CONTOS DE FANTASIA (LENDAS)
402. TOMA ESTE CÁLICE... ENCHE-O DE ÁGUA
Meninos, ouvi! Sabemos que era um jovem e que cometera pecados horríveis. Mas tinha fé e, às vezes, punha-se a pensar na hora da morte e na eternidade e então aquele jovem sentia que o desespero o arrastava à condenação eterna. De vez em quando sentia um desejo ardente de voltar ao bom caminho, de converter-se a Deus, de fazer penitência. Entretanto, do fundo da alma parecia que uma voz lhe gritava:
➖ Não há perdão para ti.
Ao passar um dia por uma igreja, não pôde vencer o desejo de entrar. Qualquer coisa o atraía. E se viu então diante do Cristo Crucificado. Rezou e com os olhos rasos de lágrimas, disse:
➖ Senhor, haverá ainda misericórdia para mim?
E ouviu uma voz que lhe dizia:
➖ Teus pecados serão perdoados, quando tiveres chorado muito.
➖ Senhor - replicou o jovem - chorarei toda vida; mas quisera ter certeza de que chorei bastante e de que me perdoaste.
Então o divino Crucificado, estendendo a mão, entregou-lhe um cálice e disse:
➖ Toma-o. Quando o encheres de água, será sinal de que teus pecados te foram perdoados.
Tremendo de comoção tomou o penitente o precioso cálice. Pouco distante dali havia uma grande pedra. Das entranhas daquela rocha brotava uma fonte.
➖ Na água dessa fonte encherei o meu cálice.
Subiu ao alto do morro. Acercou-se da rocha. Encostou o cálice à água, mas... a fonte secou.
➖ Secou-se a fonte - disse consigo o pecador - mas não secará a torrente que corre atrás daquelas montanhas.
E subiu aos montes e desceu aos vales e, por fim, chegou à suspirada torrente. Mas, quando quis encher o cálice... a torrente secou.
➖ Secou-se a fonte e secou-se a torrente - murmurou o jovem; certamente quer Deus que eu faça penitência e busque com trabalhos e suores a água do perdão. Detrás daqueles montes, do outro lado destas terras, está o mar. Secou-se a fonte secou-se a torrente, mas não secará o mar. Nas águas salgadas do mar encherei o meu cálice.
E pôs-se a caminho. Andou muito através de campos, montes e vales e, finalmente, do alto da gigantesca serra contemplou o mar distante. O' mar - exclamou - és a minha esperança; em tuas águas inesgotáveis encherei o meu cálice.
E desceu e correu ansiosamente. Já estavam muito perto as praias do mar. Dá um grito de alegria e avança com o cálice na mão para enchê-lo nas ondas que vinham beijar-lhe os pés. Mas, de repente, vê com horror que as ondas se afastam e fogem e o mar retroce diante dele... Cai de joelhos o pobre jovem e não se atreve a erguer os olhos ao céu; inclina a cabeça e rompe em copioso pranto de arrependimento. Chorou muito e sem parar. Quando voltou a si, quando quis enxugar a última lágrima dos seus olhos inflamados, viu que o cálice estava cheio de água, da água de suas lágrimas. Aí está: essa é a água que lava as nossas almas e nos obtém o perdão.
403. A CRUZ DO ROSÁRIO
Sobre São Pedro, o chaveiro do céu, há várias lendas, sendo a seguinte bastante interessante e instrutiva. Dizem que, um belo dia, São Pedro fechou a porta do céu por fora e veio dar umas voltas pelo mundo para ver como andavam as coisas por aqui. Parecia-lhe que estava chegando pouca gente ao céu e era preciso conhecer a causa dessa triste situação. Terminado o seu inquérito, e achando mais prudente não conceder entrevista aos jornais bisbilhoteiros, dirigiu seus apressados passos lá para cima. Aconteceu, porém, que, ao chegar à porta do paraíso, meteu a mão nos bolsos e - ai! - não encontrou mais a chave. Perdera-a e não sabia nem onde nem como. O que fazer em tamanha aflição?
➖ Descerei de novo à terra, disse, e procurarei um bom serralheiro que me faça uma nova chave.
De fato, não custou a encontrar um muito entendido e, disse-lhe:
➖ Olhe, eu preciso com urgência de uma chave para abrir a porta do céu. Você pode fazê-la?
➖Perfeitamente; mas custará mais, porque há de ser uma chave extraordinária.
➖ Que homens! - disse consigo S. Pedro - nem para o céu fazem uma chave de graça! Que seja! Não há dúvida; vamos lá para cima.
Subiu o serralheiro ao céu e, orgulhoso de sua arte, examinou o modelo, tirou as medidas e voltou à terra. Tomou dos instrumentos, talhou a chave, limou-a, poliu-a e, triunfante, apresentou-se à porta do céu. Mas - ai! - a chave entrava no buraco da fechadura, dava voltas, mas nada! Não abria a porta.
➖ Que venha outro serralheiro, mas depressa - disse São Pedro.
Chegou outro, mais presumido que o primeiro, fez as mesmas manobras e nada! A chave não abria.
Assim foram fracassando, uns após outros, todos os serralheiros.
Entretanto, as almas que vinham chegando, dos quatro cantos do mundo, começavam a impacientar-se, porque demorava muito a entrada no céu. São Pedro suava frio pois, por seu descuido, já ninguém podia entrar na glória. Por fim, uma humilde velhinha se ofereceu para abrir a porta.
➖ Bem. Experimente, vamos ver - disse São Pedro.
E a velhinha,que, na terra, fôra devotíssima de Nossa Senhora, meteu a cruz de seu rosário na fechadura, deu meia volta à chave improvisada e a porta se abriu.
➖ Bravo! Bravo! exclamaram todos, é o rosário de Nossa Senhora que nos abre a porta do Céu! E lá entraram cheios de alegria e contentamento
404. POBREZA FELIZ
Corre entre os russos a seguinte história. O czar (imperador) caiu gravemente enfermo. Não encontrando remédio, disse:
➖ Darei a metade de meu reino a quem me curar.
Reuniram-se então todos os sábios para uma consulta, cujo tema era: 'Como havemos de curar o imperador?' Depois de muito discutirem, disse um:
➖ Procurai um homem feliz, tirai-lhe a camisa e levai-a ao czar e, vestindo-a, ele vai se curar.
Mensagiros percorriam todo o império à procura do homem feliz, mas não o encontravam, porque um era rico, mas sempre doente; outro era são, mas pobre; este, são e rico, mas sem filhos; aquêle são, rico e com filhos, mas atribulado; todos, enfim, tinham do que lamentar-se.
Um dia, o filho do czar aproximou-se à noitinha de uma cabana, parou e ouviu que dentro um homem falava assim:
➖ Graças a Deus, trabalhei, comi e vou para a cama contente de ter cumprido o meu dever. Nada me falta, sou feliz. O filho do czar não cabia em si de contente, pois encontrara afinal o homem feliz e estava disposto a dar-lhe quanto dinheiro quisesse pela camisa, que levaria imediatamente ao czar, seu pai. Bateu à porta, entrou, pôs-se diante do homem feliz para comprar-lhe a cobiçada camisa, mas...o que ele viu? O homem feliz não possuía nem uma camisa! Bem-aventurados os pobres...
(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)