segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A LITURGIA DA SANTA MISSA (III)

3.  RITOS INICIAIS: O INTROITO

A Missa vai começar. É importante ressaltar que uma missa possui certas partes comuns a todas as missas - é o chamado Ordinário da Missa, que compreende 5 orações: Kyrie (Senhor, tende piedade), o Gloria, o Credo, o Sanctus (Santo, Santo, Santo) e o Agnus Dei (Cordeiro de Deus), orações que podem ser omitidos em algumas missas específicas. Por outro lado, uma determinada missa apresenta algumas orações que são apenas dela, é o chamado Próprio da Missa, que também compreende 5 orações: Introito (Entrada), Salmo Responsorial (ou Gradual), Aleluia (com um versículo específico para a missa), Ofertório e Comunhão. 

Convém que, já antes da própria celebração, se conserve o silêncio na igreja, na sacristia, na secretaria e mesmo nos lugares mais próximos, para que todos se disponham devota e devidamente para celebrarem os sagrados mistérios. Os ritos iniciais da Santa Missa, que precedem a liturgia da palavra, compõem-se da entrada (introito), saudação, ato penitencial, Kyrie, Glória e oração do dia e têm o propósito de introdução e de preparação dos fieis reunidos em assembleia para ouvir com devoção a palavra de Deus e celebrar dignamente os sagrados mistérios.

O Introito (do latim introitus - que significa entrada) consiste, portanto, na primeira oração do Próprio da Missa e sempre consistiu, desde as suas origens, no canto de um hino religioso na forma de um salmo, compatível com a natureza gozosa, penitente ou triunfante da Santa Missa. Nos primeiros tempos, a procissão do introito era bastante solene e se cantava um salmo completo durante a mesma. A partir do século VIII, o rito do introito passou a ser bastante mais simplificado. Acompanhemos as instruções correspondentes ao atual Missal Romano [com colchetes adicionais]:

47. Reunido o povo [em silêncio prévio], enquanto o sacerdote entra com o diácono e os ministros [procissão de entrada], começa o canto da entrada [natureza e forma de execução detalhadas na sequência das instruções do Missal]. A finalidade desse canto é abrir a celebração, promover a união da assembléia, introduzir no mistério do tempo litúrgico ou da festa, e acompanhar a procissão do sacerdote e dos ministros.

Procissão de Entrada: O sacerdote e os ministros – concelebrantes, diáconos, acólitos – dirigem-se ao presbitério, diretamente da sacristia ou em procissão a partir do fundo da igreja, com os auxiliares portando exclusivamente, os seguintes elementos: a cruz processional, o Missal ou o Evangeliário e o turíbulo com incenso, pois estes são símbolos inerentes ao caráter sacrificial da Santa Missa. Quaisquer outros elementos são vedados de inserção na procissão de entrada, por não se enquadrarem com a essência do rito sagrado (e, por isso, não discriminados em rubricas específicas do Missal), sejam cartazes, trajes e vestimentas especiais ou elementos de quaisquer outra natureza, ainda que com simbologia religiosa.

Canto de Entrada: o canto compreende a antífona (melodia) do Próprio da Missa com o seu salmo (em latim) ou 'outro canto condizente', comumente na língua vernácula, desde que aprovado pela Conferência dos Bispos do país (a CNBB, no caso do Brasil), podendo ser executado de três maneiras: por um grupo de cantores e o povo, por um cantor e o povo ou somente por um grupo de cantores (neste caso, sem a participação do povo). 

Na primeira opção, são utilizados cantos gregorianos (que são sempre em latim) obtidos em livros próprios (os chamados Gradual Romano ou Gradual Simples) ou prescritos pelo próprio Missal, em documentos anexos (os chamados Lecionários). Poucos católicos têm conhecimento formal desta possibilidade de introito gregoriano nas Santas Missas, já que a segunda opção, na forma de um 'canto condizente' na língua vernácula (do lugar), ao qual se impõe o aval dos bispos locais, é de absoluta e generalizada aplicação no Brasil.

O 'canto condizente' seria, por exemplo, em língua nativa, a tradução da antífona original em latim ou mesmo um canto apropriado à dignidade e ao rigor litúrgico, amparado pelo aval dos bispos do país. Este contexto é claramente deturpado em um grande número de missas, pela repetição exaustiva do mesmo canto de entrada em diferentes missas, pelo imiscuir da música profana para incrementar 'a participação do povo' na celebração, pela inclusão de matéria melódica ou textual completamente divorciada do conteúdo litúrgico do dia ou pela simples mesmerização do culto sagrado.

