terça-feira, 18 de abril de 2023

SOBRE OS LIMITES INSONDÁVEIS DA GRAÇA DIVINA


Na França do século 19, havia um pianista judeu muitíssimo virtuoso. Seu nome era Hermann Cohen. O seu talento especial não apenas o transformou em uma estrela de eventos nos salões de Paris, como lhe valeu a honra de ser reconhecido como alguém de renome ao nível do húngaro Franz Liszt (1811-86), um dos maiores pianistas de todos os tempos. Então, de repente, no auge de uma carreira brilhante, Hermann Cohen, inexplicável e silenciosamente, afastou-se desta vida de estrelato para uma condição de absoluto anonimato.

Muitos anos depois, reapareceu em público revestido com os trajes de um monge carmelita, fruto de uma extraordinária conversão espiritual à fé católica. Uma vez convertido, inscreveu-se para admissão na Ordem do Monte Carmelo, sendo imediatamente aceito. Com o hábito da ordem religiosa, recebeu o nome de Agostinho e, no devido tempo, pronunciou os votos solenes de pobreza, castidade e obediência, completou os estudos teológicos e foi ordenado sacerdote. O zelo inspirador do Padre Agostinho e os seus incansáveis trabalhos missionários logo se tornaram ainda mais celebrados entre os parisienses do que suas magistrais performances musicais de antigamente. Como outrora, com paixão incomparável, ele se dedicou a oferecer às pessoas, em lugar de acordes profanos, uma música que tocava as almas com as belezas da Verdade eterna. 

Neste propósito, orava incessantemente pela conversão de sua amada mãe, então uma judia não batizada e excluída da Santa Igreja. Nesta infeliz condição, entretanto, a mãe do padre carmelita faleceu em 13 de dezembro de 1855. O padre Agostinho foi tomado então de uma profunda tristeza. Naqueles dias, enquanto pregava os sermões do Advento em Lyon, expressou a sua angústia  a um amigo em Cuers nos seguintes termos: 'Deus acaba de infligir um golpe terrível em meu coração. Minha pobre mãe está morta... e eu cheio de incertezas. No entanto, tantas orações foram oferecidos por ela que tenho a confiança de que algo muito especial tenha ocorrido entre a sua alma e Deus, do qual nada sabemos. Preciso ir a Paris para consolar a minha família'.

A sua tristeza e suas incertezas eram muitas, mas sua esperança na infinita bondade de Deus o sustentava. Ele deveria fazer a pregação naquela noite e muitos outros, no seu lugar, não teriam condições de o fazer. Mas, depois de muito chorar e de orar ainda mais, subiu ao púlpito como de costume. Ele pregou sobre a morte e, de acordo com o testemunho de todos os que o ouviram, falou com palavras que penetraram nas profundezas dos corações dos ouvintes, excitando as reflexões mais salutares e duradouras. E quando, ao final de seu discurso, evocou a sua própria realidade diante da morte, encontrou um coro de viva consternação e conforto.

E eis que, não muito tempo depois, ele encontrou-se com o Santo Cura d'Ars, a quem confidenciou  então a sua ansiedade pela morte da mãe, não convertida e passada desta vida sem a graça do batismo. 'Tenha esperança - disse-lhe o santo - 'Esperança! Você vai receber um dia, na Festa da Imaculada Conceição, uma carta que será muito consoladora para você'.

Estas palavras foram quase esquecidas quando, em 8 de dezembro de 1861, quase seis anos após a morte de sua mãe, padre Agostinho efetivamente recebeu de um sacerdote da Companhia de Jesus uma carta que tinha sido escrita por uma mulher que havia morrido recentemente em odor de santidade. A carta continha o seguinte texto:

'No dia 18 de outubro, depois da Santa Comunhão, encontrei-me enlevada num daqueles momentos de íntima união com Nosso Senhor em que Ele me faz sentir tão docemente a sua presença no Sacramento do Amor, que me parece que a fé não é mais necessária para crer. Depois de alguns momentos, Ele fez tornar a sua voz audível para mim de modo que eu pudesse compreender algumas explicações sobre uma conversa que eu havia tido na noite anterior. Lembrei-me então que, nessa conversa, uma amiga havia manifestado um certo estranhamento diante do fato de Nosso Senhor, que tudo prometia à oração, tivesse permanecido inerte às orações do padre Hermann, tantas vezes oferecidas pela conversão de sua mãe; e mais: a sua estranheza chegava quase a um descontentamento, e tive dificuldade em fazê-la entender que devemos adorar a justiça de Deus e não procurar penetrar em seus segredos. 

