador, cavalgou por aqui em direção do castelo. Eu o segui por algum tempo e estou de volta. Mas não escaparás sem castigo por te haveres denominado imperador. 

E mandou que lhe dessem uma boa surra, e o expulsassem da sua propriedade. Joviniano, surrado e escorraçado, chorou amargamente e disse: 'Ó meu Deus, como é possível que o guerreiro a quem recentemente promovi não me conheça mais e me tenha mandado surrar tão cruelmente?' Nisso lhe ocorreu: 'Aqui perto mora um dos meus conselheiros,um duque; vou até ele, comunicar-lhe minha aflição. Dele receberei roupas e poderei voltar ao meu castelo'.

Quando chegou ao portão da moradia do duque, bateu, e o porteiro, escutando as pancadas, abriu o portão, e vendo um homem despido, admirou-se e disse: - Meu caro, quem és e por que chegaste aqui assim nu? O outro porém respondeu: - Sou o imperador, e por acaso perdi meu cavalo e minhas roupas, por isso venho ver o duque para que ele me ajude na minha aflição; por isso peço que apresentes meu pedido ao teu senhor. 

Quando o porteiro escutou isso admirou-se, voltou à casa do seu senhor e contou-lhe tudo. O duque, porém, disse: - Manda-o entrar! Quando entrou, porém, ninguém o reconheceu, e o duque lhe disse: - Afinal, quem és? O outro respondeu: - Sou o imperador, e fiz com que tivesses fortuna e honrarias, fiz de ti um duque, e meu conselheiro.

O duque, porém, disse: - Miserável demente! Pouco antes da tua chegada, cavalguei com o imperador, meu senhor, até o seu castelo, e acabo de voltar de lá; mas não vai escapar sem castigo por teres querido apoderar-te de tal honra. Mandou que o encerrasse numa prisão, a pão e água, depois tiraram-no de lá, deram-lhe uma boa surra, e expulsaram-no dos domínios do duque. 

Quando estava assim exilado, Joviniano emitiu mais suspiros e lamentações do que se poderia acreditar, e disse de si para si: 'Ai de mim, que farei, agora que me tornei objeto de insulto e vergonha do povo? Será melhor ir ao meu castelo, pois os meus certamente me reconhecerão, e se não for assim, ao menos minha mulher me reconhecerá por certos sinais'.

Depois disso, foi sozinho ao seu palácio, bateu no portão, e quando o porteiro escutou as pancadas abriu. Vendo-o, disse-lhe: - Mas quem és? O outro respondeu: - Admira-me que não me reconheças, pois estás comigo há tanto tempo. O outro, porém, disse: - Estás mentindo! Estou há muito tempo com o Imperador, meu senhor. E o outro retrucou: - Pois eu sou o imperador, e se acreditas nas minhas palavras, peço por amor de Deus que vás procurar a imperatriz e lhe diga que, através desses sinais, ela providencie meus trajes imperiais, pois por acaso perdi todos os meus; os sinais que vou te dar ninguém na terra conhece além de nós dois.

E o porteiro disse: - Não duvido de que estejas louco, pois o meu senhor, o imperador, neste momento está à mesa, e ao lado dele a imperatriz. Mas vou anunciar a ela que disseste que és o imperador, e estou certo que será severamente punido. O porteiro foi pois ter com a imperatriz e lhe disse tudo o que ouvira. Ela ficou muito perturbada, virou-se para o seu marido e disse: - Senhor, sabeis que seguidamente aconteceram entre nós, em segredo, coisas singulares. Agora um sujeito devasso que está no portão manda-me dizer pelo porteiro que é o imperador.

Quando o falso imperador ouviu isso, mandou que o outro entrasse na presença de todos; quando foi introduzido assim nu, um cão que sempre o amara muito saltou para morder seu pescoço. A criadagem impediu o cão de matar o homem, que não sofreu mais nenhum dano. Também havia um falcão num poleiro, que, assim que o avistou, rebentou sua corrente e fugiu voando da sala. Nisso o imperador disse a todos que estavam sentados na sala: - Meus caros, ouçam minhas palavras, que direi a este vagabundo. Quem és, e por que vieste? O outro porém respondeu: - Oh, senhor, que pergunta singular. Eu sou o imperador e dono deste lugar.

Então o imperador disse a todos os que estavam sentados à mesa ou postados ao redor dela: - Dizei-me pelo juramento que me prestastes, quem é vosso imperador e senhor? E eles responderam: - Oh, senhor, pelo juramento que vos prestamos, a resposta é simples: nunca vimos aquele ladrão, mas vós sois o nosso senhor e imperador, a quem conhecemos desde a juventude, por isso vos pedimos unanimemente que aquele ali seja castigado, para que todos tirem um exemplo dele, e nunca mais se tente uma tal insolência.