Existe, ainda, uma terceira opção, que é o introito sem canto de entrada. Neste caso, a antífona proposta no Missal (por exemplo) é recitada pelos fiéis, por alguns deles, por um leitor indicado ou ainda pelo próprio sacerdote (neste caso após a Saudação), que também pode cantar a antífona ou até mesmo adaptá-la a modo de exortação inicial. 

Chegando ao presbitério, o celebrante e seus auxiliares fazem uma genuflexão se houver tabernáculo ou uma vênia (inclinação profunda) ao altar, em caso contrário. Após a genuflexão ou a vênia, o celebrante dirige-se ao altar, inclina-se e beija o altar. Em missas específicas, o sacerdote procede ainda à incensação do altar.

domingo, 17 de janeiro de 2016

FAZEI TUDO O QUE ELE VOS DISSER

Páginas do Evangelho - Segundo Domingo do Tempo Comum


Neste segundo domingo do tempo comum, estamos com Jesus e Maria nas bodas de Caná. Não sabemos detalhes do evento, os nomes dos noivos ou do mestre de cerimônia, o tempo da celebração. Mas a presença de Jesus e de Maria naquela ocasião em Caná da Galileia são o testemunho vivo da santidade e das graças associadas àquela união matrimonial. Muitos teólogos manifestam inclusive que foi, neste enlace de santa vocação e harmonia, que Jesus elevou o casamento à condição de sacramento, imagem de suas núpcias eternas com a Santa Igreja.

E o vinho veio a faltar. Nossa Senhora tem a clara percepção da situação constrangedora e aflitiva dos noivos e de suas famílias, porque faltou o vinho. É a Mãe que roga, que intercede, que suplica ao Filho Amado: 'Eles não têm mais vinho' (Jo 2, 3). Medianeira e intercessora de nossas aflições e angústias, de Caná até os confins da terra, Nossa Senhora leva a Jesus as súplicas de todos os seus filhos e filhas de todos os tempos. É ela que nos abre as portas da manifestação da glória de Jesus para a definitiva aliança dos céus com a humanidade pecadora, mediante a sua súplica de Mãe face à angústia humana: 'Fazei tudo o que Ele vos disser' (Jo 2,5).

E eis que havia ali seis talhas de pedra, que foram 'enchidas até a boca' (Jo 2,7). E a água se fez vinho, nas mãos do Salvador. Da angústia, faz-se a alegria; da aflição, tem-se o júbilo; da ansiedade, nasce o alívio e a serenidade. Alegria, júbilo, alívio e serenidade que são os doces frutos da plena santificação. Este vinho nos traz a libertação do pecado e nos coloca nas sendas do céu, pois nos deleita com as graças da virtude, do santo juízo, da sabedoria de Deus. Mas nos cabe encher nossas talhas de água até a boca, prover os nossos corações do mais pleno amor humano, para que a santificação de nossas almas seja completa no coração de Deus.

'Este foi o o início dos sinais de Jesus' (Jo 2,11). Em Caná da Galileia e por Maria, mais que o primeiro milagre, a glória de Jesus foi manifesta à humanidade pecadora. O firme propósito pessoal em busca da virtude e da superação das nossas vicissitudes humanas é a água que será transformada no vinho pela graça e pela misericórdia de Deus em nossos corações aflitos e inquietos, enquanto não repousados na glória eterna. Enchei, portanto, as vossas talhas de água e fazei tudo o que Ele vos disser, com a intercessão de Maria. Eis aí a pequena e a grande via em direção ao Coração de Deus, que nos foi legada um dia em Caná da Galileia.

sábado, 16 de janeiro de 2016

DA VIDA ESPIRITUAL (88)



(diante da miséria e da doença terminal de um homem)

Dai-me, Senhor, a graça de sentir, através da obscuridade e da umidade deste casebre, o calor de Vossa Manjedoura... Dai-me, Senhor, a graça de perceber, além da dor e do sofrimentos humanos, o brilho da Vossa Cruz... Dai-me, Senhor, a graça de ver, atrás deste rosto e deste corpo destruídos pela doença, a luz da Vossa Face...

