sábado, 16 de fevereiro de 2013

DA SOLIDÃO DO CORAÇÃO

Neste Quarto Dia da Quaresma, no caminho da Penitência e da Mortificação, saibamos viver a solidão do coração com Santo Afonso de Ligório.

Ecce elongavi fugiens, et mansi in solitudine : 'Eis que me afastei fugindo e permaneci na solidão' 

Sumário. A solidão do coração consiste em só a Deus consagrarmos o nosso amor. Vê-se, portanto, que para esta solidão não se precisa de desertos nem de grutas. Os que por obrigação têm de tratar com o mundo, desde que tenham o coração livre de apegos terrestres, podem gozá-la no meio das ruas e das praças. Numa palavra, nenhuma das ocupações que têm por fim o cumprimento da vontade divina impede a solidão do coração. Devemos, por isso, elevar muitas vezes o nosso espírito a Deus, para o que serve o uso freqüente das orações jaculatórias.

I. A solidão favorece muito o recolhimento de espírito. Observa, porém, São Gregório que pouco ou nada serve estar com o corpo num lugar deserto e ficar com o coração cheio de pensamentos e afetos mundanos. Para que uma alma pertença toda a Deus, duas coisas são precisas: primeira, desapegar o afeto de todas as criaturas, segunda, consagrar todo o amor a Deus, e é nestas duas coisas que consiste a soledade do coração.

Em primeiro lugar, portanto, é preciso desapegar o coração de todo o afeto terrestre. Dizia São Francisco de Sales: "Se eu soubesse que em meu coração havia uma fibra que não fosse de Deus, quisera logo arrancá-la". Enquanto se não limpar e purificar o coração de todo o afeto terrestre, não pode nele entrar o amor de Deus para o possuir todo. Pelo seu amor Deus quer reinar em nosso coração, mas quer reinar ali sozinho. Não admite rivais que lhe roubem parte do afeto, que ele com justiça exige todo para si. – Certas almas queixam-se de que em todos os seus exercícios de devoção não acham Deus e não sabem que meios devam empregar para o acharem. Santa Teresa, porém, ensina-lhes o meio acertado, dizendo: Desapega teu coração de todas as criaturas, busca Deus e achá-lo-ás.

Para se separarem das criaturas e tratar somente com Deus, muitos não podem retirar-se para os desertos, conforme talvez quisessem. Compreendamos bem, que para gozarmos da solidão do coração, não são precisos desertos. Os que se virem obrigados a tratar com o mundo, desde que tenham o coração livre de apegos ao mundo, poderão possuir a solidão do coração e estar unidos com Deus até no meio das ruas, das praças e dos tribunais. – É necessário, todavia que o espírito se eleve muitas vezes a Deus, para o que serve o uso freqüente das orações jaculatórias. A respeito destas, escreve São Francisco de Sales que suprem a falta de todas as outras orações, mas que todas as outras orações não podem suprir a falta das jaculatórias.

II. Vacate et videte, quoniam ego sum Deus (Sal 45,11) – 'Cessai e vede que eu sou Deus'. Para que obtenhamos a luz divina que nos faça conhecer a bondade de Deus, mister é que nos desfaçamos de todos os apegos terrestres. Como um vaso de cristal, repleto de areia, não deixa passar os raios do sol, assim tampouco pode um coração apegado ao dinheiro, às dignidades terrestres, aos prazeres sensuais, receber em si a luz divina; e não conhecendo a Deus, não o ama. Qualquer que seja o estado de vida, deve cada um, a fim de que as criaturas não o distraiam, aplicar-se a cumprir exatamente os seus deveres; mas pelo mais faça como se no mundo houvesse somente ele e Deus.

Devemo-nos desapegar de tudo e particularmente de nós mesmos, contrariando sempre o nosso amor próprio. Por exemplo: agrada-nos tal objeto, desfaçamo-nos dele exatamente por que nos agrada. Alguma pessoa nos ofendeu; devemos fazer-lhe bem, exatamente porque nos ofendeu. Numa palavra, devemos querer o que Deus quer, e não querer o que Deus não quer, sem preferência por esta ou tal outra coisa, enquanto não soubermos ser vontade de Deus que a desejemos. – Se alguma criatura quiser entrar para tomar posse de nosso coração, devemos logo recusar-lhe a entrada, e, dirigindo-nos ao nosso soberano Bem, dizer-lhe: Quid mihi est in coelo, et a te quid volui super terram (Sal 72, 25) – 'Que tenho eu no céu? E fora de ti que desejarei eu sobre a terra?'

Não, meu Jesus, não quero que as criaturas tenham parte em meu coração; Vós deveis ser seu único Senhor e possui-lo todo. Procure quem quiser as delicias e as grandezas desta terra; na vida presente e na futura sereis Vós a minha única riqueza, o meu único bem, o meu único amor. E já que me amais, como vejo pelas provas que me dais, ajudai-me a desapegar-me de tudo que me possa afastar do vosso amor. Fazei com que minha alma se ocupe toda em Vos agradar, a Vós que sois o objeto único de todos os meus afetos. Tomai posse do meu coração todo inteiro; possuí e governai-me todo e fazei-me pronto a executar em tudo a vossa vontade. – Ó Mãe de Deus, Maria, em Vós confio; as vossas orações me devem fazer pertencer todo a Jesus. (II 296.)

