terça-feira, 14 de maio de 2024

SERMÕES DO CURA D'ARS (XIX)

SOBRE A NOSSA VOCAÇÃO DE TESTEMUNHAS DE CRISTO 

'Também vós dareis testemunho, porque estais comigo desde o princípio' 
(Jo 15,27)


Quando dois reinos estão em guerra um com o outro, é fácil distinguir os soldados de cada parte por meio de suas armas, seus uniformes e suas bandeiras. Desde o princípio do mundo, tem-se travado uma luta violenta entre o Rei do Céu e da Terra e o príncipe das trevas, sobre a qual deles deve pertencer a raça humana. Cristo, o Redentor, pela sua morte e ressurreição, ganhou a vitória sobre o inferno.

Antes de entrar gloriosamente no céu como vencedor, levando consigo as almas dos justos da antiga lei, como primogênitos da sua vitória, fundou a sua Igreja na terra como o seu reino, no qual deveríamos continuar a combater contra o inferno, e pelo seu poder deveríamos e poderíamos completar a vitória.

Por isso Ele diz aos Seus Apóstolos, os generais do seu reino: 'Vós dareis testemunho de mim', e a Sagrada Escritura diz deles: 'Com grande coragem os Apóstolos deram testemunho da ressurreição de Jesus Cristo, nosso Senhor' (At 4,33.) As palavras de Cristo aplicam-se também a nós. Todos nós somos obrigados a dar testemunho dEle, não por sermões e milagres, como fizeram os Apóstolos, mas pela nossa vida, pela imitação de Jesus; pois como todos nós nos tornamos membros do seu corpo, e recebemos de Cristo o nome de 'cristãos', somos obrigados a levar uma vida digna deste Chefe, não para trazer desgraça ao seu Santo Nome, mas para viver de tal forma que, na nossa vida, o cristão possa ser distinguido do não-cristão. Este é o nosso testemunho de Cristo. Vou agora falar sobre este assunto. No Cântico dos Cânticos, o divino Esposo diz à alma que o ama: 'Põe-me como um selo no teu coração, como um selo no teu braço' (Ct 8,6). Nós trazemos este selo de Cristo quando o imitamos:

I. Em nossa vontade
II. Em nossas palavras
III. Em nossas obras

I

1. Davi exprime a vontade de nosso Redentor nestas palavras que o Espírito Santo lhe permite pronunciar (Sl. xxxix. 8-9): 'No princípio do livro está escrito a meu respeito: fazer vossa vontade, meu Deus, é o que me agrada, porque vossa Lei está no íntimo de meu coração (Sl 39, 8-9). Mas Cristo diz de si mesmo (Jo. vi. 38): 'Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou' (Jo 6,38) e 'Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou' (Jo 4,34) e o Apóstolo exalta-o, dizendo: 'Humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz' (Fp 2,8). Quando desceu da glória do céu para a terra, sacrificou-se à vontade de seu Pai. 'Tu queres, ó meu Deus' - disse Ele, por assim dizer, com completa resignação - 'que eu nasça num estábulo desolado; que derrame o meu sangue na circuncisão; que fuja diante de Herodes; que suporte os fardos e os problemas desta vida terrena durante trinta e três anos. Vós quereis que eu seja traído, desprezado, cuspido, esbofeteado nas faces e flagelado, coroado de espinhos, pregado na cruz e sofra a mais cruel das mortes. Meu Deus, eu também o quero. Estou pronto a sofrer estas e outras aflições ainda maiores'.

2. Agora, caro cristão, contempla e age de acordo com este modelo nas tuas disposições. Quando mil decepções te cercarem, dize também: 'Meu Deus, eu quero!' Quando a pobreza te aflige, quando a língua do caluniador te fere, quando os falsos amigos te enganam, quando a doença te visita, quando as dores corporais te atormentam, com paciência invencível imita Cristo e diz: 'Meu Deus, eu quero!' Deveis ter estas disposições, esta vontade; então a vida de Cristo é o vosso modelo e vós dais testemunho dEle.

3. Como agiste até agora? Examina-te a ti mesmo e reconhece como as tuas disposições têm sido muitas vezes diferentes daquelas do Senhor. Ah, quantas pessoas ambiciosas existem cujos pensamentos e ações são dirigidos para a aquisição de honra, reconhecimento, cargos e dignidades! Quantas pessoas avarentas que ponderam noite e dia sobre como aumentar o seu dinheiro! Quantos mundanos que pensam continuamente nos seus prazeres! Quantas almas vingativas que não esquecem as injúrias que sofreram! É isto dar testemunho de Cristo? Não fazem o mesmo os pagãos, que dão testemunho de Satanás?

