quarta-feira, 15 de maio de 2019

OS GRANDES MÍSTICOS DA IGREJA (III)

ANGELA DE FOLIGNO

Poucas almas experimentaram, de forma tão extremada, os ditames da conversão como Angela de Foligno (nascida em Foligno, pronuncia-se 'folinho', pequena cidade situada próxima a Assis, na região da Úmbria na Itália, em 1248). Mulher de beleza incomum, contraiu núpcias ainda muito nova e foi mãe de prole numerosa (7 filhos); entre limites pouco sensíveis ao ambiente familiar, trajes pouco modestos e apelos de uma vida ávida de festas e divertimentos, dedicou-se por inteiro a uma vida mundana, frívola e, muitas vezes, profundamente pecaminosa. 


Mas Deus tinha outros planos para ela. Aos 37 anos de idade, aquela vida imersa em caos e desordem começou a trilhar os duros caminhos da penitência e da conversão. E Angela sentiu medo; um medo terrível de perder a sua alma, quando experimentou vivamente, em sua consciência, o conhecimento dos seus pecados e de sua vida pecaminosa. Chorou profusamente de arrependimento, mas não se entregou a uma conversão imediata por uma santa confissão, por vergonha de revelar a um sacerdote os seus pecados. Sua fonte de inspiração, que seria modelo então de toda a sua vida, foi São Francisco de Assis, que lhe apareceu em sonho e lhe aconselhou a buscar um bom confessor de imediato. Este mediador da graça de Deus foi o Pe. Arnold, sacerdote franciscano, primo e capelão do bispo local que, por meio dessa primeira e tantas outras confissões e diálogos, tornar-se-ia mais tarde o diretor espiritual e o divulgador das experiências sobrenaturais da mística de Foligno. 

Nesta jornada mística, a fase inicial foi caracterizada por um preço amargo e doloroso - uma estação de purificação através do sofrimento: quem havia perdido Cristo e encontrado o mundo, agora, para viver em Cristo, perdia o mundo inteiro. Com efeito, numa sucessão de tragédias sem fim, Angela perdeu a mãe, o marido e todos os seus sete filhos (provavelmente devido a um surto continuado de alguma grave epidemia). O passo seguinte foi distribuir todos os seus bens aos necessitados e, então, tornar-se uma religiosa franciscana reclusa (provavelmente em 1291). Privada de toda e qualquer referência de natureza humana, ela vai experimentar agora uma jornada mística que a levará a cumes inimagináveis.

Nesta jornada, a transição da conversão para a experiência mística inexprimível ocorreu pela Paixão de Cristo, na busca cada vez maior de uma perfeita 'semelhança' com o Crucificado. Neste propósito, Angela entregou-se de corpo e alma, nunca se poupando da penitência e do sofrimento, no sentido de morrer completamente para as coisas do mundo e se transformar no Homem-Deus Crucificado. Todo o seu progresso espiritual está descrito na obra Memoriale (escrito em latim pelo Pe. Arnold a partir da exposição oral da própria mística em dialeto da região da Úmbria) e nos 36 textos que constituem o conjunto ordenado de suas chamadas instruções aos religiosos e religiosas franciscanas (compilados no Livro de Visões e Instruções de Ângela  de Foligno).


A diretriz desse caminho é marcada e delineada pela oração constante, como ela própria afirma: 'Quanto mais rezais, tanto mais sereis iluminado; quanto mais fordes iluminados, tanto mais profundamente e intensamente vereis o Sumo Bem, o Ser sumamente bom; quanto mais profundamente e intensamente o verdes, tanto mais o amareis; quanto mais o amardes, tanto mais vos deliciareis; e quanto mais vos deliciardes, tanto mais o compreendereis e tornareis capazes de compreendê-lo. Sucessivamente, chegareis à plenitude da luz, porque compreendereis não poder compreender'.

Embora já presente nos seus fundamentos na obra Memoriale, a teologia mística e algo complexa de Angela de Foligno, que a fez conhecida como 'Mestra dos Teólogos', é mais estruturada e detalhada nas Instruções, mediante um processo de tripla transformação da alma: a primeira acontece quando o homem busca viver o caminho da vida e da paixão de Cristo (união pela semelhança com Cristo); a segunda ocorre quando a alma é transformada em Deus (a união com Deus pode ser expressa por pensamentos e palavras) e a terceira é formada por uma imersão completa da alma em Deus e de Deus na alma (união tão perfeita que não é passível de expressão por pensamentos ou palavras).

Estas transformações da alma não constituem estados permanentes e a alma, depois de experimentá-las, deve retornar à sua condição natural, para seu grande desgosto e sofrimento. Neste processo de transformação, Angela vivenciou a incorporação dos estigmas e experimentou uma grande gama de êxtases e aniquilamentos interiores. Os êxtases e visões da Paixão de Cristo foram de tal magnitude que ela padecia terrivelmente do flagelo combinado destes eventos, sentindo os efeitos do sofrimento extremo em todos os ossos e juntas do corpo. Após ter recebido, certa vez, a comunhão dada por um anjo, passou vários anos de sua vida recebendo apenas a Santa Comunhão como único alimento.


No Natal de 1308, revelou às suas companheiras que a sua morte ocorreria em breve, o que aconteceu durante o sono na madrugada de 04 de janeiro de 1309. Seus restos mortais, após processo de conservação, repousam atualmente na Igreja de São Francisco em Foligno. Foi beatificada em 1701 pelo Papa Clemente XI e, recentemente, em outubro de 2013, foi canonizada pelo Papa Francisco por meio do processo de 'canonização equivalente', relativamente raro na Igreja, em que, por meio de uma decisão papal, pode-se declarar o culto litúrgico a uma bem aventurada pela Igreja universal, em detrimento da elaboração e do desenvolvimento de um longo processo de canonização formal.


(relicário de Angela de Foligno, Igreja de São Francisco)