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

AS ORIGENS DO MONAQUISMO CRISTÃO

Embora os ideais de castidade e completo recolhimento em louvor do Reino de Deus fossem buscados desde os primórdios da Cristandade, é desconhecida a origem formal do chamado Monaquismo ou Monacato; em geral, um monge é aquele que segue uma determinada regra antiga, mas, é certo que muito antes destas regras, já existiam formas de vida monástica baseadas na segregação do mundo – o contemptus saeculi – como condição prévia para a purificação interior e a contemplação divina.

João Cassiano que, depois de passar muitos anos entre os monges da Palestina, Egito e Constantinopla, estabeleceu-se na região da Provença e fundou dois mosteiros em Marselha, onde permaneceu o resto da sua vida, considerava que o Monaquismo tinha origem no tempo dos Apóstolos; outros asseguram a sua origem na época de Jesus (por meio dos essênios e terapeutas, que se dispersaram até a região da Tebaida – fronteira entre a Ásia e a África – onde teria nascido efetivamente o Monaquismo Cristão.

Com a promulgação da liberdade de culto e religião decretada pelo Édito de Milão de Constantino, ser cristão passou a não comportar os riscos de outrora e, assim, muitos deles, querendo levar uma vida mais fervorosa e menos atrelada aos valores do mundo, partiram para o deserto para uma vida de pobreza e humildade de acordo com os preceitos do Evangelho, ficando conhecidos como os 'Padres do Deserto'.

A maior parte vivia isolada, por vezes com alguns discípulos à volta de um mestre, só voltando a encontrar-se com a comunidade para a celebração da liturgia. Muito pouco se sabe sobre a sua vida, revelado pelos chamados Apotegmas – textos que nos relatam os seus atos através das suas palavras e que nos apresentam homens submetidos à tentação que se dedicam a viver o ideal de perfeição ensinado por Jesus.

Como expoente e símbolo deste tipo de vida monástica, chamada de anacoreta ou eremita, tem-se Santo Antônio do Egito, também conhecido por Santo Antão, falecido no ano de 356, que influenciou diretamente através do seu próprio exemplo, e indiretamente por meio do espírito, um grande número de discípulos do anacoretismo. Graças à sua ação, o Monaquismo espalhou-se pelo alto Egito, Palestina, e até à Síria e à Mesopotâmia. Nesta variante, existiram eremitas que viveram em cima de árvores ou simplesmente apoiados sobre uma coluna. 

Mas o anacoretismo não foi a única forma de vida consagrada existente nesta época. São Pacômio, contemporâneo de Santo Antão, inseriu ao Monaquismo novos elementos como a vida em comum e a obediência a um superior religioso, versão conhecida como cenobitismo. De forma abrangente, a Regra de São Pacômio estabelecia a natureza dos trabalhos dos monges, dando indicações sobre a alimentação, os jejuns, o sono, a oração, o silêncio e instaurando a autoridade de um superior. Os discípulos começaram então a ficarem juntos, compartilhando uma vida em comunidade e afastando-se dos extremos dos anacoretas.

Depois de São Pacômio, o Monaquismo espalhou-se pelo Ocidente, onde desempenhou um papel de extrema importância para a consolidação do ideal cristão, vinculado à elaboração de um conjunto de normas orientadoras ou regras para a organização dos mosteiros, utilizando a terminologia do atual Código do Direito Canônico. Regras particularmente notáveis foram escritas por São Basílio, bispo de Cesarea, Santo Agostinho de Hipona,  São Martinho de Tours e ainda Columba e Patrício, grandes impulsionadores do monaquismo celta.

A mais famosa e importante destas regras, porém, foi escrita por São Bento de Núrsia e iria reger, durante vários séculos, quase todos os mosteiros do Ocidente,o que levou o seu autor a ser justamente chamado Pai dos Monges do Ocidente e Patrono da Europa. A Regra de São Bento era baseada nas próprias experiências vividas por ele nos mosteiros que fundou e nas proposições feitas por Pacômio, Agostinho e Cassiano.

A Regra de São Bento tinha por base o ideal de obediência de corpo e alma aos princípios espirituais dos Evangelhos, tornando extremamente relevante a figura do abade, considerado, então, o vigário de Cristo junto à comunidade. Estabelecendo preceitos rigorosos para as atividades diárias dos monges, em termos de orações. trabalhos, leituras e afazeres em geral, permitiu uma rápida e efetiva formação religiosa aos membros da comunidade. Esta formação beneditina foi intensamente propagada a partir da eleição do Papa Gregório, o Grande, ele mesmo um antigo monge beneditino.