II

1. De que tipo são as palavras de Jesus Cristo, nosso Senhor? Pedro disse uma vez: 'Tu tens palavras de vida eterna' (Jo 6,69), pois todas as suas palavras foram dirigidas para a honra de Deus, a extirpação do pecado, o crescimento da virtude e a salvação das almas. Consideremos isso nas sete últimas palavras sagradas que Ele proferiu da cruz, em meio à sua agonia de morte. Primeiro, orou ao Pai celestial: 'Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem' (Lc 23,34). Estas são palavras de misericórdia e reconciliação. Ao ladrão penitente, disse: 'Hoje estarás comigo no paraíso' (Lc 23,43)- palavras de abençoada promessa. Dirige estas palavras à sua Mãe Santíssima: 'Mulher, eis aí o teu filho!' e ao seu discípulo: 'Eis aí a tua mãe!' (Jo 19,26). Que palavras consoladoras! No momento do abandono, Ele clama, com inteira submissão e confiança em Deus: 'Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?' (Mt 37,46.) Seu desejo de sofrer ainda mais e no mais alto grau por causa de nossa salvação nos é provado por seu grito: 'Tenho sede' (Jo 19,28); 'Tudo está consumado' (Jo 19,30). Ele diz, cheio de alegria, que completou a nossa redenção, e recomenda a sua alma com resignação nas mãos do seu Pai: 'Nas tuas mãos entrego o meu espírito' (Lc 23,46.) Agora, queridos cristãos, olhai para este modelo e agi de acordo com as vossas palavras. Tudo o que falardes deve ser para a honra de Deus, e para a vossa própria salvação e a do vosso próximo. A palavra nos é dada, como diz um servo de Deus, para louvar a Deus, para a edificação do nosso próximo.

2. As tuas conversas têm sido desta natureza, amigo cristão? Ah, quão diferentes elas têm sido muitas vezes daquelas do Senhor! Se entrarmos nas casas e palácios dos ricos e poderosos, que conversa, que conversas estão em voga? Que palavras ouvimos nas salas de aula, nas assembleias dos líderes do povo? Nas ruas encontramos as indicações dos prazeres sensuais, nas lojas é a vaidade; em casa, nas oficinas, com demasiada frequência, infelizmente, apenas incredulidade e blasfêmia. Onde é que, nos nossos dias, não há um lugar em que as reputações não sejam destruídas, as calúnias, as blasfêmias, os juramentos e, sobretudo, onde as conversas impróprias não tenham encontrado um lugar? Mesmo a vida familiar já não é pura e, nos ouvidos das crianças inocentes, são lançadas palavras que envenenam as suas almas. Caros cristãos, será isto dar testemunho de Cristo? Não fazem o mesmo os pagãos, que dão testemunho de Satanás?

III

1. Consideremos, para concluir, as obras do Senhor. São Bernardo descreve-as assim: 'Sob o nome de Jesus, imagino para mim um homem humilde e manso de coração, bondoso, temperante, casto, misericordioso, em suma, distinto em todas as virtudes e santidades'. O próprio ensinamento de Nosso Senhor é testemunha de que Ele foi perfeito na prática de todas as obras que ensinou. Ele diz: 'Bem-aventurados os pobres de espírito' e, desde o seu nascimento no estábulo até à sua morte na cruz, Ele próprio foi o mais pobre, pois não tinha onde reclinar a cabeça. 'Bem-aventurados os mansos', diz Ele, e Ele não só perdoa o mal que lhe foi feito, mas recompensa-o com o mais rico dos benefícios. 'Bem-aventurados os aflitos' - Ele expiou os nossos pecados em todo o seu corpo e chorou sobre eles lágrimas de sangue. 'Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça' - mas o seu alimento era fazer a vontade de Seu Pai. 'Bem-aventurados os misericordiosos' - Ele amontoou boas ações sobre os seus inimigos. 'Bem-aventurados os pacificadores' - Ele imprimiu a paz entre Deus e o homem. 'Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça' - Ele suportou o ódio e a perseguição por causa dos seus ensinamentos até a morte.