(Santo Afonso Maria de Ligório; Excerto da Obra 'Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico'; Herder & Cia, 1922)

A BÍBLIA EXPLICADA (IV)

ELIAS E HENOC: AS DUAS TESTEMUNHAS DO APOCALIPSE

Enoque, ou Henoc, filho de Jared, é um dos primeiros patriarcas da humanidade. Não se há de confundi-lo com seu homônimo, filho de Caim, neto de Adão. O Henoc de que falamos é o sexto descendente de Adão, nascido 622 anos após a criação do homem. Ele é pai de Matusalém – morto aos 969 anos – e bisavô de Noé.

Não se deve pensar que a maneira de contar os anos era então diferente da nossa: o ano sempre foi o ciclo das quatro estações. Apenas, a raça humana estava mais perto de suas origens e era, por isso, mais vigorosa; além disso, Deus mantinha o homem em vida por tempo tão longo, para a tradição primitiva ser transmitida e para a terra se povoar rapidamente. Após o dilúvio, a duração da vida humana pôs-se a declinar regularmente, para se estabilizar rapidamente.

Henoc viveu 65 anos, gerou Matusalém, depois viveu mais 300 anos. 'E ele andou com Deus e desapareceu, porque Deus o levou', diz o livro do Gênesis (V, 24). Logo, ele não morreu, e esse fato é confirmado pelo livro do Eclesiástico (XLIV, 16): 'Henoc agradou a Deus, e foi transportado ao paraíso, para pregar a penitência às nações'. São Paulo ensina muito claramente a mesma coisa: 'Pela fé foi arrebatado Henoc deste mundo, para que não visse a morte, e não foi encontrado, visto que Deus o tinha transportado; porque antes desta transladação, ele teve o testemunho de ter agradado a Deus' (Heb. XI, 5). Portanto, Henoc sobreviveu ao dilúvio.

A mesma sorte foi reservada ao profeta Elias. Após a morte de Salomão, filho de Davi, Israel foi dividido em dois reinos (em torno de 936 antes de Jesus Cristo): de um lado as tribos de Judá e de Benjamim formam o reino de Judá; as dez outras tribos se constituem no reino de Israel, por outro lado.

Nesse reino de Israel, sob o reinado de Acab e de Jezabel, em cerca de 890 antes de Jesus Cristo, Elias foi suscitado por Deus para opor-se à idolatria como um muro de bronze: os soberanos haviam, de fato, introduzido o culto de Baal. Após uma vida de luta e de penitência, Elias foi erguido num carro de fogo, tal como vem relatado no quarto livro dos Reis (II, 11): 'Continuando Elias e Eliseu o seu caminho, e caminhando a conversar entre si, eis que um carro de fogo e uns cavalos de fogo os separaram um do outro; e Elias subiu ao céu no meio dum remoinho'. O livro do Eclesiástico relata também esse fato no seu elogio de Elias (XLVIII, 9): 'Tu que foste arrebatado ao céu em redemoinho de fogo, em carroça conduzida por cavalos de fogo…'

Segundo toda a tradição católica, Elias e Henoc são as duas testemunhas anunciadas no livro do Apocalipse (XI, 3-7) que devem vir no tempo do Anticristo e morrer mártires: 'Darei às minhas duas testemunhas o poder de profetizar, revestidas de saco [...] e, depois que tiverem acabado de dar o seu testemunho, a fera que sobe do abismo fará guerra contra eles, vencê-los-á e matá-los-á, e os seus corpos ficarão estendidos na praça da grande cidade'.

Essa tradição se apóia, para Henoc, no anúncio de que ele deve voltar para pregar a penitência às nações (Eclo. XLIV, 16). Quanto a Elias, o profeta Malaquias (IV, 5) anuncia: 'Eis que vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o dia grande e horrível do Senhor'. Em São Mateus (XVII, 11) Nosso Senhor mesmo o confirma: 'Elias certamente há de vir e restabelecerá todas as coisas'.

No aguardo de reaparecerem no fim do mundo, para pagar o tributo que cada homem deve à morte, Elias e Henoc foram transportados a uma parte desconhecida do universo, semelhante ao paraíso terrestre; ali, eles não veem Deus face a face como os eleitos, mas recuperaram um estado análogo ao de Adão e Eva antes do pecado original. Libertos das condições atuais da vida humana, eles esperam, em grande paz de corpo e de alma e numa felicidade que ultrapassa toda alegria da terra, o momento de retornar para confessar Jesus Cristo e derramar o próprio sangue em testemunho da Fé Católica. Esse é o sentimento comum dos Padres da Igreja.

A recordação do destino de Elias e de Henoc há de conservar em nós a esperança teologal: a história humana é inteiramente dominada pela soberana Providência de Deus. A verdadeira história é encoberta.

Pe. Hervé Belmont: 'Que fim levaram Elias e Henoc?', 2006, trad. por F. Coelho, Acies Ordinata.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

PRÁTICAS DA MORTIFICAÇÃO EXTERNA

Neste Terceiro Dia da Quaresma, sigamos os passos de Santo Afonso de Ligório, na prática da mortificação externa no uso de todos os nossos sentidos, em todas as nossos ações, em todos os passos e condições de nossa vida.

