quinta-feira, 29 de agosto de 2013

SE ADÃO E EVA PECARAM, QUE CULPA TEMOS NÓS?

Apresenta-se aqui aquela questão que algumas pessoas costumam comentar entre si. Ao pecar, estão prontas a acusar seja o que for, exceto a si mesmas. Declaram elas: se foram Adão e Eva que pecaram, que fizemos nós, pobres infelizes, para nascermos na cegueira da ignorância e nos tormentos da dificuldade? 

(...) Dirijo uma breve resposta a essas pessoas para que se tranquilizem e deixem de murmurar contra Deus. Pois poderiam, talvez, se lamentar com razão se homem algum houvesse existido que não tenha podido triunfar do erro e da concupiscência. Uma vez, porém, que Deus se acha em tudo presente e que de tantas maneiras se serve das criaturas para chamar a si — a Ele, que é o Senhor — esse seu servo que dele se desviou, a fim de instruí-lo, caso creia; consolá-lo, caso espere; encorajá-lo, caso ame; ajudá-lo, caso faça esforço; e escutá-lo, caso implore. Não te recriminam pelo fato de ignorares, contra tua própria vontade, mas de negligenciares procurar saber o que ignoras. Tampouco te é imputado como culpa não poderes curar teus membros feridos, mas de menosprezares Aquele que te quer curar. Enfim, são esses os teus verdadeiros pecados. 

(...) As más ações que cometemos por ignorância e as boas que não conseguimos praticar, apesar da boa vontade, denominam-se 'pecados', visto tirarem sua origem daquele primeiro pecado cometido por livre vontade. Esse, com efeito, como antecedente, mereceu os outros pecados, como consequentes. Assim, de modo semelhante, costumamos denominar 'língua' não apenas o órgão que pomos em movimento na boca ao falarmos, mas também aquilo que resulta desses movimentos, isto é, a forma e a sequência sonora das palavras. Nesse sentido, dizemos: uma é a língua grega; outra, a latina. Da mesma maneira, denominamos 'pecado' não apenas o que em sentido próprio é pecado, por ter sido cometido conscientemente e por livre vontade, mas também o que é a consequência necessária do mesmo pecado, como castigo do mesmo. 

(...) Dessa maneira, aprouve, muito justamente a Deus, que governa soberanamente todas as coisas, que nascêssemos daquele primeiro casal, com ignorância e dificuldade no esforço e na mortalidade. Isso porque, ao pecarem, eles foram precipitados no erro, na dor e na morte. Assim, na origem do homem devia se manifestar a justiça daquele que pune; e no decorrer de sua vida, a misericórdia daquele que liberta. 

Posto que, se os primeiros homens, desde a sua condenação, perderam a sua felicidade, não perderam por aí a sua fecundidade. Logo, a sua descendência, mesmo carnal e mortal, poderia tornar-se em seu gênero certo elemento de honra e ornamento para o universo. Na verdade, não era justo que o primeiro homem gerasse filhos melhores do que ele mesmo era. Por outro lado, convinha, ao se converter para Deus, que qualquer homem pudesse triunfar do castigo que havia merecido ao nascer, no afastamento de Deus. Outrossim, não convinha que essa boa vontade de regresso a Deus fosse impedida. Pelo contrário, que fosse ajudada. O Criador de todas as coisas mostrava além do mais, por esse meio, com quanta facilidade o primeiro homem teria podido, se o quisesse, manter-se no estado no qual havia sido criado, visto que sua descendência pôde vir a triunfar do estado em que nascera. 

Em seguida, se supusermos que Deus criou uma só alma, da qual tiraram sua origem as almas de todos os homens que nascem, quem poderia negar não ter cada homem pecado, ao pecar o primeiro homem? No caso, porém, de as almas serem criadas separadamente, uma a uma, na ocasião do nascimento de cada homem,não se pode achar ser contra a razão, mas, ao contrário, perfeitamente conveniente e bem conforme a ordem que os desméritos da primeira alma sejam conaturais à alma seguinte, e que o mérito da segunda seja conatural à antecedente. 

Com efeito, o que há de indigno para o Criador se, ainda assim, ter ele querido demonstrar a dignidade da alma — natureza espiritual — ultrapassar de muito os seres corporais, e que o grau de profundidade ao qual uma alma chegou, em sua degradação, possa ser o ponto de origem de outra alma? Eis por que, quando a alma, ao pecar, cai na ignorância e nas dificuldades, fala-se então, com razão, de castigo, visto que, certamente, ela foi melhor antes de tal castigo. 