2. Mas como é que realizamos as nossas obras? Não amais desordenadamente o vosso corpo e o vosso conforto, e não aderis tão obstinadamente às máximas do mundo que quase vos envergonhais de ser cristãos? Ou amas o pecado, deixas que os teus vícios se tornem hábitos, e até deixaste de lado qualquer sentimento de vergonha por isso, ou só pensas no que é terreno, e vives como o animal irracional, perseguindo constantemente os prazeres e a sensualidade. Infeliz cristão, é assim que se dá testemunho de Cristo? Não fazem o mesmo os pagãos, que dão testemunho de Satanás? Não é de admirar que os hereges e os incrédulos não se convertam quando vêem que os católicos e os cristãos são piores do que eles?

3. Portanto, meus caros cristãos, olhai e portai-vos segundo o modelo que vos é mostrado. É vosso dever imitar a doutrina e o exemplo do Redentor e praticar diligentemente a perfeição cristã. Deveis servir a Deus e refletir noite e dia sobre as suas leis; deveis crucificar vossa carne com seus desejos perversos; não deveis ser vencidos pela adversidade, nem deslumbrados pela felicidade. É vosso dever praticar de tal modo as virtudes cristãs que até os incrédulos as admirem e digam que não são capazes de chegar a tão alta perfeição. Se isto pudesse ser dito de todos os cristãos, certamente o mundo inteiro seria cristão em curto tempo!

Não demoreis, caros cristãos, a conformar a vossa vida à vida de Jesus Cristo, e a dar assim testemunho dEle. Ouvi como o Apóstolo vos exorta: 'Levemos sempre em nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo' (II Cor 4,10). Pela mortificação, deveis fazer da vossa vida uma cópia da vida de Jesus. Os vossos olhos não devem ser demasiado curiosos, nem a vossa boca sem pudor, nem os vossos desejos sensuais ingovernáveis, como o são os dos pagãos; a vossa conduta não deve corresponder à vida do rico glutão. Pelo contrário, todos os que virem o vosso exemplo e a vossaconduta possam reconhecer que sois, não só de nome, mas de fato e de verdade, um cristão, um seguidor do Crucificado e um herdeiro do Reino dos Céus. Amém.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

107 ANOS DE FÁTIMA

Fátima é o acontecimento sobrenatural mais extraordinário de Nossa Senhora e a mais profética das aparições modernas (que incluíram a visão do inferno, 'terceiro segredo', consagração aos Primeiros Cinco Sábados, orações ensinadas por Nossa Senhora às crianças, consagração da Rússiamilagre do sol e as aparições do Anjo de Portugal), constituindo a proclamação definitiva das mensagens prévias dadas pela Mãe de Deus em Lourdes e La Salette. Por Fátima, o mundo poderá chegar à plena restauração da fé e da vida em Deus, conformando o paraíso na terra. Por Fátima, a humanidade será redimida e salva, pelo triunfo do Coração Imaculado de Maria. Se os homens esquecerem as glórias de Maria em Fátima e os tesouros da graça, serão também esquecidos por Deus.

'por fim, o meu Imaculado Coração triunfará'


Ver Postagem Especial na Biblioteca Digital do Blog:

FÁTIMA EM 100 FATOS E FOTOS

domingo, 12 de maio de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Por entre aclamações Deus se elevou, o Senhor subiu ao toque da trombeta' (Sl 46)

Primeira Leitura (At 1,1-11) - Segunda Leitura (Ef 1,17-23) -  Evangelho (Mc 16,15-20)
 
  12/05/2024 - SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR

24. 'IDE E ANUNCIAI O EVANGELHO'


Antes de subir aos Céus, Jesus manifesta aos seus discípulos (de ontem e de sempre) as bases do verdadeiro apostolado cristão, a ser levado a todos os povos e nações: 'Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura! Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado'. (Mc 16, 15 - 16). Ratificando as mensagens proféticas do Antigo Testamento, Nosso Senhor imprime diretamente no coração humano os sinais da fé sobrenatural e da esperança definitiva na Boa Nova do Evangelho, que nasce, se transcende e se propaga com a Igreja de Cristo na terra.

Antes de subir aos Céus, Jesus nos fez testemunhas da esperança. Pela ação de Pentecostes, pela efusão do Espírito Santo, pela manifestação da 'Força do Alto', os apóstolos tornar-se-iam instrumentos da graça e da conversão de muitos povos e nações: 'recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra' (At 1,8). E os apóstolos assumiram de pronto a imensa tarefa a fazer, na missão a eles confiada por Jesus: 'Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam' (Mc 16, 20).