'Para isso, basta abraçar aquilo que é difícil à nossa natureza. Por exemplo, de manhã, levantar-se a uma hora fixa, entregando-se com pontualidade à oração; assistir o Santo Sacrifício da Missa; renunciar a um prazer proibido ou a uma leitura perigosa; obedecer prontamente às ordens dos pais ou superiores; cumprir principalmente com fidelidade os deveres e os trabalhos cotidianos; suportar com paciência tribulações e sofrimentos: são, essas coisas todas, mortificações que, praticadas com pura intenção, são muito agradáveis a Deus e mui meritórias para o Céu.

Falaremos aqui, alma cristã, de várias mortificações pequenas a que te podes sujeitar sem perigo para tua saúde e com sumo proveito para tua alma.

1. Mortificação da vista

As primeiras setas que ferem uma alma casta e, às vezes, a matam, entram pelos olhos. Por meio dos olhos entram no espírito os maus pensamentos. 'Não se deseja o que não se vê', diz São Francisco de Sales. Não leias, por isso, nunca, livros proibidos ou perigosos. Renuncia, de vez em quando, ao prazer de ver coisas extraordinárias, ainda que sejam inteiramente decorosas.

Segundo São Jerônimo (Ep. ad Fur.), é o rosto o espelho da alma e os olhos castos dão testemunho da castidade do coração.

2. Mortificação do ouvido

Evita ouvir conversas inconvenientes ou difamações, e mesmo conversas mundanas sem necessidade, pois estas enchem nossa cabeça com uma multidão de pensamentos e imaginações que nos distraem e perturbam mais tarde nas nossas orações e exercícios de piedade. Se assistires a conversas inúteis, procura quanto possível dar-lhes outra direção, propondo, por exemplo, uma importante questão. Se isso não der resultado, procura retirar-te ou, ao menos, cala-te e baixa os olhos para mostrar que não achas gosto em tais conversas.

3. Mortificação do olfato

Renuncia a todos os vãos perfumes, sejam quais forem; suporta, antes, de boa vontade, o mau cheiro que reina em geral nos quartos dos doentes. Imita o exemplo dos Santos que, animados pelo espírito de caridade e mortificação, sentiam tanto gosto no ar corrompido das enfermarias, como se estivessem em jardins de flores odoríferas.

4. Mortificação do tato

Quanto ao tato, esforça-te por evitar qualquer falta, pois cada falta neste sentido contêm um perigo de morte eterna para a alma. Emprega toda modéstia e cuidado não só a respeito dos outros, mas também de ti mesmo, para conservar a bela jóia da pureza. Procura, quanto possível, refrear pela mortificação esse sentido.

São João da Cruz dizia que, se alguém ensinasse que a mortificação do tato não é necessária, não se lhe deveria dar crédito, ainda que operasse milagres. Jesus Cristo mesmo disse uma vez à Madre Maria de Jesus, carmelita: 'O mundo precipitou-se no abismo por causa do prazer, e não da mortificação'.

Se não temos coragem de crucificar a nossa carne com penitências, ao menos esforcemo-nos por suportar com paciência as pequenas contrariedades que Deus mesmo nos envia, como doenças, calor, frio, etc. Digamos com S. Bernardo (Medit., c. 15): 'O desprezador de Deus deve ser esmagado; ele merece a morte: deve ser crucificado'. Sim, meu Deus, é justo que quem Vos desprezou seja castigado; eu mereço a morte eterna; seja eu, pois, crucificado neste mundo, para que não sofra eternamente no outro.

5. Mortificação do paladar

Quanto à mortificação do paladar, será bom desenvolver mais a fundo a necessidade e a maneira de nos mortificarmos nesse sentido.

§5.1- Santo André Avelino diz que quem deseja alcançar a perfeição, deve começar com uma séria mortificação do paladar. Antes dele já o afirmara São Gregório Magno (Mor., 1. 30, c. 26): 'Para se poder dispor para o combate espiritual, deve-se reprimir a gula'. O comer, porém, satisfaz necessariamente ao paladar: não nos será, pois, lícito, comer coisa alguma? Certamente devemos comer: Deus mesmo quer que, por esse meio, conservemos a vida do corpo para O servirmos enquanto nos permite ficar no mundo. Devemos, porém, cuidar de nosso corpo do mesmo modo, diz o padre Vicente Carafa, como o faria um rei poderoso com um animal que ele, com as próprias mãos, tivesse de tratar várias vezes durante o dia; seguramente cumpriria o seu dever; mas, como? Contrariado e desgostoso e o mais depressa possível. 'Deve-se comer para viver, diz S. Francisco de Sales, e não viver para comer'.

Parece, contudo, que muitos vivem só para comer, como os irracionais. O homem assemelha-se ao animal, diz S. Bernardo, e deixa de ser espiritual e racional, se gosta da comida como o animal. Assim assemelhou-se aos animais o infeliz Adão, comendo do fruto proibido. Se os animais tivessem tido o uso da razão, acrescenta o mesmo Santo (In Cant., s. 35), ao verem Adão se esquecer de Deus e de sua salvação eterna por causa do miserável desejo de uma fruta, certamente haveriam de exclamar: 'Vede, Adão se tornou um animal como nós!' Isso levou Santa Catarina de Sena a dizer: 'É impossível que aquele que se não mortifica no comer, conseve a inocência, visto que Adão a perdeu em razão de seu gosto de comer'. Como é triste ver homens 'cujo Deus é o ventre' (Filip 3, 19).