(texto adaptado pelo autor do artigo 'O Monaquismo: Dos Primórdios ao Século VII', de Maria Ester Vargas, publicado na Revista Millenium)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

A BÍBLIA EXPLICADA (XVII) - GÊNESIS, 19

Um dos trechos mais espantosos das Sagradas Escrituras é aquele que descreve a manifestação da ira divina na destruição das cidades de Sodoma e Gomorra, cidades que eram aliadas tanto na política como no vício, na perversão, nos gravíssimos pecados da carne e na prática generalizada do homossexualismo entre os seus habitantes: 'Os habitantes de Sodoma eram perversos, e grandes pecadores diante do Senhor' (Gn 13, 13). A destruição completa das duas cidades tornou-se o símbolo da maldição e do repúdio de Deus aos pecados que bradam aos céus e clamam por vingança. 

Nós conhecemos a história: Lot (sobrinho de Abraão), sua mulher e suas duas filhas ainda virgens foram protegidos por Deus da destruição da Sodoma; avisados e acompanhados por dois anjos, fugiram da cidade antes de sua destruição e a mulher de Lot, ao se virar e testemunhar a ira de Deus contra a cidade, foi transformada em uma estátua de sal. Assim, apenas três pessoas se salvaram na destruição das duas grandes cidades: Lot e suas duas filhas ainda virgens. 

Entretanto, o episódio completo, conforme descrito em Gênesis 19, inclui dois fatos espantosos e particularmente violentos à nossa sensibilidade cristã, ambos relativos ao comportamento de Lot com as suas duas filhas salvas. Neste contexto, é melhor procedermos à releitura do texto bíblico em sua inteira versão, para nos detalharmos nestes aspectos.


1. Pela tarde chegaram os dois anjos a Sodoma. Lot, que estava assentado à porta da cidade, ao vê-los, levantou-se e foi-lhes ao encontro e prostrou-se com o rosto por terra. 

2. 'Meus Senhores', disse-lhes ele, 'vinde, peço-vos, para a casa de vosso servo, e passai nela a noite; lavareis os pés, e amanhã cedo continuareis vosso caminho'. 'Não', responderam eles, 'passaremos a noite na praça'. 

3. Mas Lot insistiu tanto com eles que acederam e entraram em sua casa. Lot preparou-lhes um banquete, mandou cozer pães sem fermento e eles comeram. 

4. Mas, antes que se tivessem deitado, eis que os homens da cidade, os homens de Sodoma, se agruparam em torno da casa, desde os jovens até os velhos, toda a população. 

5. E chamaram Lot: 'Onde estão', disseram-lhe, 'os homens que entraram esta noite em tua casa? Conduze-os a nós para que os conheçamos'. 

6. Saiu Lot a ter com eles no limiar da casa, fechou a porta atrás de si 

7. e disse-lhes: 'Suplico-vos, meus irmãos, não cometais este crime'. 

8. 'Ouvi: tenho duas filhas que são ainda virgens, eu vo-las trarei, e fazei delas o que quiserdes. Mas não façais nada a estes homens, porque se acolheram à sombra do meu teto'. 

9. Eles responderam: 'Retira-te daí!' – e acrescentaram: 'Eis um indivíduo que não passa de um estrangeiro no meio de nós e se arvora em juiz! Pois bem, verás como te havemos de tratar pior do que a eles'. E, empurrando Lot com violência, avançaram para quebrar a porta. 

10. Mas os dois (viajantes) estenderam a mão e, tomando Lot para dentro de casa, fecharam de novo a porta. 

11. E feriram de cegueira os homens que estavam fora, jovens e velhos, que se esforçavam em vão por reencontrar a porta. 

12. Os dois homens disseram a Lot: 'Tens ainda aqui alguns dos teus? Genros, ou filhos, ou filhas, todos os que são teus parentes na cidade, faze-os sair deste lugar, 

13. porque vamos destruir este lugar, visto que o clamor que se eleva dos seus habitantes é enorme diante do Senhor, o qual nos enviou para exterminá-los'. 

14. Saiu Lot, pois, para falar a seus genros, que tinham desposado suas filhas: 'Levantai-vos', disse-lhes, saí daqui, porque o Senhor vai destruir a cidade'. Mas seus genros julgaram que ele gracejava. 