Na mesma certeza, somos continuadores dessa aliança de Deus com os homens, na missão de semear a Boa Nova do Evangelho nos terrenos áridos da humanidade pecadora para depois colher, a cem por um, os frutos da redenção nos campos eternos da glória. Como missionários da graça, 'Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos' (Ef 1, 18). Neste propósito, nos anima e fortalece as divinas promessas da vitória antecipada da graça, na feliz espera de sermos partícipes de sua glória eterna.

Jesus se eleva diante dos seus discípulos e sobe para os Céus. Jesus vai primeiro porque é o Caminho que vai preparar, para cada um de nós, 'as muitas moradas da casa do Pai'. Na solenidade da Ascensão do Senhor, a Igreja comemora a glorificação final de Jesus Cristo na terra, como o Filho de Deus Vivo e, ao mesmo tempo, imprime na nossa alma o legado cristão que nos tornou, neste dia, testemunhas da esperança em Cristo e herdeiros da eternidade junto de Deus.

sábado, 11 de maio de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (II)


11. Não há santo, por mais santo e inocente que seja, que não se considere verdadeiramente o maior pecador do mundo. Basta que ele se conheça como homem para reconhecer que é suscetível de cometer todos os males de que o homem é capaz. Como homem, tenho na minha natureza corrupta uma propensão para todos os males; e, no que me diz respeito, sou perfeitamente capaz de cometer todos os tipos de pecado e, se não os cometo, é por uma graça especial de Deus que me preserva e os restringe.

Uma árvore não cai quando se dobra sob seu próprio peso e isso se atribui à força de sua sustentação; e, da mesma forma, se eu não caí em todo tipo de iniquidade, isso não deve ser atribuído à minha própria virtude inerente, mas apenas à graça divina que, por sua bondade, me sustentou. Portanto, como posso estimar-me mais do que outro, se somos todos iguais na fraqueza humana? 'Pois qual é a minha força?' [Jó 6,11]. Sou um filho de Adão como qualquer outro homem, nascido em pecado, inclinado ao pecado e sempre pronto a cair em pecado. Não preciso do demônio para me tentar a pecar; a minha própria concupiscência é uma tentação demasiado grande; e se Deus retirasse de mim a sua mão protetora e auxiliadora, sei que seria precipitado de mal a pior. 

Quando Santo Agostinho fazia o seu exame de consciência, nem sempre encontrava o suficiente para excitar dentro de si a tristeza e a contrição, pelo que se detinha nos pecados que poderia ou teria cometido, se não tivesse sido preservado deles pela infinita misericórdia de Deus; e entristecia-se e acusava-se a si próprio e implorava humildemente o perdão de Deus pela inclinação que tinha de cometer toda a espécie de pecados hediondos e ímpios. Nessa prática, encontra-se o exercício da verdadeira humildade.

12. Aconteceu muitas vezes que aqueles que eram mais perfeitos do que os outros caíram vergonhosamente, e isto depois de um longo período de boas e virtuosas obras, mostrando as fragilidades de que um homem é capaz ao se abandonar a si próprio e de se deixar levar pela fraqueza do seu livre arbítrio. Deus demonstrou a sua onipotência criadora, formando-me do nada e fazendo de mim um ser humano. Se Deus retirasse de mim a sua mão onipotente e protetora, eu mostraria imediatamente do que sou capaz quando abandonado a mim mesmo, voltando imediatamente ao meu nada. E, na ordem da graça, o nada em que me consumo quando abandonado a mim mesmo é o pecado. Quantas vezes 'sou levado ao nada, e não o sabia' [Sl 72,22]. E o que é que eu posso encontrar do que me orgulhar nesse nada?

13. Dai-me a graça, ó meu Deus, de me conhecer apenas o necessário para me manter humilde! Porque, se eu me apercebesse da insignificância do meu ser e da extensão da minha maldade, capaz de vos ofender de diversas maneiras inconcebíveis, receio que ficaria tão horrorizado comigo mesmo que me entregaria ao desespero! Temos dentro de nós, na nossa própria experiência e nos nossos sentimentos, o conhecimento de como a nossa natureza frágil e decaída está inclinada para o mal. Hoje vamos e confessamos algumas de nossas faltas, tomando a resolução de não cair nelas novamente, e amanhã, apesar disso, voltamos a cometê-las.