Tomemos cuidado para que não sejamos subjugados por esse vício animal. É verdade que nos devemos alimentar para a conservação da vida, diz Sto. Agostinho; mas devem-se tomar os alimentos como os remédios, isto é, só tanto quanto necessário, e nada mais. A intemperança no comer prejudica a alma e o corpo. Quanto ao corpo, é fora de dúvida que grande número de doenças provêm desse vício: apoplexia, dor de cabeça, dores de estômago e outros males. As doenças do corpo, porém, são o menor mal; um mal muito pior são as doenças da alma que disso se originam.

Primeiramente, obscurece esse vício o entendimento, como ensina S. Tomás, e o torna imprestável para os exercícios espirituais, particularmente para a oração. Assim como o jejum dispõe a alma para a meditação de Deus e dos bens eternos, assim a intemperança retrai disso. Segundo S. João Crisóstomo, aquele que enche o estômago com comidas é semelhante a um navio muito carregado, que apenas se pode mover do lugar: ele se acha em grande perigo de afundar, se uma tempestade de tentações lhe advêm.

Além disso, quem concede toda a liberdade a seu paladar, facilmente estenderá a mesma liberdade aos outros sentidos, pois, se o recolhimento de espírito desapareceu, facilmente se cometem ainda outras faltas por palavras e obras. O pior é que, pela intemperança no comer e beber, expõe-se a castidade a um grande perigo. 'Excessiva saciedade produz lascívia', diz S. Jerônimo (Adv. Jovin., 1. 2). E Cassiano afirma que é simplesmente impossível ficar livre de tentações impuras, enchendo-se o estômago de comidas.

Os Santos, justamente porque queriam conservar a castidade, eram tão rigorosos na mortificação do paladar. 'Se o demônio é vencido nas tentações de intemperança, diz o Doutor Angélico, não nos continua a nos tentar à impureza'.

Os que cuidam em mortificar o paladar fazem contínuos progressos na vida espiritual. Adquirem mais facilidade em mortificar os outros sentidos e em praticar as outras virtudes. Pelo jejum, assim se exprime a Santa Igreja em suas orações, concede o Senhor à nossa alma a força de superar os vícios, de se elevar acima das coisas terrenas, de praticar a virtude e adquirir merecimentos infinitos (Praef. Quadrag.).

Os homens sensuais objetam que Deus criou os alimentos para que nos utilizemos deles. Mas os cristãos fervorosos são da opinião do venerável padre Vicente Carafa, que diz, como notamos acima, que Deus nos deu as coisas deste mundo não só para nosso gozo, mas também para que tivéssemos ocasião de Lhe fazer um sacrifício. Quem é dado à gulodice e não se esforça por se mortificar nesse ponto, nunca fará um progresso notável na vida interior. Regularmente, se come várias vezes durante o dia; quem, pois, não procura mortificar o desejo de comer, cometerá quotidianamente muitas faltas.

§5.2- Vejamos agora o modo como devemos mortificar o nosso paladar.

a) Quanto à qualidade das comidas, diz São Boaventura, que não se devem escolher comidas muito especiais, mas contentar-se com pratos simples. Segundo o mesmo Santo, é sinal de alguém estar muito atrasado na vida espiritual não ficar contente com as comidas que se lhes apresentem e desejar outras que agradem mais ao paladar, ou requerer que sejam preparadas de um modo particular. Mui diversamente procede quem é mortificado: contenta-se com o que se lhe dá e, se diferentes pratos são trazidos, certamente escolherá aqueles que menos satisfazem ao paladar, contanto que não lhe façam mal.

É muito recomendável privar-se, por mortificação, de temperos desnecessários, que só servem para lisonjear o paladar. O tempero de que usavam os Santos era a cinza e o absinto. Não exijo de ti, alma cristã, tais mortificações, nem tampouco muitos jejuns extraordinários. Não sou, de forma alguma, contrário a que jejues com todo o rigor em certos dias particulares, como na sexta-feira ou no sábado, ou nas vésperas das festas de Nosso Senhor ou em dias semelhantes, pois isso costumam fazer os cristãos verdadeiramente piedosos. Se, porém, não possuis tanta piedade ou se tuas enfermidades não te permitem guardar rigorosos jejuns, deves ao menos te contentar com o que te servirem e não te queixar das comidas.

b) Quanto à quantidade das comidas, diz São Boaventura: 'Não deves comer mais, nem mais vezes, do que te é necessário para sustentar, e não para agravar, teu corpo'. Por isso, é uma regra, para todos os que querem levar uma vida devota, não comer nunca até à saciedade, como São Jerônimo aconselhava à virgem Santa Eustóquio, escrevendo-lhe: 'Sê sóbria no comer e nunca enchas o estômago'. Alguns jejuam num dia e comem demais no dia seguinte; é melhor, segundo S. Jerônimo, tomar regularmente a alimentação necessária, do que comer demasiadamente depois do jejum. Com razão dizia um Padre do deserto: 'Quem come mais vezes, tendo, apesar disso, sempre fome, receberá uma recompensa maior do que aquele que come raras vezes, mas até à saciedade'. 'Uma temperança constante e regrada, diz S. Francisco de Sales, é melhor que um rigoroso jejum de vez em quando, ao qual se faz seguir uma falta de mortificação' (Filotéia, p. 3, c. 23).