15. Ao amanhecer, os anjos instavam com Lot, dizendo: 'Levanta-te, toma tua mulher e tuas duas filhas que estão em tua casa, para que não pereças também no castigo da cidade'. 

16. E, como ele demorasse, aqueles homens tomaram pela mão a ele, a sua mulher e as suas duas filhas, porque o Senhor queria salvá-los, e o levaram para fora da cidade. 

17.Quando já estavam fora, um dos anjos disse-lhe: 'Salva-te, se queres conservar tua vida. Não olhes para trás, e não te detenhas em parte alguma da planície; mas foge para a montanha senão perecerás'. 

18. Lot disse-lhes: 'Oh, não, Senhor!' 

19. 'Já que vosso servo encontrou graça diante de vós, e usastes comigo de grande bondade, conservando-me a vida, vede, eu não me posso salvar na montanha, porque o flagelo me atingiria antes, e eu morreria'. 

20. 'Eis uma cidade bem perto onde posso abrigar-me. É uma cidade pequena e eu poderei refugiar-me nela. Permiti que o faça – ela é pequena – e terei a vida salva'. 

21.Ele disse-lhe: 'Concedo-te ainda esta graça: não destruirei a cidade a favor da qual me pedes'. 

22. 'Apressa-te e refugia-te lá porque nada posso fazer antes que lá tenhas chegado'. Por isso, puseram àquela cidade o nome de Segor. 

23. O sol levantava-se sobre a terra quando Lot entrou em Segor. 

24. O Senhor fez então cair sobre Sodoma e Gomorra uma chuva de enxofre e de fogo, vinda do Senhor, do céu. 

25. E destruiu essas cidades e toda a planície, assim como todos os habitantes das cidades e a vegetação do solo. 

26. A mulher de Lot, tendo olhado para trás, transformou-se numa coluna de sal. 

27. Abraão levantou-se muito cedo e foi ao lugar onde tinha estado antes com o Senhor. 

28. Voltando os olhos para o lado de Sodoma e Gomorra e sobre toda a extensão da planície, viu subir da terra um fumo espesso como a fumaça de uma grande fornalha. 

29. Quando Deus destruiu as cidades da planície, lembrou-se de Abraão e livrou Lot do flagelo com que destruiu as cidades onde ele habitava. 

30. Lot partiu de Segor e veio estabelecer-se na montanha com suas duas filhas, pois temia ficar em Segor. E habitava numa caverna com suas duas filhas. 

31. A mais velha disse à mais nova: 'Nosso pai está velho, e não há homem algum na região com quem nos possamos unir, segundo o costume universal'. 

32. 'Vem, embriaguemos nosso pai e durmamos com ele, para que possamos nos assegurar uma posteridade'. 

33. Elas fizeram, pois, o seu pai beber vinho naquela noite. Então a mais velha entrou e dormiu com ele; ele, porém, nada notou, nem quando ela se aproximou dele, nem quando se levantou. 

34. No dia seguinte, disse ela à sua irmã mais nova: 'Dormi ontem com meu pai, façamo-lo beber vinho ainda uma vez, esta noite, e dormirás com ele para nos assegurarmos uma posteridade'. 

35. Também naquela noite embriagaram seu pai, e a mais nova dormiu com ele, sem que ele o percebesse, nem quando ela se aproximou, nem quando se levantou. 

36. Assim, as duas filhas de Lot conceberam de seu pai. 

37. A mais velha deu à luz um filho, ao qual pôs o nome de Moab: este é o pai dos moabitas, que vivem ainda hoje. 

38. A mais nova teve também um filho, ao qual chamou Ben-Ami: este é o pai dos amonitas, que vivem ainda hoje.

Num primeiro momento (Gn 19, 8), Lot aceita submeter suas duas filhas virgens a um estupro coletivo por um bando de facínoras que estão à sua porta, ansiosos por violentar os dois homens (na verdade, anjos) que estão hospedados em sua casa. Depois (Gn 19 , 31 - 38) comete nada mais nada menos que incesto com ambas as filhas, em relações que geraram filhos, depois de ser tolamente embriagado por elas em noites subsequentes. A pergunta é: por que Deus permitiria a salvação de Lot e suas filhas, que foram capazes de cometerem tais loucuras, se havia acabado de destruir duas grandes cidades inteiras, por crimes desta mesma natureza? 