Num momento, decidimos adquirir uma determinada virtude e, no momento seguinte, fazemos exatamente o contrário, caindo no vício oposto. No momento em que tomamos essas resoluções de emenda, imaginamos que nossa vontade é firme e forte, mas logo percebemos quão fraca e não confiável ela é, pois nos comportamos como se nunca tivéssemos proposto correção alguma. O nosso coração é como uma cana que se dobra a qualquer vento ou como um barco agitado por qualquer onda. Basta encontrar uma ocasião de pecado, um movimento de paixão, um sopro de tentação, para que a vontade ceda ao mal, mesmo quando, em certos momentos de fervor, parecemos mais firmemente enraizados no bem. Esta é uma razão forte para sermos humildes e não presumirmos nada de nós próprios, rezando continuamente a Deus para que Ele se digne confirmar nos nossos corações aquilo que opera pela sua graça: 'Confirma, ó Deus, o que tens feito em nós' [Sl 67, 29].

Alguns mestres da vida espiritual ensinam que é melhor desviar os nossos pensamentos de certas ações heróicas, nas quais a nossa fraqueza poderia levar-nos a duvidar se devemos ou não ser bem sucedidos; por exemplo: se um perseguidor viesse intimar-me a renunciar à fé ou a morrer, como deveria agir? Ou se eu recebesse um terrível insulto público, deveria praticar a paciência ou o ressentimento? Não, dizem eles, não é bom se empenhar em tais imaginações, porque a nossa fraqueza pode fazer-nos cair diante da ideia de uma tal provação.

14. Mas, se tais pensamentos surgirem, podemos transformá-los em nosso bem e usar a nossa própria fraqueza para praticar a humildade. Quando essas ideias surgem, seria bom dizer: Sei o que devo fazer em tal ou tal ocasião, mas não sei até que ponto posso confiar em mim mesmo, porque sei, por experiência própria, que 'a minha força se enfraquece com a pobreza' [Sl 30, 11] e aprendi, em várias ocasiões, como a minha razão fica cega, o meu juízo enfraquece e a minha vontade se perverte facilmente para o mal. Ó meu Deus, tudo posso, se me fortalece o vosso auxílio; mas, sem isso, nada posso e nem poderei jamais! Se tivesse de confessar-vos, negar-vos-ia miseravelmente; se tivesse de honrar-vos com paciência, daria lugar à vingança; se tivesse de obedecer-vos, ofender-vos-ia com a desobediência: Vós sois um forte ajudante; quando a minha força falhar, não me abandonets' [Sl 70, 7.9]. A vossa palavra é bem verdadeira, ó meu Deus: 'Sem mim nada podeis fazer' [Jo 15,5]. Não só sem Vós não posso fazer nenhum ato meritório de virtude, mas também não posso fazer nada; como me ensina Santo Agostinho: 'Quer algo seja pequeno ou grande, não pode ser feito sem Aquele sem o qual nada pode ser feito' [Trat 31].

15. Uma bela maneira de pedir humildade a Deus foi a seguinte, usada por um grande santo. Senhor, dizia ele, nem sequer sei o que é a humildade, mas sei que não a possuo e que não posso obtê-la por mim mesmo; e que, se não a tiver, não me salvarei; portanto, só me resta pedi-la a Vós, mas dai-me a graça de a pedir como devo. Prometestes, meu Deus, conceder-me todas as coisas que Vos pedir e que são necessárias para a minha salvação eterna; e sendo a humildade a coisa mais necessária para mim, a fé obriga-me a acreditar que Vós a concedereis a mim, se eu vos souber pedi-la. Mas aqui reside a dificuldade, porque não sei vos pedir como devo. Ensinai-me e ajudai-me para que eu vos peça como V´s quereis que eu peça e da maneira eficaz com que Vós mesmo sabeis que serei ouvido. E como Vós  me ordenastes ser humilde, estou pronto a obedecer; mas faz com que, com a vossa ajuda, eu possa na verdade tornar-me tal como Vós o desejais. Desejo ardentemente ser humilde, e de onde me vem este amor e desejo de humildade senão de Vós, que o puseste no meu coração pela vossa santa graça? Por vossa bondade, concedei-me, pois, o que me fizestes amar e desejar tanto. Espero-o e continuarei nesta confiança: 'Fortalecei-me, Senhor Deus, para que, como prometeste, eu possa realizar o que propus, acreditando que por Vós possa ser feito' [Jt 13,7].

