sábado, 8 de janeiro de 2022

SOBRE A MALEDICÊNCIA

Três vidas diferentes temos nós: a vida espiritual, que a graça divina nos confere; a vida corporal, de que a alma é o princípio; e a vida social, que repousa os seus fundamentos na boa reputação. O pecado nos faz perder a primeira, a morte nos tira a segunda e a maledicência nos leva a terceira. A maledicência é uma espécie de assassinato e o maldizente torna-se réu de um tríplice homicídio espiritual: o primeiro e o segundo diz respeito a sua alma e à alma da pessoa com quem se fala; e o terceiro, com respeito à pessoa de quem se deturpa o bom nome.

São Bernardo diz, por isso, que os que cometem a maledicência e os que a escutam tem o demônio no corpo; aqueles na língua e estes no ouvido, e Davi, falando dos maldizentes, diz: 'Aguçaram a sua língua como a das serpentes', querendo significar que, à semelhança da língua da serpente, que, como observa Aristóteles, tem duas pontas, sendo fendida no meio, também a língua do maldizente fere e envenena o coração daquele com quem está falando e a reputação daquele sobre quem se conversa.

Peço-te encarecidamente que nunca fales mal de ninguém, nem direta nem indiretamente. Guarda-te conscientemente de imputar falsos crimes ao próximo, de descobrir os ocultos, de aumentar os conhecidos, de interpretar mal as boas obras, de negar o bem que sabes que alguém possui na verdade ou de atenuá-lo por tuas palavras; tudo isso ofende muito a Deus, de modo particular o que encerra alguma mentira, contendo então sempre dois pecados: o de mentir e o de prejudicar o próximo.

Aqueles que para maldizer começam elogiando o próximo são ainda mais maliciosos e perigosos. Confirmo, dizem eles, que estimo muito a fulano, que, aliás, é um homem de bem, mas para dizer a verdade não teve razão em fazer isso e aquilo. Aquela moça é muito boa e virtuosa, mas deixou-se enganar. Não está vendo a astúcia? Quem quer disparar um arco puxa-o primeiro para si o quanto pode, mas é só para arremessá-lo com mais força. Assim parece que o maldizente primeiro retira uma fofoca que já tinha na língua, mas faz isso somente para que lançando-a depois como uma flecha, com maior malícia, penetre mais profundamente nos corações...

(Excertos da obra Filoteia, de São Francisco de Sales)