Em primeiro lugar, temos de considerar que seríamos de uma imprudência enorme tentar compreender todos os desígnios e manifestações divinas: 'pois meus pensamentos não são os vossos, e vosso modo de agir não é o meu, diz o Senhor; mas tanto quanto o céu domina a terra, tanto é superior à vossa a minha conduta e meus pensamentos ultrapassam os vossos' (Is 55, 8 -9). Sem perder este preceito, podemos, entretanto, refletir sob algumas perspectivas:

1. Como Lot, um homem justo e sobrinho de Abraão, a quem Deus jurara aliança por toda a posteridade, poderia estar vivendo numa cidade como Sodoma, rodeado de crimes tão insanos?  Tão à vontade, a ponto de estar 'assentado à porta da cidade' (Gn 19, 1)?  Em outras palavras, mesmo sendo um homem justo, Lot relevou o perigo das tentações e submeteu a si e à sua família aos riscos de uma convivência tão promíscua e tão perigosa? E, qual foi o preço pago por isso, senão inimaginável?

2. Ao oferecer suas filhas como tributo à promiscuidade dos seus conterrâneos, Lot cometeu um crime terrível, uma desonra tremenda à sua fé cristã. No redemoinho das emoções daquele cenário imprevisto (imprevisto, pois certamente sempre imaginara estar 'seguro' em sua posição) e, ainda que em forma de blefe, tal posicionamento mostrou a sua concessão e submissão ao mundanismo chulo daquela gente. 

3. E o pecado da negligência espiritual se avolumou com os da embriaguez e da sensualidade e se consumou no inimaginável pecado do incesto e na apostasia completa. Lot fez as suas escolhas e o texto bíblico não omite nenhuma de suas ações e decisões. Ele foi capaz de receber e hospedar mensageiros de Deus e ter atos de justiça extrema. Mas foi capaz também de negligenciar as graças recebidas e optar pelo desvario do mal em vez de ser instrumento da graça divina.

Não nos basta acharmos que nunca seremos instrumentos propícios do mal. Imaginar que as graças de Deus evoluem automaticamente sobre nossas frontes porque nos julgamos acima da miséria alheia e do mundo. Acreditar em nossas próprias forças e confiarmos exclusivamente no nosso caráter e discernimento. Frutos terríveis podem advir de nossa cegueira e negligência espirituais. Há que se combater o mal do mundo, sempre, apontar e enfrentar os frutos do pecado e não apenas conviver com eles. Nossa tarefa, como cristãos, é gerar um mundo cristão e não apenas permanecermos como cristãos no mundo. Lot infelizmente fez a escolha errada.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

DO SERMÃO DAS BEM AVENTURANÇAS

Qual seja a doutrina de Cristo, suas santas sentenças o demonstram. Elas dão a conhecer os degraus da jubilosa ascensão àqueles que desejam chegar à eterna beatitude. Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3). Seria talvez ambíguo a que pobres se referia a Verdade, se dissesse: 'Bem-aventurados os pobres', sem acrescentar nada sobre a espécie de pobres, parecendo bastar a simples indigência, que tantos padecem por pesada e dura necessidade, para possuir o reino dos céus. Dizendo porém: 'Bem-aventurados os pobres em espírito', mostra que o reino dos céus será dado àqueles que mais se recomendam pela humildade dos corações do que pela falta de riquezas.

Não há dúvida de que os pobres alcançam mais facilmente que os ricos o bem da humildade; estes, nas riquezas, a conhecida altivez. Contudo em muitos ricos encontra-se a disposição de empregar sua abundância não para se inchar de soberba, mas para realizar obras de benignidade; e assim eles têm por máximo lucro tudo quanto gastam em aliviar a miséria do trabalho dos outros. A todo gênero e classe de pessoas é dado ter parte nesta virtude, porque podem ser iguais na intenção e desiguais no lucro; e não importa quanto sejam diferentes nos bens terrenos, se são idênticos nos bens espirituais. Feliz então a pobreza que não se prende ao amor das coisas transitórias, nem deseja o crescimento das riquezas do mundo, mas anseia por enriquecer-se com os tesouros celestes.

Exemplo de fidalga pobreza foi-nos dado primeiro, depois do Senhor, pelos apóstolos que, abandonando igualmente todas as posses à voz do Mestre celeste, se transformaram, por célebre conversão, de pescadores de peixes em 'pescadores de homens' (Mt 4,19). Eles tornaram a muitos outros semelhantes a si, à imitação de sua fé, quando nos filhos da Igreja primitiva era 'um só o coração de todos e uma só a alma dos que criam' (At 4,32). Desapegados de todas as coisas e de suas posses, pela pobreza sagrada enriqueciam-se com os tesouros eternos. Segundo a pregação apostólica, alegravam-se por nada ter do mundo e tudo possuir com Cristo.