Se alguém quer reduzir seu sustento à justa medida, convém que o faça pouco a pouco, até que conheça, pela experiência, até onde pode ir na mortificação sem se causar sensível dano.

Contudo, todos devem tomar como regra o comer pouco à noite, mesmo quando lhes parecer que necessitam de mais; a fome de noite é, muitas vezes, só aparente e, se se passa um pouco só da justa medida, sente-se muito incômodo na manhã seguinte: sente-se dor de cabeça, dores de estômago, está-se indisposto, e até incapaz de qualquer trabalho espiritual.

Quanto à medida que se deve guardar no beber, sem perigo algum para tua saúde, podes te impôr a mortificação de nada beberes fora da refeição, a não ser que devas ceder a um especial impulso da natureza, para não te causares algum dano, como pode acontecer no verão. São Lourenço Justiniano, porém, nunca bebia coisa alguma fora da refeição, mesmo nos dias de maior calor, e quando se lhe perguntava como podia suportar a sede, respondia: 'Como poderei suportar as chamas do Purgatório, se não puder suportar agora esta privação?'

Referindo-se ao vinho, diz a Sagrada Escritura: 'Não dês vinho aos reis' (Prov 31, 4). Sob essa expressão de reis, não se entendem os que reinam sobre nações, mas todos os homens que domam suas paixões e as submetem à razão. Infelizes daqueles que são dados ao vício da embriaguês, diz a Sagrada Escritura (Prov 23, 29). E por quê? Porque o vinho torna o homem luxurioso (Prov 20,1). Por isso escreveu S. Jerônimo à virgem Eustóquio: 'Se quiseres permanecer pura, como deve ser uma esposa de Jesus Cristo, evita o vinho como veneno: vinho e mocidade são duas iscas' (Ep. 22 ad Eust.).

De tudo isso devemos deduzir que aqueles que não possuem virtude ou saúde suficiente para renunciar por completo ao vinho, devem ao menos servir-se dele com grande sobriedade, para não serem atormentados por mui fortes tentações impuras.

c) Sobre a questão de quando e como se deve comer, São Boaventura nos ensina o seguinte:

Primeiro, não se deve comer fora de hora, isto é, fora da hora da refeição comum. Um penitente de São Filipe Néri tinha esse defeito. O Santo o corrigiu com as palavras: 'Meu filho, se não te emendares dessas falta, nunca chegarás a ter uma vida espiritual'.

Segundo: nunca se deve comer desregradamente, isto é, com avidez, por exemplo, enchendo a boca demais, com tal pressa que antes de se engolir um bocado já se leva outro à boca. 'Não sejas glutão em banquete algum' (Ecli 37, 22), diz-nos o Espírito Santo. Além disso, deves tomar os alimentos com a boa intenção de conservar as forças do corpo, para podermos servir ao Senhor. 

A justa medida no comer exclui também um jejum imoderado, pelo qual um se torna incapaz de cumprir com seus deveres de estado. Cometem muitas vezes essa falta os principiantes: levados por aquele zelo sensível que Deus costuma conceder-lhes no princípio para animá-los no caminho da perfeição, impõem-se privações e jejuns excessivos, que tem por resultado transtornar-lhes a saúde e faze-los abandonar tudo. O patrão que entrega seu cavalo a um criado para que o trate, certamente não só o repreenderá não só se nada der ao cavalo, como se der demais'.

(Santo Afonso Maria de Ligório; Excerto da Obra 'Escola da Perfeição Cristã'; Editora Vozes, IV Edição, Petrópolis: 1955)


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

OS DOZE GRAUS DO SILÊNCIO

No segundo dia da Quaresma, que o nosso espírito de mortificação seja o silêncio, como pedimos no Segundo Dia da Oração da Semana. E que o silêncio no nosso encontro com Deus neste tempo de penitência faça calar os gritos das multidões ensandecidas dos prazeres do mundo.

1º Falar pouco às criaturas e muito a Deus

Este é o primeiro passo, mas indispensável, nas vias solitárias do silêncio. Nesta escola é onde se ensinam os elementos que dispõe à união divina. Aqui a alma estuda e aprofunda esta virtude, no espírito do Evangelho, no espírito da Regra que abraçou, respeitando os lugares consagrados, as pessoas, e sobretudo esta língua na qual tão freqüentemente descansa o Verbo ou a Palavra do Pai, o Verbo feito carne. Silêncio ao mundo, silêncio às notícias, silêncio com as almas mais justas: a voz de um Anjo turbou Maria...

2º Silêncio no trabalho, nos movimentos

Silêncio no porte; silêncio dos olhos, dos ouvidos, da voz; silêncio de todo o ser exterior, que prepara a alma para passar a Deus. A alma merece tanto quanto pode, por estes primeiros esforços em escutar a voz do Senhor. Que bem recompensado é este primeiro passo! Deus a chama ao deserto, e por isso, neste segundo estado, a alma aparta tudo o que poderia distraí-la; se distancia do ruído, e foge sozinha Àquele que somente é. Ali ela saboreará as primícias da união divina e o zelo de seu Deus. É o silêncio do recolhimento, ou o recolhimento do silêncio.