16. Podemos persuadir-nos de que possuímos várias virtudes, porque temos dentro de nós uma prova tangível de que realmente as possuímos. Assim, podemos julgar-nos castos, porque nos sentimos realmente atraídos pela castidade; ou podemos considerar-nos abstêmios, porque o somos por natureza; ou obedientes, porque praticamos uma obediência pronta. Mas, por mais que um homem exercite a humildade, nunca poderá formar um juízo sobre o fato de ser realmente humilde, pois aquele que se julga humilde na verdade já não o é.

Da mesma forma que reconhecer que se é orgulhoso é o começo da humildade, também se lisonjear de que se é humilde é o começo do orgulho e, quanto mais humildes nos julgamos, maior é o nosso orgulho. Essa autocomplacência que o coração sente, fazendo-nos imaginar que somos humildes em consequência de algumas reflexões agradáveis que tivemos a nosso respeito, é uma espécie de vaidade; e como pode existir vaidade com a humildade que se funda unicamente na verdade? A vaidade não é senão uma mentira, e é precisamente da mentira que nasce o orgulho. Roguemos a Deus como o profeta: 'Não me calque o pé do orgulhoso' [Sl 35, 12]. Concedei-me, ó meu Deus, que eu seja humilde, mas que não saiba que sou humilde. Faz-me santo, mas ignorante da santidade; porque se eu aprendesse a saber ou mesmo a imaginar-me santo, tornar-me-ia vaidoso; e pela vaidade, perderia toda a humildade e santidade.

 17. Do que acaba de ser exposto, é possível que surja uma dúvida tormentosa no espírito de alguém que diga: 'Se me julgo carente de humildade, devo concluir que estou perdido, e tal julgamento me levaria ao desespero'. Mas não percebeis o erro? Para falar com sabedoria, deveríeis dizer: 'Sei que me falta a humildade; portanto, devo procurar obtê-la, porque sem humildade sou um réprobo, e é necessário ser humilde para estar entre os eleitos'.

De fato, seria motivo de desespero se, por um lado, a humildade fosse necessária para a salvação e, por outro, fosse inatingível. Mas nada é mais natural para nós do que a humildade, porque somos atraídos para ela pela nossa própria miséria; e nada é mais fácil, pois basta abrirmos os olhos e conhecermo-nos a nós próprios; não é uma virtude que tenhamos de ir procurar longe, pois podemos sempre encontrá-la dentro de nós, e temos uma infinidade de boas razões para o fazer. No entanto, enquanto a vida durar, devemos esforçar-nos por adquirir a humildade, sem nunca imaginar que a adquirimos; e mesmo que a tenhamos obtido em certa medida, devemos continuar a esforçar-nos como se não a possuíssemos, a fim de a podermos conservar. Tenhamos um verdadeiro desejo de sermos humildes; não deixemos de implorar a Deus que nos dê a graça de sermos humildes; e estudemos frequentemente os motivos que podem ajudar a tornar-nos humildes de coração; e não duvidemos da bondade divina, mas conformemo-nos com os conselhos que nos são dados na Sagrada Escritura: 'Pensai no Senhor com bondade'  [Sb 1,1].

18. Embora sintamos profundamente uma humilhação quando somos insultados, perseguidos ou caluniados, isso não significa que não possamos sofrer tais provações com sentimentos de verdadeira humildade, submetendo a natureza à razão e à fé e sacrificando o ressentimento do nosso amor-próprio ao amor de Deus. Não somos feitos de pedra, de modo que precisemos ser insensíveis ou insensatos para sermos humildes. De alguns mártires, lemos que se contorciam sob seus tormentos; de outros, que se alegravam mais ou menos com eles, segundo o maior ou menor grau de unção que recebiam do Espírito Santo; e todos foram recompensados com a coroa da glória, pois não é a dor ou o sentimento que faz o mártir, mas o motivo sobrenatural da virtude. Do mesmo modo, algumas pessoas humildes sentem prazer em serem humilhadas, e outras sentem tristeza, especialmente quando sobrecarregadas com calúnias; e, no entanto, todas elas pertencem à esfera dos humildes, porque não é a humilhação nem o sofrimento por si só que torna a alma humilde, mas o ato interior pelo qual essa mesma humilhação é aceita e recebida por motivos de humildade cristã e especialmente pelo desejo de se assemelhar a Jesus Cristo que, embora com direito a todas as honras que o mundo lhe podia oferecer, suportou a humilhação e o desprezo para a glória do seu Pai eterno: 'Por amor de Vós, ó Deus de Israel, suportei o opróbrio'  [Sl 68,8].