O santo apóstolo Pedro, subindo ao templo, respondeu ao entrevado que lhe pedia esmola: 'Prata e ouro não possuo; mas o que tenho te dou: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda' (At 3,6). Que de mais sublime do que esta humildade? E mais rico do que esta pobreza? Não tem os auxílios do dinheiro, mas tem os dons do espírito. Saíra ele paralítico do seio de sua mãe; com a palavra Pedro o curou. Quem não deu a efígie de César na moeda reformou no homem a imagem de Cristo. Com este rico tesouro não foi socorrido só aquele que recuperou o andar, mas ainda as cinco mil pessoas que naquele momento creram na exortação do Apóstolo por causa do milagre da cura (cf. At 4,4). E o pobre que não tinha para dar a um mendigo, distribuiu com tanta largueza a graça divina! Da mesma forma como estabeleceu a um só homem em seus pés, assim curou a tantos milhares de fiéis em seus corações e tornou saltitantes em Cristo aqueles que encontrara entrevados.

Após ter proclamado a felicíssima pobreza, o Senhor acrescenta: Bem-aventurados os que choram porque serão consolados (Mt 5,4). Estas lágrimas que têm a promessa da consolação eterna nada têm a ver com a comum aflição deste mundo; nem tornam bem-aventuradas as queixas arrancadas a todo o gênero humano. É outro o motivo dos gemidos dos santos, outra a causa das lágrimas felizes. A tristeza religiosa chora o pecado dos outros ou o próprio. Não se acabrunha porque se manifesta a divina justiça, mas dói-se do que se comete pela iniquidade humana. Sabe ser mais digno de lástima quem pratica a maldade do que quem a sofre, porque a maldade mergulha o injusto no castigo. A paciência leva o justo até à glória.

Em seguida diz o Senhor: Bem-aventurados os mansos porque possuirão a terra por herança (Mt 5,5). Os mansos e quietos, humildes, modestos e aflitos a suportar toda injúria recebem a promessa de possuir a terra. Não se considere pequena ou sem valor esta herança, como se fosse diferente da celeste morada, pois não se entende que sejam outros a entrar no reino dos céus. A terra prometida aos mansos e a ser dada aos quietos é a carne dos santos que, graças à humildade, será mudada pela feliz ressurreição e vestida com a glória da imortalidade, nada mais tendo de contrário ao espírito na harmonia de perfeita unidade. O homem exterior será então a tranquila e incorruptível possessão do homem interior. Os mansos a possuirão numa paz perpétua e nada diminuirá de sua condição, quando o corruptível se revestir da incorruptibilidade e o mortal se cobrir com a imortalidade (1Cor 15,54); a provação se mudará em prêmio, o ônus de outrora agora será honra.

Em seguida diz o Senhor: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados (Mt 5,6). Esta fome nada tem de corpóreo. Esta sede não busca nada de terreno. Mas deseja ser saciada com a justiça e, introduzida no segredo mais oculto, anseia por ser repleta do próprio Senhor. Feliz espírito, faminto do pão da justiça e que arde por tal bebida. Na verdade não teria disso nenhuma cobiça, se não lhe houvesse provado a doçura. Ouvindo o espírito profético que lhe diz: 'Provai e vede como é suave o Senhor' (Sl 33,9), tomou uma porção da altíssima doçura e inflamou-se pelo amor das castíssimas delícias. Abandonando todo o criado, acendeu-se-lhe o desejo de comer e beber a justiça e experimentou a verdade do primeiro mandamento: 'Amarás o Senhor Deus de todo o teu coração, com toda a tua mente, com todas as tuas forças' (Dt 6,5; cf. Mt 22,37). Porque não são coisas diferentes amar a Deus e amar a justiça.

