segunda-feira, 16 de abril de 2018

SOBRE A VERDADEIRA AMIZADE

Jônatas era filho de Saul, o primeiro rei de Israel e, como primeiro na linhagem direta da família real, teria sido o candidato natural na sucessão do pai. Mas Jônatas reconheceu em Davi, filho de Jessé, o rei ungido por Deus para ser sucessor de Saul, que se tornara, então, um rei abandonado por Deus pois deixara de observar as ordenanças e preceitos de Deus. Nesta condição, Jônatas teve que se colocar entre a cruz e a espada e, superando os laços de sangue, optou por uma amizade fiel e verdadeira a Davi, ainda que isso tenha lhe custado um reino e o poder de ser rei.

'Jônatas fez um pacto com Davi, que ele amava como a si mesmo' 
(I Sm 18, 3)

Jônatas, jovem de grande nobreza, sem olhar para a coroa régia nem para o futuro reinado, fez um pacto com Davi, igualando assim, pela amizade, o súdito ao senhor. Deu preferência a Davi, mesmo quando este foi expulso por seu pai o rei Saul, tendo de se esconder no deserto, como condenado à morte, destinado à espada. Jônatas então humilhou-se para exaltar o amigo perseguido: 'Tu, são suas palavras, serás rei e eu serei o segundo depois de ti'.

Que espelho estupendo da verdadeira amizade! Admirável! O rei, furioso contra o servo, excitava todo o país contra um possível rival do reino. Assim, acusava sacerdotes de traição, trucidando-os por uma simples suspeita. Percorria as matas, esquadrinhava os vales, cercava com suas tropas os montes e penhascos, fazendo todos prometerem tornar-se vingadores da indignação real. Entretanto, Jônatas, o único que poderia ter razão de invejar, só ele julgou dever resistir ao seu pai, oferecendo a paz ao amigo, aconselhando-o em tão grande adversidade, preferindo a amizade ao reino: 'Tu serás rei e eu serei o segundo depois de ti'. Em contraste, vede como o pai estimulava a inveja do adolescente contra o amigo, apertava-o com repreensões, amedrontava-o com ameaças de ser despojado do reino, prometendo privá-lo da nobreza.

Quando pronunciou sentença de morte contra Davi, Jônatas não abandonou o amigo. 'Por que deve morrer Davi? que culpa tem? que fez ele? Tomou sua vida em suas mãos e feriu o filisteu e tu te alegraste. Por que então irá morrer?' A tais palavras, louco de cólera, o rei tentou transpassar Jônatas, com a lança contra a parede, ameaçando aos gritos: 'Filho de mãe indigna, bem sei que gostas dele para vergonha tua, confusão e infâmia de tua mãe. Depois vomitou todo o veneno sobre o coração do jovem, acrescentando incentivo à sua ambição, alimento à inveja, estímulo à rivalidade e à amargura: 'Enquanto viver o filho de Jessé, não se estabelecerá o teu reino'.

Quem não se abalaria com tais palavras? Quem não se encheria de inveja? Que amor, que agrado, que amizade elas não corromperiam, não diminuiriam, não fariam esquecer? Jônatas, o moço cheio de afeição, guardou o pacto da amizade, forte contra as ameaças, paciente contra o furor, desprezou o reino por causa da amizade, esquecido das glórias, bem lembrado da graça: 'Tu serás rei e eu serei o segundo depois de ti'.

Esta é a verdadeira, perfeita, estável e eterna amizade, aquela que a inveja não corrompe, suspeita alguma diminui, não se desfaz pela ambição. Assim provada, não cede; assim batida, não cai; assim sacudida por tantas censuras, mostra-se inabalável e, provocada por tantas injúrias, permanece imóvel. Vai, então, e faze tu o mesmo.

(Excertos da obra 'Do Tratado sobre a amizade espiritual', do abade Elredo, século XII)