A doutrina de São Bernardo é digna de nossa atenção: uma coisa é ser humilhado, e outra é ser humilde. Acontece muitas vezes que o orgulhoso é humilhado e, no entanto, continua orgulhoso, recebendo as humilhações com raiva e desprezo, fazendo tudo o que pode para escapar delas com impaciência. Acontece também, por vezes, que o orgulhoso se torna humilde; a humilhação ensina-o a conhecer-se tal como é e, com esse conhecimento, aprende a amar essa mesma humilhação: É humilde aquele que converte todas as suas humilhações em humildade e diz a Deus: 'É bom para mim que me tenhas humilhado' [D. Bern, serm. 34, in Cant.].

19. Na vida espiritual, não posso prometer nada a mim mesmo sem a ajuda especial de Deus; e é muito verdadeiro o ensinamento do Espírito Santo: 'quem poderá te socorrer?' [Os 13,9]. De um momento para outro posso cair em pecado mortal; consequentemente, mesmo que eu tenha trabalhado muitos anos na aquisição de virtudes, posso num instante perder todo o bem que fiz, perder todo o meu mérito para a eternidade e perder até a própria eternidade abençoada. Como pode um rei governar com arrogância, quando é cercado pelos seus inimigos e corre todo dia o risco de perder o seu reino e deixar de ser rei? E um santo não tem razões de sobra para, pensando na sua própria fraqueza, viver sempre num estado de grande humildade, quando sabe que de uma hora para outra pode perder a graça de Deus e o reino dos Céus que mereceu com anos de virtudes laboriosamente adquiridas? 'Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam' [Sl 126,1].

Por mais espiritual e santo que seja um homem, ele não pode considerar-se absolutamente seguro. Os próprios anjos, enriquecidos de santidade, não estavam seguros no Paraíso. O homem, dotado de inocência, não estava seguro no seu paraíso terrestre. Que segurança pode haver, portanto, para nós, com a nossa natureza corrupta, no meio de tantos perigos e tantos inimigos, que dentro e fora de nós procuram insidiosamente minar a nossa salvação eterna? Para ser eternamente condenado, basta que eu siga os ditames da natureza, mas para ser salvo é necessário que a graça divina me previna e acompanhe, me siga e ajude, me vigie e nunca me abandone. Como estava certo São Paulo ao exortar-nos a 'trabalhar pela nossa salvação'... 'que é para toda a eternidade'... 'com temor e tremor'! [Fp 2,12].

20. Estar contente e satisfeito consigo mesmo, levar uma vida tranquila e fácil, cumprindo apenas o que o dever prescreve, não é um bom sinal. Depois de termos feito tudo o que a nossa profissão cristã exige de nós, o Senhor quer, no entanto, que nos consideremos servos inúteis da sua Igreja: 'Assim também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi mandado, dizei: Somos servos inúteis' [Lc 17,10]. Quanto mais inúteis nos devemos considerar, se vivemos na tibieza e na preguiça, que nos afastam da perfeição a que estamos obrigados!

Quando faço o meu exame de consciência, verifico se cumpro todos os meus deveres diante de Deus? Que virtude adquiri até agora? Pode-se dizer que adquirimos o hábito de tal ou qual virtude, quando passamos a praticá-la de boa vontade e com facilidade; mas, quando me examino, que virtude posso encontrar que habitualmente pratico com prazer e facilidade? Não encontro uma só. Sou um servo muito inútil na terra; e se eu fosse agora chamado perante o tribunal do meu Juiz eterno, temo muito que me seria dito: 'servo mau' [Mt 18,32] e não: 'muito bem, servo bom e fiel' [Mt 25, 21].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)


sexta-feira, 10 de maio de 2024

QUANDO O ESPÍRITO SANTO NÃO VEM...


Como é possível que muitas pessoas, depois de terem vivido quarenta ou cinquenta anos em estado de graça e recebido com frequência a Santa Comunhão, quase não dêem sinal da presença dos dons do Espírito Santo na sua conduta e nos seus atos, que se irritam por tudo e por nada e levam uma vida completamente longe do sobrenatural?

Tudo isto provém dos pecados veniais que com frequência cometem sem nenhuma preocupação; estas faltas e as inclinações que daí derivam tornam estas almas inclinadas à terra e mantêm como que atados os dons do Espírito Santo, como asas que não se podem abrir.

