sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A MORTE DE SANTO ANTÃO

Embora seja muito difícil assinalar as origens precisas do movimento monástico, Santo Antão foi tão extraordinário que é considerado como sendo o pai da vida monástica e, especialmente, o modelo perfeito da vida solitária. Recluso por vinte anos, abandonou  este  isolamento absoluto para se tornar o pai e mestre de outros homens que queriam imitá-lo. E assim o fez por muitos anos, até se solidificar uma pequena colônia de ascetas. Sentindo-a muito povoada (na chamada 'montanha exterior'), recolhe-se novamente ao isolamento, na sua chamada 'montanha interior', vivendo os últimos anos de sua vida em companhia de apenas dois discípulos. Vaticina sua morte, faz legado de suas pobres roupas e roga a seus acompanhantes que não revelem a ninguém o lugar de sua sepultura. Faleceu em 17 de janeiro de 356. O conhecimento da vida de Santo Antão se deve fundamentalmente aos escritos em grego de Santo Atanásio, o insigne patriarca de Alexandria. O texto abaixo - da morte de Santo Antão - constitui um excerto desta obra. 


Recebendo, da Providência, uma premonição de sua morte, falou aos irmãos: 'Esta é a última visita que lhes faço e me admiraria se nos voltássemos a ver nesta vida. Já é tempo de morrer, pois tenho quase cento e cinco anos'. Ao ouvir isto, puseram-se a chorar, abraçando e beijando o ancião. Ele porém, como se tivesse de partir de uma cidade estranha à sua própria, continuou falando alegremente. Exortava-os a 'não se relaxarem em seus esforços nem a se desalentarem na prática da vida ascética, mas a viver como se tivessem de morrer cada dia e, como disse antes, a trabalhar duramente, a fim de guardar a alma limpa de pensamentos impuros, e a imitar os homens santos. Não se aproximem dos cismáticos melecianos, pois já conhecem seu ensinamento ímpio e perverso. Não se metam para nada com os arianos, pois sua irreligião é clara para todos. E se vêem que os juízes os apóiam, não se deixem confundir: isto se acabará, é um fenômeno mortal, destinado a seu fim em pouco tempo. Por isso, mantenham-se limpos de tudo isto e observem a tradição dos Padres e, sobretudo, a fé ortodoxa em nosso Senhor Jesus Cristo, como aprenderam das Escrituras e eu tão frequentemente o recordei'.

Quando os irmãos instaram pra que ficasse com eles, até morrer ali, recusou-se a isto por muitas razões, segundo disse, embora sem indicar nenhuma. Especialmente era por isto: os egípcios têm o costume de honrar com ritos funerários e envolver em sudários de linho os corpos dos homens santos e particularmente dos santos mártires; mas não os enterram: colocam-nos sobre divãs e os guardam em suas casas, pensando honrar o defunto deste modo. Antão pediu muitas vezes, inclusive aos bispos, que dessem instruções ao povo sobre esse assunto. Ao mesmo tempo envergonhou os leigos e reprovou as mulheres, dizendo que 'isto não era correto nem reverente, em absoluto. Os corpos dos patriarcas e dos profetas se guardam em túmulos até estes dias; e o corpo do Senhor também foi depositado num túmulo e puseram uma pedra sobre ele (Mt 27,60) até que ressuscitou ao terceiro dia'. Ao expor assim as coisas, demonstrava que cometiam erro os que não davam sepultura aos corpos dos defuntos, por santos que fossem. E em verdade, quem maior ou mais santo que o corpo do Senhor? Como resultado, muitos que o ouviram começaram desde então a sepultar seus mortos, e deram graças ao Senhor pelo bom ensinamento recebido.

Sabendo disto, Antão teve medo de que fizessem o mesmo com seu próprio corpo. Por isso, despedindo-se dos monges da Montanha Exterior, apressou-se para a Montanha Interior, onde costumava viver. Depois de poucos meses, caiu doente. Chamou os que o acompanhavam - havia dois que levavam vida ascética havia quinze anos e se preocupavam com ele devido a sua idade avançada e lhes disse: 

