sábado, 29 de outubro de 2016

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XVI)

Eu acabara de fazer o retiro espiritual e já me preparava para partir quando o velho prior me tomou pelas mãos e me convidou para caminhar com ele pelas longas alamedas do velho mosteiro. O silêncio era absoluto e eu podia distinguir claramente a pisada mais forte das minhas sandálias ao sibilo suave dos passos do prior. Ele parecia mergulhado num recolhimento profundo e eu tive a impressão de que pronunciava, como um sopro de sussurro, pequenas jaculatórias e a oração de Jesus.

De repente, virou-se para mim e disse: 'É assim que pensas?' Eu respondi quase que mecanicamente: 'Como? Sim, mas...' Num precioso segundo, vendo seus olhos pequenos e brilhantes fixados em mim, tive a certeza de que era absolutamente natural para ele desvendar por completo a minha mente e ler meus pensamentos como se eles fossem traduzidos sob gritos ensurdecedores. 'A morte de um bom amigo ocupou meus pensamentos agora e estava começando a rezar por ele...'

'Não há morte. Há apenas uma passagem de um estado para outro. A vida do outro mundo é muito mais real do que esta vida que temos. Quanto mais o cristão viver a vida interior, mais ele se distanciará deste mundo, e imperceptivelmente, se aproximará do outro mundo. E quanto mais ele for perfeito nesta missão, quando o fim vier, mais fácil será a passagem. A cortina frágil que nos separa da outra vida simplesmente se desvanecerá e o espírito vai se impor à carne imperfeita'.

'E alcançar esta vida interior é muito difícil?' perguntei, me desviando sem muito sucesso de uma roseira. 'Não; se você estiver seguindo o caminho certo, não. A vida interior é um caminho, um único caminho, que deve ser seguido sem meandros ou atalhos. Ninguém que mira o conforto pode esperar alcançar a paz interior. A paz interior implica uma percepção contínua das nossas fragilidades, da nossa pequenez e do firme propósito em superar nossas limitações humanas e ir mais além. Ao se acostumar aos pecados, a graça deixa de produzir qualquer impressão sobre nós, e ficamos então indiferentes à vida cristã. O passo seguinte seria assumir uma hostilidade aberta à santa Vontade de Deus e aí estaríamos como ovelhas perdidas. Por outro lado, aqueles que se levantam das quedas, que se arrependem sinceramente dos seus erros, ainda que com recaídas diversas, começam a sentir pelo pecado uma repugnância inicial e depois um ódio mortal. Aos poucos, todos os pecados se tornam repugnantes e odiosos para eles, e estes homens tornam-se, então, os santos de Deus'. 

Ele fez uma longa interrupção e tomamos uma alameda mais estreita, o que me obrigou a segui-lo um pouco mais atrás. Ia perguntar sobre este caminho de vida espiritual quando ele, antecipando à minha colocação, prosseguiu numa fala pausada: 'Tudo é parte do caminho; tudo o que é inerente à natureza humana. A felicidade e a desgraça, a ascensão e a queda, a saúde e a doença, a glória e a desonra, a riqueza e a pobreza, a alegria e a dor, o regozijo e o silêncio, tudo procede de Deus e deve ser aceito e assimilado para a glória de Deus. Muitas pessoas atingidas pelo infortúnio tornam-se deprimidas, considerando tudo o que perderam, ou rebeldes, acreditando que elas sofrem injustamente. A verdade é que Deus se inclina sobre todos os nossos próprios caminhos buscando o resgate ao Caminho que ele tem para nós. Mas nós não entendemos assim, porque nossa fé é tíbia e fraca. Lembre-se sempre que todos os problemas na vida nos são dados para que nos afastemos dos caminhos do mundo em direção ao caminho de Deus. Quando nos apegamos ao mundo, perdemos a Deus e, sem Deus, não podemos nunca ter a paz de espírito interior.'

Concentrei-me totalmente às suas palavras e despachei sem aviso prévio alguns pensamentos que ousaram perpassar pela minha mente naquele momento. Minha mente livre de pensamentos vazios era escrava apenas da sabedoria do velho ancião: 'Quando não temos a paz de espírito, não podemos ver Deus. Somos capazes de entender o passado dentro dos limites permitidos por Deus, mas não sabemos o que fazer agora e o que planejar no futuro. Se não temos paz da alma, isso significa que, internamente, nós ainda não chegamos a um estado de plenitude e estamos cegos com as paixões que nos impedem de ver o mundo em sua verdadeira luz. Mas quando alcançamos uma paz interior, nossas paixões são dominadas e vemos claramente quem somos e para onde estamos indo. Veja que é impossível ser um bom servo de Deus e trabalhar na Sua vinha com algum sucesso, sem que a paz interior nos atinja primeiro. As pessoas valorizam a paz acima de tudo, mas é óbvio que eles não podem alcançá-la se não possuem eles mesmos esta paz. Desta forma, muitos sermões, livros e exercícios, não produzem efeitos se eles não nascem da paz interior, da contemplação e do desapego às coisas materiais. Mas quando você alcança a paz interior, tudo dá certo, porque Deus está com você. Só na paz interior profunda é que podemos ver a Deus e entender em plenitude a sua Santa Vontade'. 

'E para alcançar...' A frase do prior recomeçou como um ricochete ao meu pensamento: 'E para alcançar esta paz interior é preciso somente paciência, perseverança e oração... muita oração. Agora vá porque o seu colega já está ficando impaciente por não encontrá-lo para seguirem viagem'. Eu devo ter dito 'obrigado...' ou algo assim. L. me chamava realmente com alguma impaciência no limiar da escadaria central. Volvi o olhar e o velho ancião já se afastara de mim em direção às alas internas do mosteiro. Desci então as escadas com calma, com muita calma, imbuído de uma paciência de Jó. Nos lábios, como um sopro de sussurro, comecei a primeira jaculatória e a primeira oração de Jesus de um novo, de um novo e longo caminho. 

('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)