3º Silêncio da imaginação

Esta faculdade é a primeira em chamar à porta fechada do jardim do Esposo; com ela vêm as emoções alheias, as vagas impressões, as tristezas. Mas neste lugar retirado, a alma dará ao Bem Amado provas de seu amor. Apresentará a esta potência, que não pode ser destruída, as belezas do céu, os encantos de seu Senhor, as cenas do Calvário, as perfeições de seu Deus. Então, também ela permanecerá no silêncio, e será a servente silenciosa do Amor divino.

4º Silêncio da memória

Silêncio ao passado... esquecimento. Há que saturar esta faculdade com a recordação das misericórdias de Deus... É o agradecimento no silêncio, é o silêncio da ação de graças.

5º Silêncio às criaturas

Oh, miséria de nossa condição presente! Com freqüência a alma, atenta a si mesma, se surpreende conversando interiormente com as criaturas, respondendo em seu nome. Oh, humilhação que fez gemer os santos! Nesse momento esta alma deve retirar-se docemente às mais íntimas profundezas deste lugar escondido, onde descansa a Majestade inacessível do Santo dos santos, e onde Jesus, seu consolador e seu Deus, se descobrirá a ela, lhe revelará seus segredos, e a fará provar a bem-aventurança futura. Então lhe dará um amargo desgosto para tudo o que não é Ele, e tudo o que é da terra deixará pouco a pouco de distrair-la.

6º Silêncio do coração

Se a língua está muda, se os sentidos se encontram na calma, se a imaginação, a memória e as criaturas se calam e fazem silêncio, se não ao redor, ao menos no íntimo desta alma de esposa, o coração fará pouco ruído. Silêncio dos afetos, das antipatias, silêncio dos desejos no que tem de demasiado ardente, silêncio do zelo no que tem de indiscreto; silêncio do fervor no que tem de exagerado; silêncio até nos suspiros... Silêncio do amor no que tem de exaltado, não dessa exaltação da qual Deus é autor, senão daquela na qual se mistura a natureza. O silêncio do amor, é o amor no silêncio...

É o silêncio diante de Deus, suma beleza, bondade, perfeição... Silêncio que não tem nada de chateado, de forçado; este silêncio não danifica a ternura, o vigor deste amor, de modo semelhante a como o reconhecimento das faltas não danifica tampouco o silêncio da humildade, nem o bater das asas dos anjos de que fala o profeta o silêncio de sua obediência, nem o fiat o silêncio de Getsemani, nem o Sanctus eterno o silêncio dos serafins...

Um coração no silêncio é um coração de virgem, é uma melodia para o coração de Deus. A lâmpada se consome sem ruído diante do Sacrário, e o incenso sobe em silêncio até o trono do Salvador: assim é o silêncio do amor. Nos graus precedentes, o silêncio era ainda a queixa da terra; neste a alma, por sua pureza, começa a aprender a primeira nota deste cântico sagrado que é o cântico dos céus.

7º Silêncio da natureza, do amor próprio

Silêncio à vista da própria corrupção, da própria incapacidade. Silêncio da alma que se compraz na sua baixeza. Silêncio aos louvores, à estima. Silêncio diante dos desprezos, das preferências, das murmurações; é o silêncio da doçura e da humildade. Silêncio da natureza diante das alegrias ou dos prazeres. A flor se abre no silêncio e seu perfume louva em silêncio ao criador: a alma interior deve fazer o mesmo. Silêncio da natureza na pena ou na contradição. Silêncio nos jejuns, nas vigílias, nas fadigas, no frio e no calor. Silêncio na saúde, na enfermidade, na privação de todas as coisas: é o silêncio eloqüente da verdadeira pobreza e da penitência; é o silêncio tão amável da morte a todo o criado e humano. É o silêncio do eu humano transformando-se no querer divino. Os estremecimentos da natureza não poderiam turbar este silêncio, porque está acima da natureza. 

8º Silêncio do espírito

Fazer calar os pensamentos inúteis, os pensamentos agradáveis e naturais; só estes danificam o silêncio do espírito, e não o pensamento em si mesmo, que não pode deixar de existir. Nosso espírito quer a verdade, e nós lhe damos a mentira! Agora bem, a verdade essencial é Deus! Deus é o bastante à sua própria inteligência divina, e não basta à pobre inteligência humana!

No que concerne a uma contemplação de Deus perene e imediata, não é possível na debilidade da carne, a não ser que Deus conceda um puro dom de sua bondade; mas o silêncio nos exercícios próprios do espírito consiste, em relação à fé, em contentar-se com sua luz escura. Silêncio aos raciocínios sutis que debilitam a vontade e dissecam o amor. Silêncio na intenção: pureza, simplicidade; silêncio às buscas pessoais; na meditação, silêncio à curiosidade; na oração, silêncio às próprias operações, que não fazem mais que entravar a obra de Deus. Silêncio ao orgulho que se busca em tudo, sempre e em todas as partes; que quer o belo, o bem, o sublime; é o silêncio da santa simplicidade, do desprendimento total, da retidão.