Diante disso o imperador virou-se para a imperatriz e disse: - Diz-me, minha senhora, pela fidelidade que me dás: conheces aquele homem que se diz imperador e teu senhor? Mas ela respondeu: - Oh, caro senhor, porque me perguntas isso? Não estou contigo há mais de trinta anos, e não te dei três filhos? Uma coisa porém me admira, é como esse patife chegou a saber de fatos secretos entre nós dois. 

E o imperador disse então ao que fora introduzido na sala: - Meu caro, como ousaste fazer-te passar por um imperador? Decretamos que sejas hoje amarrado à cauda de um cavalo, e se tiveres a ousadia de dizeres isso mais uma vez, vou te condenar à morte mais vergonhosa. Depois disso, chamou seus guardas e disse: - Ide e amarrai este homem à cauda dum cavalo, mas não o mateis.

E foi o que aconteceu. Mas depois as entranhas daquele homem se moveram mais do que alguém possa imaginar, e duvidando de si mesmo disse: - Amaldiçoado o dia em que nasci e que meus amigos me abandonaram! Minha mulher e meus filhos não me reconheceram. E enquanto falava assim pensou: 'Aqui perto mora meu confessor, vou dirigir-me a ele: talvez me reconheça, pois muitas vezes ouviu minhas confissões'.

Depois dirigiu-se ao eremita e bateu na janela da sua ermida. O outro indagou: - Quem está aí? E ele respondeu: - Sou eu, o Imperador Joviniano. Abre tua janela para que eu possa falar contigo. Assim que o eremita escutou a voz, abriu a janela mas, vendo o homem, bateu-a com força fechando-a de novo, e disse: - Afasta-te de mim, maldito, pois não és o imperador, e sim o diabo em forma humana! 

Quando o outro escutou isso caiu no chão de tanta dor, arrancando os cabelos da cabeça e da barba, e disse: - Ai de mim, que devo fazer? Dizendo isso lembrou-se de como recentemente, quando jazia na cama, seu coração inchara de orgulho, e que ele dissera: 'Existirá outro Deus além de mim?' - Logo bateu na janela do eremita e disse: - Ouvi, eu vos peço, por amor ao Crucificado, ouvi minha confissão, mesmo de janela fechada. E o outro disse: - Para mim está bem.

Ele então confessou, entre lágrimas, toda a sua vida, especialmente como se colocara acima de Deus e dissera não acreditar em nenhum outro Deus senão ele próprio. Quando a confissão e a absolvição tinham passado, o eremita abriu a janela, reconheceu-o, e disse: - Bendito o Altíssimo, agora te reconheço; tenho aqui umas poucas peças de roupa, veste-as e vai ao teu palácio, e espero que lá te reconheçam.

Depois o imperador partiu, dirigiu-se ao seu palácio, e bateu no portão. O porteiro abriu logo e recebeu-o com o maior respeito. Mas o outro disse: - Então me conheces? E o porteiro retrucou: - Ora, sim, meu senhor, e muito bem. Apenas me admiro porque estive o dia inteiro aqui parado e não vos vi sair de casa. O outro entrou no salão de reuniões, e todos os que o viram baixaram as cabeças. Mas o outro imperador estava com sua mulher.

Porém um guerreiro que saiu do aposento real olhou para ele, voltou para o quarto e disse: - Meu senhor, na sala está um homem diante do qual todos se curvam honrando-o, e é tão parecido em tudo convosco, que realmente não sei qual de vós é o imperador. Quando o falso imperador escutou isso, disse à imperatriz:
- Vai até lá e vê se o conheces. Ela saiu depressa e, quando o viu, admirou-se, voltou ligeiro aos aposentos e falou: - Oh, senhor, anuncio-vos que há outro lá fora, mas não posso absolutamente distinguir qual de vós é o meu senhor. O outro então disse: - Se for assim, quero sair e trazer a verdade à luz do dia.

Quando entrou no salão, pegou o outro pela mão, fê-lo ficar ao seu lado, chamou todos os guerreiros que estavam na sala, e a imperatriz, e disse: - Pelo juramento que me prestastes, dizei-me agora qual de nós é vosso imperador. E a imperatriz respondeu primeiro: - Meu senhor, quero responder em primeiro lugar mas, Deus nas alturas seja minha testemunha: não consigo de modo algum afirmar qual de vós é meu senhor. E assim disseram todos os demais. 

E ele disse: - Meus caros, escutai-me. Este é o vosso imperador e senhor; mas, uma vez que ele se ergueu contra Deus, Deus o puniu; o conhecimento dos homens afastou-se dele, até que ele tivesse compensado ao seu Deus. Eu, porém, sou seu anjo da guarda e guarda da sua alma, administrei seu império enquanto ele estava fazendo penitência; agora, porém, sua penitência está cumprida, ele desagravou seus pecados, por isso obedecei-lhe, e eu vos recomendarei a Deus. Com essas palavras desapareceu diante dos olhos deles; o imperador agradeceu a Deus e viveu toda a sua vida em paz, dedicando-a a Deus e que Ele nos permita fazermos o mesmo.

(Excertos da obra 'Histórias Medievais', de Hermann Hesse)