Por fim, como o interesse pelo próximo se une ao amor de Deus, também aqui o desejo da justiça é acompanhado pela virtude da misericórdia, e se diz: Bem-aventurados os misericordiosos porque deles terá Deus misericórdia (Mt 5,7). Reconhece, ó cristão, a dignidade de tua sabedoria e entende de que modo engenhoso foste chamado ao prêmio. A misericórdia te quer misericordioso, a justiça, justo, para que em sua criatura transpareça o Criador e, no espelho do coração do homem, refulja a imagem de Deus expressa pelas linhas da imitação. Firme é a fé dos que assim agem, teus desejos te acompanham e daquilo que amas gozarás sem fim.

Já que pela esmola tudo se faz puro para ti, chegas à bem-aventurança que é prometida como consequência. Diz o Senhor: Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus (Mt 5,8). Imensa felicidade, caríssimos, para quem se prepara tão grande prêmio. Que é, então, ter o coração puro? Entregar-se às virtudes acima descritas. Que inteligência poderá conceber e que língua proclamar quão grande seja a felicidade de ver a Deus? E, no entanto, isto acontecerá quando a natureza humana for transformada, de sorte que não mais em espelho ou enigma, mas 'face a face' (1Cor 13,12), verá aquela Divindade que homem algum pôde ver tal qual é. E obterá o que 'os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem subiu ao coração do homem' (1Cor 2,9), pelo gáudio indizível da eterna contemplação.

Com razão a bem-aventurança de ver a Deus é prometida aos corações puros. Pois os olhos imundos não podem ver o esplendor da verdadeira luz; será alegria das almas límpidas aquilo mesmo que será castigo dos corações impuros. Para longe então a fuligem das vaidades terrenas. Limpemos de toda iniquidade suja os olhos interiores, e o olhar sereno se sacie de tão maravilhosa visão de Deus. Merecer tal coisa, penso eu, é o fito do que se segue: Bem-aventurados os pacíficos porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9). Esta bem-aventurança, caríssimos, não consiste em um acordo qualquer nem em qualquer concórdia. É aquela de que fala o Apóstolo: 'Tende paz com Deus' (Rm 5,1) e o profeta: 'Grande paz para os que amam tua lei e para eles não há tropeço' (Sl 118,165).

Mesmo os mais estreitos laços de amizade e uma igualdade sem falha dos espíritos não podem, na verdade, reivindicar para si esta paz, se não concordarem com a vontade de Deus. Estão fora da dignidade desta paz a semelhança na cobiça dos maus, as alianças pecaminosas, os pactos para o vício. O amor do mundo não combina com o amor de Deus, nem passa para a sociedade dos filhos de Deus quem não se separa da vida carnal. Quem sempre com Deus tem em mente guardar com solicitude a unidade do espírito no vínculo da paz (Ef 4,3), jamais discorda da lei eterna, repetindo a oração da fé: 'Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu' (Mt 6,10).

São estes os pacíficos, estes os unânimes no bem, santamente concordes, que receberão o nome eterno de filhos de Deus, co-herdeiros de Cristo (Rm 8,17). Porque o amor de Deus e o do próximo lhes obterão não mais sentir adversidades, não mais temer escândalo algum. Mas terminado o combate de todas as tentações, repousarão na tranquila paz de Deus, por nosso Senhor que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina pelos séculos dos séculos. Amém.

(Papa São Leão Magno, século V)

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'Os vícios pelos quais crucificam meu Filho, em um sentido espiritual, são mais abomináveis e mais sérios para Ele que os vícios de quem o crucificou no corpo. Mas você pode perguntar ‘Como o crucificam?’ Bem, primeiro o colocam sobre a cruz que prepararam para Ele, isto é, quando não têm em conta os preceitos de seu Criador e Senhor. Depois o desonram quando Ele os adverte através de seus servos, desprezando as advertências e fazem o que lhes apetece.

Crucificam sua mão direita confundindo justiça e injustiça ao dizer: ‘O pecado não é tão grave nem odioso para Deus como se diz, nem Deus castiga ninguém para sempre, mas suas ameaças são para assustar-nos'. Crucificam sua mão esquerda convertendo a virtude em vício. Querem continuar pecando até o fim, dizendo: ‘Se, ao final, uma única vez dissermos: "Deus tem misericórdia de mim”, a misericórdia de Deus é tão grande, que Ele nos perdoará’. O querer pecar sem emendar-se, querer a recompensa sem lutar por ela, não é virtude, a menos que haja algo de contrição em seu coração, ou ao menos que a pessoa deseja realmente emendar seu caminho, sempre que não o impeça uma enfermidade ou qualquer outra condição.'
(Palavras de Nossa Senhora a Santa Brígida da Suécia)