Um espírito que combate contra tais inimigos é semelhante a esses anjos que vêem sem cessar a Face de Deus. Esta é a inteligência, sempre no silêncio, que Deus eleva a si.

9º Silêncio do juízo

Silêncio quanto às pessoas, silêncio quanto às coisas. Não julgar, não deixar ver a própria opinião. Não ter opinião às vezes, ou seja, ceder com simplicidade, sem nada se opor a ele por prudência ou por caridade. É o silêncio da bem-aventurada e santa infância, é o silêncio dos perfeitos, o silêncio dos anjos e dos arcanjos, quando seguem as ordens de Deus. É o silêncio do Verbo encarnado!

10º Silêncio da vontade

O silêncio aos mandamentos, o silêncio às santas leis da regra, não é, por dizer assim, mais que o silêncio exterior da própria vontade. O Senhor tem algo que ensinar-nos de mais profundo e de mais difícil: o silêncio do escravo sob os golpes de seu amo. Mas, feliz escravo, pois o Amo é Deus! Este silêncio é o da vítima sobre o altar, é o silêncio do cordeiro que é despojado de sua pele, é o silêncio nas trevas, silêncio que impede pedir a luz, ao menos a que alegra.

É o silêncio nas angústias do coração, nas dores da alma; o silêncio de uma alma que se viu favorecida por seu Deus, e que, sentindo-se rechaçada por Ele, não pronuncia nem sequer estas palavras: Por que? Até quando? É o silêncio no abandono, o silêncio sob a severidade do olhar de Deus, sob o peso de sua mão divina; o silêncio sem outra queixa que a do amor. É o silêncio da crucifixão, é mais que o silêncio dos mártires, é o silêncio da agonia de Jesus Cristo. Se este silêncio é seu divino silêncio e nada é comparável à sua voz, nada resiste à sua oração, nada é mais digno de Deus que esta classe de louvor na dor, que este fiat no sofrimento, que este silêncio no trabalho da morte.

Enquanto esta vontade humilde e livre, verdadeiro holocausto de amor, se despedaça e se destrói para a glória do nome de Deus, Ele a transforma em sua vontade divina. Então o que falta para sua perfeição? O que requer ainda para a união? O que falta para que Cristo seja acabado nesta alma? Duas coisas: a primeira é o último suspiro do ser humano; a segunda é uma doce atenção ao Bem Amado cujo beijo divino é a inefável recompensa.

11º Silêncio consigo mesmo

Não falar-se interiormente, não escutar-se, não queixar-se nem consolar-se. Em uma palavra, calar-se consigo mesmo, esquecer-se de si mesmo, deixar-se só, completamente só com Deus; fugir, separar-se de si mesmo. Este é o silêncio mais difícil, e sem embargo é essencial para unir-se a Deus tão perfeitamente como possa fazê-lo uma pobre criatura que, com a graça, chega com freqüência até aqui, mas se detém neste grau, porque não o compreende e o pratica menos ainda. É o silêncio do nada. É mais heróico que o silêncio da morte.

12º Silêncio com Deus

No começo Deus dizia à alma: “Fala pouco às criaturas e muito comigo”. Aqui lhe diz: “Não me fales mais”. O silêncio com Deus é aderir-se a Deus, apresentar-se e expor-se diante de Deus, oferecer-se a Ele, aniquilar-se diante dEle, adorá-lo, amá-lo, escutá-lo, ouvi-lo, descansar nEle. É o silêncio da eternidade, é a união da alma com Deus.

Tradução livre de 'Los doce grados del silencio' de Soror Amada de Jesus. 
(http://www.derradeirasgracas.com)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

QUARTA DE CINZAS


Memento, homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris

'Lembra-te, homem, que és pó e ao pó retornarás!' (Gn 3,19). A Quarta-Feira de Cinzas é o primeiro dia do tempo da Quaresma, quarenta dias antes da Páscoa. Neste dia por excelência refletimos sobre a nossa condição mortal nesta vida e a eternidade de nossas almas na vida futura. Num tempo em que se valoriza tanto a dimensão física, a beleza do corpo, a imposição das cinzas nos desvela a dura realidade do nosso corpo mortal: apenas pó que há de se consumir em cinzas.

Esse dia dá início, portanto,  a um tempo de profunda meditação sobre a nossa condição humana diante da grandeza e misericórdia de Deus. Tempo para fazer da nossa absurda fragilidade, sustentáculos da verdade e da fé; tempo para fazer de nossa pequenez e miséria, um templo de oração e um arcabouço de graças; tempo para transformar a argila pálida de nossos feitos e conquistas, em patamares seguros para a glória de Deus. Um tempo de oração, jejum e caridade. Um tempo de oração, desagravo, conversão, reparação. E um tempo de penitência, penitência, penitência...

A penitência é traduzida por atos de mortificação, seja na caridade silenciosa de um pequeno gesto, seja na determinação silenciosa de um pequeno 'não!' Pequenos gestos: uma visita a um amigo doente, uma palavra de conforto a quem padece ausências, um bom dia ainda nunca ofertado; ou um pequeno 'não': à abstinência de carne ou refrigerante ou ao fumo; abrir mão de ter sempre a última resposta ou para aquela hora a mais de sono; simplesmente dizer não a um livro, a uma música, a uma revista, a um programa de televisão. Propague o silêncio, sirva-se da modéstia; invista no anonimato, não se ensoberbeça, pratique a tolerância, estanque a frivolidade, consuma-se na obediência. Lembra-te que és pó e todas as tuas ações, aspirações e pensamentos vão reverberar em ti as glórias de Deus.