'Vou-me pelo caminho de meus pais', como diz a Escritura (1 Rs 2,2; Jos 23,14), pois me vejo chamado pelo Senhor. Quanto a vocês, estejam vigilantes e não façam tábula rasa da vida ascética que tanto tempo praticaram. Esforcem-se por manter seu entusiasmo como se estivessem começando agora. Já conhecem os demônios e seus desígnios; conhecem também sua fúria e também sua incapacidade. Assim, pois, não os temam; deixem antes que Cristo seja o alento de sua vida e ponham nele sua confiança. Vivam como se cada dia tivessem de morrer, fazendo atenção a si mesmos e recordando tudo o que ouviram de mim. Não tenham nenhuma comunhão com os cismáticos e absolutamente nada com os hereges arianos. Sabem como eu mesmo me guardei deles devido à sua pertinaz heresia contra Cristo. Sejam ansiosos em manifestar sua lealdade primeiro a Cristo e depois a seus santos, 'para que depois de sua morte eles os recebam nas moradas eternas' (Lc 16,9), como a amigos familiares. Gravem este pensamento, tenham-no como propósito. Se vocês realmente se preocupam comigo e me consideram como pai, não permitam que ninguém leve meu corpo para o Egito, não aconteça que me guardem em suas casas. Foi esta a razão que me trouxe para cá, à montanha. Sabem como sempre confundi os que fazem isto e os intimei a deixar tal costume. Por isso, façam-me vocês mesmos os funerais e sepultem meu corpo na terra, e respeitem de tal modo o que lhes disse, que ninguém senão vocês saiba o lugar. Na ressurreição dos mortos, o Salvador me devolverá incorruptível. Distribuam minha roupa. Ao bispo Atanásio deem uma túnica e o manto em que estou, e que ele mesmo me deu, mas que se gastou em meu poder; ao bispo Serapião deem a outra túnica, e vocês podem ficar com a camisa de pelo (47,2). E agora, meus filhos, Deus os abençoe. Antão parte e não está mais com vocês'.

Depois de dizer isto e de que eles o houvessem beijado, estendeu os pés, seus rosto estava transfigurado de alegria e seus olhos brilhavam de regozijo como se visse amigos vindo a seu encontro; e assim faleceu e foi reunir-se a seus pais. Eles então, seguindo as ordens que lhes havia dado, prepararam e envolveram o corpo e o sepultaram aí na terra. E até o dia de hoje ninguém, exceto esses dois, sabe onde está sepultado. Quanto aos que receberam as túnicas e o manto usados pelo bem-aventurado Antão, cada um guarda seu presente como grande tesouro. Olhá-los é ver Antão e pô-los é como revestir-se de suas exortações com alegria.

Este foi o fim da vida de Antão no corpo, como antes tivemos o começo de sua vida ascética. E ainda que seja um pobre relato comparado com a virtude do homem, recebam-no, entretanto, e reflitam que classe de homem foi Antão; o varão de Deus. Desde sua juventude até uma idade tão avançada conservou uma devoção inalterável à vida ascética. Nunca tomou a velhice como desculpa para ceder ao desejo de abundante alimentação, nem mudou sua forma de vestir, pela debilidade de seu corpo, nem tampouco lavou seus pés com água. E no entanto sua saúde se manteve totalmente sem prejuízo. Por exemplo, mesmo seus olhos eram perfeitamente normais, de modo que sua vista era excelente; não havia perdido nem um só dente; só se haviam gasto até as gengivas pela grande idade do ancião. Manteve mãos e pés sãos, e em tudo aparecia com melhores cores e mais fortes do que os que têm uma dieta diversificada, banhos e variedade de roupas.

O fato de chegar a ser famoso em todas as partes, de ter encontrado admiração universal e de que sua perda foi sentida por pessoas que nunca o viram, sublinha sua virtude e o amor que Deus lhe tinha. Antão ganhou renome, não por seus escritos nem por sabedoria de palavras nem por nenhuma outra coisa, senão só por seu serviço a Deus.

E ninguém pode negar que isto é dom de Deus. Como explicar, efetivamente, que este homem, que viveu escondido em uma montanha, fosse conhecido em Espanha e Gália, em Roma e África, senão por Deus, que em toda parte faz conhecidos os seus, que, mais ainda, havia dito isto a Antão em seus começos. Pois ainda que façam suas obras em segredo e desejem permanecer na obscuridade, o Senhor os mostra publicamente como lâmpadas a todos os homens (Mt 5,16), e assim, os que ouvem falar deles podem aperceber-se de que os mandamentos levam à perfeição, e então se encorajam pela senda que conduz à virtude.

Agora, pois, leiam isto aos demais irmãos, para que também eles aprendam como deve ser a vida dos monges, e se convençam de que nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo glorifica aos que o glorificam. Ele não só conduz ao Reino dos Céus os que o servem até o fim, mas, ainda que se escondam e façam o possível por viver fora do mundo, faz com que em toda parte sejam conhecidos e se fale deles, por sua própria santidade e pela ajuda que dão a outros. Se a ocasião se apresenta, leiam-no também aos pagãos, para que ao menos deste modo possam aprender que nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e Filho de Deus, e que os cristãos, que o servem fielmente e mantêm sua fé ortodoxa nele, demonstram que os demônios, considerados deuses pelos pagãos, não o são, mas antes os calcam aos pés e afugentam pelo que são: enganadores e corruptores de homens. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem seja dada a glória pelos séculos. Amém.

(Excertos da obra 'Vida de São Antão', por Santo Atanásio)

Santo Antão, rogai por nós!