Tais almas não guardam nenhum recolhimento; nem estão atentas às inspirações do Espírito Santo, que passam inadvertidas; por isso permanecem na escuridão, não das coisas sobrenaturais e da vida íntima de Deus, mas na escuridão inferior que se enraíza na matéria, nas paixões desordenadas, no pecado e no erro; aí está a explicação de sua inércia espiritual.

A estas almas se dirigem as palavras do salmista: Hodie si vocem eius audieritis, nolite obdurare corda vestra - 'Hoje se ouvirdes a sua voz, não fecheis os vossos corações' (Sl 94,7-8).

(Excertos da obra 'Las Tres Idades de La Vida Interior', do Pe. Reginald Garrigou-Lagrange)

quinta-feira, 9 de maio de 2024

ORAÇÃO DO AMOR A DEUS DE TODA ALMA E MENTE


Ó Senhor, não me priveis de vossos abençoados dons celestiais.
Ó Senhor, defendei-me e livrai-me dos tormentos eternos.
Ó Senhor, se eu pequei com minha mente, com meus pensamentos, com minhas palavras ou minhas ações, perdoai-me e curai a minha alma.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, livrai-me da ignorância, esquecimento, da covardia e do tédio.
Ó Senhor, não me deixeis cair e me livreis de toda tentação.
Ó Senhor, iluminai o meu coração obscurecido pelos desejos do maligno.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, como homem que sou, pequei, mas Vós, como Deus amado e benevolente, tende piedade da minha alma, vendo as fraquezas do meu coração.
Ó Senhor, enviai a vossa misericórdia em meu auxílio, para que eu possa glorificar vosso Santo Nome.
Ó Senhor Jesus Cristo, inscrevei-me como vosso servo no Livro da Vida e concedei-me uma morte em paz.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó, meu Deus! Embora eu não tenha feito nada de bom, estendei vossa mão, auxiliai-me com a vossa graça para começar a fazer todo o bem.
Ó Senhor, cobri o meu coração fraco com o orvalho do vosso amor.
Ó Senhor do céu e da terra, lembrai-vos de mim, vosso servo pecador, impuro e frio de coração, em vosso reino.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, aceitai meu sincero arrependimento.
Ó Senhor, pelo bem da minha alma, não me abandoneis.
Ó Senhor, guardai-me apartado das tentações.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, concedei-me pensamentos nobres e puros.
Ó Senhor, concedei-me as lágrimas do arrependimento, a memória da morte e a sensação de paz.
Ó Senhor, concedei-me humildade, caridade e obediência para agir em vosso Santo Nome.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, concedei-me a confissão e o perdão dos meus pecados.
Ó Senhor, concedei-me paciência, magnanimidade e doçura.
Ó Senhor, tornai-me a fonte de todas as vossas bênçãos e inspirai vosso santo temor em meu coração.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, concedei que eu possa vos amar com todo o meu coração e toda a minha alma, e que eu sempre obedeça vossa palavra.
Ó Senhor, protegei-me dos provocadores, dos demônios, das paixões corporais e de tudo o que não leva a Vós.
Ó Senhor, eu sei que agis como desejais; assim, que seja feito em mim, pecador, a vossa vontade, porque Abençoado sois para todo o sempre. 
Amém.

(São João Crisóstomo)

quarta-feira, 8 de maio de 2024

VERSUS: A GRANDE TRIBULAÇÃO

Eis os tempos da grande tribulação, em que somos, mais do nunca, chamados para a provação. Uma provação que tem os contornos da própria humanidade e afeta a todos sem distinção, bons e maus, justos e ímpios. Quem haverá de perseverar até o fim em tempos tão tremendos? Quem permanecerá firme na justiça e no temor de Deus? Quem será capaz de seguir sem vacilar a sã doutrina e os ensinamentos de Jesus Cristo? Quem permanecerá de joelhos diante da Cruz sem se embebedar do esgoto do mundo cão? Quem? Quantos? 

(inundação devastadora no RS/Brasil)

'Feliz o homem que suporta a tentação. Porque, depois de sofrer a provação, receberá a coroa da vida que Deus prometeu aos que o amam' (Rm 8,18)


(show de Madonna no RJ/Brasil)

'Mortificai, pois, os vossos membros no que têm de terreno: a devassidão, a impureza, as paixões, os maus desejos, a cobiça, que é uma idolatria. Dessas coisas provém a ira de Deus sobre os descrentes (Cl 3,5-6)