Abre-se hoje o Tempo da Quaresma: convertei-vos e acreditais no Evangelho. Pois é no Evangelho (Mt 6, 1-6.16-18) que Jesus nos dá  os instrumentos para a realização de uma autêntica renovação interior:  oração, jejum e caridade. Com estas três práticas fundamentais, o tempo de penitência da quaresma é convertido em caminho de santificação ao encontro de Jesus Ressuscitado que vem, na Festa da Páscoa.

PALAVRAS DE SALVAÇÃO


(um raio atinge a cúpula da Basílica de São Pedro em 11/02/2013, data da renúncia de Bento XVI)

'E eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela' (Mt 16,18).

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

AS PROFECIAS (FALSAS) DE SÃO MALAQUIAS

São Malaquias nasceu na Irlanda em 1094 (ou 1095), tornou-se Arcebispo de Armagh em 1132 e morreu em 2 de novembro de 1148 em Claraval, na França, tendo sido canonizado em 1190 pelo Papa Clemente III. Que o santo tinha manifestações proféticas, isso é bem conhecido, uma vez que anunciou explicitamente a data de sua morte, bem como fez várias predições sobre a Irlanda. Entretanto, as revelações atribuídas a ele sobre os papas parecem ser mera especulação e potencialmente falsas. 

De acordo com estas revelações, ao apresentar o relatório das atividades de sua diocese ao Papa  Inocêncio II, em Roma, perpassou pela mente do santo a sequência dos papas (e também dos antipapas reinantes neste período), desde Celestino II, eleito em 1143, até o fim dos tempos, compreendendo 112 pontífices (102 papas e 10 antipapas*). Para cada um deles, era apresentada uma frase ou dístico contendo duas, três ou no máximo quatro palavras latinas que caracterizaria o papa eleito ou o seu pontificado. Para o último papa listado, a mensagem destinava uma frase completa: 'Durante a última perseguição da Santa Igreja Romana sentar-se-á Pedro Romano, que apascentará a sua grei no meio de muitas tribulações; quando estas tiverem terminado, a cidade de sete colinas será destruída, e o tremendo Juiz julgará o seu povo. Fim'

Há várias razões para se questionar tais revelações. Em primeiro lugar, São Bernardo, amigo e autor de uma biografia do santo, jamais fez menção a tais profecias, o que seria um despropósito face ao valor intrínseco das mensagens. Por estranho que pareça, a listagem não faz distinção entre papas e antipapas. Por outro lado, as 'profecias de São Malaquias' somente foram difundidas publicamente na obra Lignum Vitae, editada em Veneza em 1595, ou seja cerca de 450 anos após a morte do santo. Outro fato que permite questionar a autenticidade das profecias é que existe claramente uma distinção entre duas fases das mensagens: entre Celestino II (1143-1144) até Gregório XIV (1590-1591), os dísticos apresentam uma vinculação óbvia e direta com o nome ou as prerrogativas do pontífice (brasão, título cardinalício, lugar de origem do papa, etc). De Gregório XIV em diante, porém, os dísticos passam a ter uma contextualização abstrata, enigmática e generalista, perdendo-se completamente o foco das divisas precedentes, o que leva supor que as profecias tenham sido expostas nesta época. 

No completo desconhecimento destes fatos, os 'especialistas' tendem a forçar conexões fantasiosas entre os dísticos e os pontífices**, tudo no estrito princípio de confirmar as tais 'profecias'. E, assim, neste cenário de profecias forçadas, com a renúncia de Bento XVI (2650 papa), o próximo papa seria o derradeiro pontífice, no escopo de um mundo no fim dos tempos.


* As profecias incluem os seguintes 10 antipapas:

Vítor IV (1159-1164); Pascoal III (1164-1168); Calisto III (1168-1178); Nícolas V (1328-1330); Clemente VII (1378-1394); Bento XIII (1394-1423); Clemente VIII (1423-1429); Alexandre V (1409-1410); João XXIII (1410-1415); Felix V (1439-1449)

** Dísticos e Pontífices para os papas dos séculos XX e XXI:

(-10) Lumen in coelo – Luz no céu (Leão XIII, 1878-1903]
(-9) Ignis ardens  Fogo ardente (Pio X, 1903-1914);
(-8) Religio depopulata – A Religião despovoada (Bento XV, 1914-1922);
(-7) Fides intrépida – Fé intrépida (Pio XI, 1922-1939); 
(-6) Pastor Angelicus – Pastor angélico (Pio XII, 1939-1958); 
(-5) Pastor et Nauta – Pastor e navegante (João XXIII, 1958-1963); 
(-4) Flos florum – Flor das flores [Paulo VI, 1963-1978); 
(-3) De mediate Lunae – Da meia lua [João Paulo I, 1978]; 
(-2) De labore solis – Eclipse do sol [João Paulo II, 1978-2005]; 
(-1) Gloria olivae – Glória da oliveira [Bento XVI, 2005 - 2013]