(...)  Por outro lado, ao admitirmos que talvez as almas já tenham preexistido em algum lugar secreto disposto por Deus, e serem elas enviadas para animar e governar os corpos de cada uma das pessoas que for nascendo — nesse caso, estão elas destinadas a esse ofício para dar uma boa direção ao corpo em que nascem, sujeito à penalidade do pecado, isto é, padecendo a mortalidade devida ao pecado do primeiro homem. Fazem isso dominando o corpo por meio das virtudes, para submetê-lo a uma servidão perfeitamente legítima e conveniente, para lhe fazer adquirir assim progressivamente, conforme a ordem, em tempo oportuno, um lugar na morada incorruptível do céu. Essas almas, ao entrarem na vida presente, sujeitando-se ao encargo de reger membros mortais, devem também submeter-se ao esquecimento da vida precedente, assim como aceitar os trabalhos desta vida. Aí está a explicação daquela ignorância e dificuldades que foram para o primeiro homem o castigo de sua queda mortal: é para assim ser expiada a miséria da própria alma. 

Mas para as outras almas, elas encontram, desse modo, acesso à sua função de recuperar para o corpo a incorruptibilidade. Assim, tampouco, são denominados pecados a ignorância e a fraqueza, a não ser no sentido de que o corpo, provindo da geração de pecador, comunica às almas que vêm a unir-se a elas aquela mesma ignorância e dificuldade. Mas nem essas almas, nem o Criador devem ser julgados responsáveis, como de uma falta. Pois Deus deu-lhes a capacidade de agir bem, nos deveres penosos, e também ensinou-lhes o caminho da fé, em meio à cegueira da ignorância. E acima de tudo, deu-lhes esse reto julgamento pelo qual toda alma reconhece que é preciso procurar tudo o que não lhe traz utilidade alguma em ignorar. Deu-lhes ainda o poder de fazer esforços perseverantes no cumprimento de seus deveres, para vencerem a dificuldade de agir bem. Implorarem assim a ajuda do Criador para a obtenção de auxílio divino nos seus esforços. 

Deus mesmo ordena que se façam esforços, seja de modo exterior por intermédio da lei, seja por convites pessoais, no íntimo do coração. E ao mesmo tempo, prepara a glória daquela cidade bem-aventurada para os vencedores (do demônio), que arrastou o primeiro homem a tal miséria, tendo-o vencido por uma pérfida persuasão. E é precisamente aceitando essas misérias que os homens triunfam do demônio pela excelência de sua fé. Não é um fato de pouca glória o de vencerem o demônio, tomando sobre si aquele mesmo suplício pelo qual o espírito das trevas glorificava-se de ter vencido os homens. 

(...) Finalmente, se admitirmos a suposição de que as almas, antes de sua união com o corpo, encontravam-se em algum outro lugar e não foram enviadas pelo Senhor nosso Deus, mas, ao contrário, vieram espontaneamente unir-se aos corpos, a consequência é então fácil de ser compreendida. Tudo o que elas experimentam de ignorância e dificuldades, sendo consequência de sua própria vontade, não há aí, de modo algum, nada que se possa incriminar ao Criador. 

Aliás, mesmo se o próprio Senhor Deus tivesse enviado essas almas, uma vez que não as privou, até em meio da ignorância e das dificuldades, da vontade livre, nem da faculdade de pedir, de procurar e de esforçar-se, propondo-se Ele a dar às que lhe pedissem, de mostrar-se às que procurassem e de abrir-se às que batessem, Ele seria totalmente isento de qualquer culpa. Ele consentiria, assim, a essas almas zelosas e de boa vontade, poderem obter triunfo sobre a ignorância, as dificuldades, e dar-lhes-ia um meio de adquirir a coroa de glória. Quanto às almas negligentes, que pretendem desculpar seus pecados por meio de suas fraquezas, o Senhor Deus não consideraria como crime essa mesma ignorância ou dificuldade. Entretanto, por terem preferido permanecer envoltas nelas, em vez de chegar à verdade e à facilidade, procurando e esforçando-se com zelo, confessando com humildade suas faltas e orando, Ele as haveria de punir com justo castigo.

(Excertos da obra 'O Livre Arbítrio' de Santo Agostinho, Ed. Paulus, 1995, cap. 19-20; p. 210 - 217)