Volto a falar dos degraus gerais que deveis percorrer a fim de sair do rio do pecado, atingir a água viva e inserir-me na vossa caminhada.
Pela graça eu repouso em vossas almas. Querendo progredir, é necessário que tenhais sede. Somente os sedentos acolhem aquele convite: 'quem tem sede, venha a mim e beba' (Jo 7,37). Quem não está com sede desanima de caminhar, pára por cansaço ou em prazeres, vai de mãos vazias, sem se preocupar em levar consigo um recipiente para coletar a água. Mas sozinho ninguém progride. Ao apresentar-se o ferrão das contradições, olha-o como a um inimigo e retrocede. O homem solitário teme o encontro do inimigo; quem vai acompanhado, não sente medo. Pois bem, o cristão que ainda não percorreu os três degraus gerais, caminha solitário.
Ocorre, pois, ter sede e reunir dois, três ou mais, na maneira explicada. Por que eu disse 'dois e três'? Porque não existe dois sem três e três sem dois. O homem que está só não possibilita minha presença 'no meio' por falta de companheiro que me permita estar 'entre' eles. O solitário é um vazio, bem como aquele que só possui o egoísmo e vive sem amor pela minha graça e pelo próximo. Um nada, eis o que é a pessoa em quem estou ausente, por causa do pecado. Somente eu 'sou aquele que sou' (Ex 3,14). O egoísta, solitário, não conta diante de mim, não me agrada. Eis por que meu Filho diz: 'Se dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles' (Mt 18,20). Afirmei antes que não existe dois sem três ou três sem dois. Explico-me.
Sabes que os mandamentos da lei se reduzem a dois; sem eles, nenhum outro é observado. São: amar-me sobre todas as coisas e amar ao próximo como a ti mesma. Eis o começo, o meio e o fim dos mandamentos da lei. Todavia esses 'dois' não se 'reúnem' em mim sem os 'três', isto é, sem a unificação das três faculdades da alma: a memória, a inteligência e a vontade. A memória há de recordar-se dos meus benefícios e da minha bondade; a inteligência pensará no amor inefável revelado em Cristo, pois ele se oferece como objeto de reflexão para manifestar a chama do meu amor; a vontade, unindo-se às duas faculdades anteriores, me amará e desejará como seu fim. Quando essas três faculdades estão assim reunidas, acho-me presente entre elas pela graça. E, como consequência, a pessoa vê-se repleta de amor por mim e pelo próximo, na companhia de verdadeiras e múltiplas virtudes.
Em primeiro lugar, a vontade se dispõe a ter sede. Sede das virtudes, sede da minha glória, sede das almas. As demais sedes se apagam e morrem. Tendo subido o primeiro degrau, da afeição, o homem caminha seguro de si, sem temor servil. Livre do egoísmo, a vontade põe-se acima de si mesma e acima dos bens passageiros. Se a pessoa quer possuir tais bens, ama-os e deles se serve em mim, com temor santo e verdadeiro, virtuosamente. Em seguida, passa-se ao segundo degrau, o da inteligência, no qual a pessoa, em cordial amor por mim, medita sobre Cristo crucificado, enquanto mediador. Por fim, a memória enche-se da minha caridade e alcança paz e a tranquilidade.
Um recipiente vazio, ao ser tocado, faz rumor; o recipiente cheio, nenhum som produz. Da mesma forma, quando a memória está tomada pela luz da inteligência e pelo amor, a pessoa já não se perturba diante das adversidades ou atrativos do mundo; está repleta da minha presença, como sumo bem; não sente falsas alegrias, nem impaciência. Quando o homem sobe os três degraus comuns, suas faculdades unificam-se, colocam-se sob domínio da razão e congregam-se em meu nome. Uma vez reunidos os dois amores – por Deus e pelo próximo – com as três faculdades – a memória para reter, a inteligência para refletir e a vontade para amar – encontra-se o homem na minha companhia, forte e seguro; está na companhia das virtudes; caminha seguro de si. Estou presente nele!
Parte, então, o cristão, inflamado de desejo santo, sequioso de ir pelo caminho da verdade, à procura da fonte da água viva. É o desejo da minha glória, da salvação pessoal e da santificação alheia que incentiva a caminhar, pois é o único meio que possibilita alcançar a meta final. Na saída, o coração está vazio de apegos terrenos. Mas enche-se logo! Nenhum recipiente permanece com vácuo; se não contiver objetos materiais, enche-se de ar. O mesmo acontece com o coração humano. Ao se retirar dele o apego dos bens materiais, enche-se com o ar celeste do amor divino e com a água da graça. Em posse deste dom, o caminhante entra pela porta de Cristo e bebe a água viva em mim, oceano de paz.
(Excertos da obra 'O Diálogo', de Santa Catarina de Sena)