terça-feira, 21 de janeiro de 2020

'O TEU ROSTO, SENHOR, EU PROCURO!'

E agora, ó homem apequenado, foge um momento às tuas ocupações, esconde-te um pouco dos teus pensamentos tumultuosos. Atira agora fora os teus pesados cuidados e deixa para depois os teus laboriosos trabalhos. Reserva um pouco de tempo para Deus e repousa nEle por instantes. 'Entra na cela' da tua alma, expulsa tudo, exceto Deus e o que te ajuda a procurá-lo; 'fechada a porta', procura-o! Diz agora, 'ó meu coração'; diz agora a Deus: 'busco o teu rosto, o Teu rosto, Senhor, eu procuro'.

E agora, pois, tu Senhor meu Deus, ensina o meu coração onde e como te procurar, onde e como te encontrar. Ó Senhor, se tu não estás aqui, onde te buscarei, ausente? E se tu estás em toda a parte, porque não te vejo eu presente? Mas certamente tu habitas a luz inacessível. E onde está a tal luz inacessível? Ou de que modo acederei a essa luz inacessível? Ou quem me conduzirá e introduzirá nela, para que nela te veja? Porque sinais, enfim, porque forma, te buscarei? Nunca te vi, Senhor meu Deus, não conheço a tua face. Que fará, Senhor altíssimo, que fará este teu longínquo exilado? Que fará o teu servidor, ansioso do teu amor e atirado para longe da tua face? 

Que deseja muito ver-te, mas a tua face está demasiadamente afastada dele. Deseja muito alcançar-te, mas inacessível é a tua habitação. Deseja vivamente encontrar-te, mas não sabe o teu lugar. Dispõe-se a procurar-te, mas ignora o teu rosto. Senhor, tu és o meu Deus, tu és o meu Senhor e nunca te vi! Tu me criaste e recriaste, e todos os meus bens me dispensaste e ainda não te conheço! Numa palavra: fui feito para te ver e ainda não fiz aquilo para que fui feito. Ó mísera sorte a do homem desde que perdeu aquilo para que foi feito! Ó dura queda e funesta aquela! Ai! o que perdeu e o que encontrou? O que lhe fugiu e o que lhe restou? 

Perdeu a felicidade para a qual foi feito e encontrou a miséria para o que não foi feito. Fugiu-lhe aquilo sem o qual é de todo infeliz e ficou aquilo que, por si, é apenas desprezível. Então, 'o homem que comia o pão dos anjos' agora tem fome; agora, come 'o pão das dores' que então desconhecia. Ai! luto comum dos homens, pranto universal dos filhos de Adão! Ele arrotava de saciedade e nós suspiramos de fome. Ele vivia na abundância e nós mendigamos. Ele vivia em plena felicidade e, miseravelmente, tudo abandonou; nós, infelizmente, carecemos e, miseravelmente, desejamos e, ai, quão vazios permanecemos. 

Por que não guardou, para nós, quando o podia facilmente, aquilo de que nos encontramos tão gravemente carentes? Por que nos ocultou assim a luz e nos lançou nas trevas? Sim, por que nos furtou a vida e infligiu a morte? Acabrunhados de penas, de onde fomos expulsos e para onde fomos atirados! De onde fomos precipitados e onde estamos atracados! Da terra natal para o exílio, da visão de Deus para a nossa cegueira. Da fecundidade da imortalidade para a amargura e o horror da morte. Ó desgraçada mudança! De tão grande bem para tão grande mal! Grave dano, grave dor, grave tudo! 

Infeliz de mim, um entre os outros exilados filhos de Eva afastados de Deus, o que empreendi e o que consegui acabar? Para onde tendia e onde cheguei? A que aspirava e em que situação suspiro? 'Procurei os bens e eis a perturbação!'. Tendia para Deus e caí sobre mim mesmo. Procurava o repouso no meu retiro e encontrei a tribulação e a dor no meu íntimo. Queria rir com a alegria da minha mente e sou forçado a rugir pelo gemido do meu coração. Esperava a alegria e eis que os suspiros se tornam mais densos. E tu, Senhor, até quando? Até quando, Senhor, tu nos esquecerás? Até quando afastarás de nós a tua face? Quando nos olharás e nos ouvirás? Quando iluminarás os nossos olhos e nos mostrarás a tua face? Quando te oferecerás a nós? 

Olha-nos, Senhor, escuta-nos, ilumina-nos, mostra-te tu próprio a nós! Oferece-te a nós outra vez para que bem estejamos, nós que, sem ti, tão mal estamos. Tem piedade dos nossos trabalhos e dos nossos esforços para te alcançar, nós que nada somos capazes sem ti. Ajuda-nos. Que eu não desespere suspirando, suplico-te, Senhor, mas que respire esperando. O meu coração tornou-se amargo pela sua desolação. Suplico-te, Senhor: adoça-o com a tua consolação. Na minha fome comecei a procurar-te. Suplico-te, Senhor: que eu não acabe em jejum de ti. Faminto, aproximei-me; que eu não me vá embora insaciado. 

Pobre, vim ao rico; miserável, ao misericordioso: que eu não volte sem nada e desprezado. E se suspiro antes de comer, concede ao menos que eu coma depois dos suspiros. Ó Senhor, curvado, não posso senão olhar para baixo; levanta-me para que eu possa tender para o alto. As minhas iniquidades subiram mais alto que a minha cabeça, envolvem-me e sobrecarregam-me como um pesado fardo. Liberta-me, descarrega-me, para que o sorvedouro delas não aperte a sua boca sobre mim. Que me seja permitido levantar os olhos para a tua luz, pelo menos de longe, pelo menos das profundezas. 

Ensina-me a procurar-te e mostra-te àquele que te procura, porque não te posso procurar se tu não me ensinas, nem encontrar-te se não te mostras. Que te busque desejando e te deseje buscando. Que te encontre amando e te ame encontrando. Confesso, Senhor, e te dou graças porque criastes em mim esta tua imagem para que, de ti lembrada, pense em ti e te ame. Mas está tão corrompida pela ação dos vícios, tão ofuscada pelo fumo dos pecados, que não pode fazer aquilo para o que foi feita se tu a não renovas e reformas. Não me atrevo, Senhor, a penetrar na tua altura , porque não lhe comparo, de modo nenhum, a minha inteligência. Mas desejo reconhecer um pouco a tua Verdade, que o meu coração crê e ama. Na verdade, não procuro antes compreender para crer, mas creio para compreender. Pois também creio nisto: se não acreditar, não compreenderei.

(Excertos da obra Proslogion seu Alloquium de Dei existentia, de Santo Anselmo)