Diante da ousadia de se querer saber por que Nosso Senhor, sendo Ele o sumo Bem, havia resistido às orações do padre Hermann e não concedera a ele a conversão da sua mãe, Nosso Senhor respondeu: 'Por que ela sempre busca sondar os segredos de minha justiça e penetrar mistérios que não pode compreender? Diga-lhe que não devo a minha graça a ninguém, que a dou a quem eu quiser e que, agindo assim, não deixo de ser justo e a própria Justiça; mas que ela saiba também que, antes de falhar nas promessas que fiz à oração derrubaria os céus e a terra e que toda oração que tem a minha glória e a intenção pela salvação das almas por objeto sempre é ouvida, quando tem as qualidades necessárias. E para provar esta verdade, vou deixar você saber o que aconteceu no momento da morte da mãe do padre Agostinho...'

No momento em que a mãe do padre Hermann estava a ponto de dar o seu último suspiro, desmaiada e quase sem vida, Maria, nossa boa Mãe, apresentou-se diante de seu Divino Filho, e prostrando-se aos seus pés, disse: 'Graças e misericórdia, ó meu Filho, por esta alma que está prestes a perecer. Mais um momento e estará perdida, perdida por toda a eternidade! A salvação da alma da sua mãe é o que é mais querido a esse meu filho; mil vezes ele me consagrou e confiou isso à ternura, à solicitude do meu coração. Posso permitir que pereça? Esta alma é minha; Eu a quero, reivindico-a como herança, como preço do teu Sangue, e de minhas dores aos pés de tua Cruz.' 

Mal a Santíssima Virgem cessou de falar, quando uma graça, forte e poderosa, jorrou da fonte de todas as graças, o adorável Coração de Jesus, e espraiou-se sobre a alma daquela pobre judia moribunda, que a fez triunfar instantaneamente sobre toda a sua obstinação. A alma voltou-se imediatamente com amorosa confiança para Aquele cuja misericórdia a perseguiu até nos braços da morte, e disse: 'Ó Jesus, Deus dos Cristãos, Deus que meu filho adora, eu creio, espero em Vós, tende piedade em mim!'. Neste grito, ouvido só por Deus e que brotava do mais profundo do coração daquela mulher, estavam incluídos os sinceros arrependimentos pela sua obstinação e pelos seus pecados, o desejo do Batismo, o desejo explícito de o receber, e viver de acordo com as regras e preceitos de nossa sagrada religião se possível fosse a ela retornar à vida. Essa explosão de fé e esperança em Jesus foi o último sentimento dessa alma; ao pronunciá-lo diante do trono da Divina Misericórdia, romperam-se os débeis fios que ainda a prendiam em sua morada terrena, e ela se lançou aos pés dAquele que fôra o seu Salvador antes de ser o seu Juiz. 

Depois de ter mostrado a mim todas estas coisas, Nosso Senhor acrescentou: 'Faze saber isto ao Padre Agostinho; é uma consolação que desejo conceder aos seus longos sofrimentos, a fim de que em toda a parte abençoe e faça abençoar a bondade do coração de minha mãe e o seu poder sobre o meu'. Uma completa estranha para o reverendo padre Hermann, a pobre enferma que acaba de escrever estas linhas sente-se feliz por pensar que elas trarão consolo e bálsamo à ferida sempre sangrenta do seu coração - o coração de um filho e de um sacerdote. Ela se atreve a pedir-lhe a esmola de suas orações fervorosas e espera que ele não as recuse a quem, embora desconhecida para ele, está unida a ele pelos laços sagrados da mesma fé e das mesmas esperanças'. 

(Excertos da obra 'Glimpses of the Supernatural', 1884; texto publicado originalmente no blog 'Carmelite Spirituality', tradução do autor do blog).