sexta-feira, 17 de abril de 2015

ROSÁRIO DA ALMA SACERDOTAL (IV)


OITAVO MISTÉRIO: DESPREZADOS, ABENÇOAM...

Apenas o Redentor tinha começado o difícil combate com o mundo e com o demônio, e logo recebera uma coroa. Naturalmente, não era a coroa que inspirava inveja. A solenidade da coroação era uma cena de escárnio. Algo de semelhante reproduz-se na vida sacerdotal. A coroa ensanguentada de Jesus Cristo corresponde à coroa dolorosa do sacerdote. 

Para compreendemos a significação mística desse passo da paixão, entremos no in­terior do Pretório. Esquecendo e olvidando o mundo, procuremos sondar esse profundo mistério pormenorizadamente. Eis, pois, revestiram o Salvador com um manto de púrpura; encimaram sua cabeça com uma coroa; puseram-lhe nas mãos uma cana e prestaram-lhe homenagens.

Revestiram o Salvador com um manto de púrpura

A flagelação era passada, essa ação desumana estava feita. Os algozes cobriram a sua vítima com vestidos e nesses panos infiltrou-se o sangue das feridas abertas. A túnica inconsútil de Jesus, totalmente ensanguentada, es­tava apegada na carne viva em todo o corpo: pa­recia o sacerdote revestido da casula vermelha. 

Jesus estava pronto para o sacrifício, pronto para caminhar ao altar no cimo do Gólgota. Os algozes porém, desnaturadas criaturas, ainda não estavam contentes; ajuntaram à dor física a dor moral, o escárnio. Jesus era rei, procura­ram então revesti-lo das insígnias de sua alta dignidade. Arrancaram-lhe cruelmente a vesti­menta da dor, tinta de sangue, e substituíram-na por um manto de púrpura, usado pelos generais dos exércitos daquele tempo.

Era o primeiro sinal da sua elevada po­sição. Um riso satânico então passou pelo pátio. Tinham dado começo à mofa feroz. Cristo ca­lou-se durante toda essa ação; seu silêncio, po­rém, é uma linguagem viva, pois também aqui o discípulo não é maior do que o mestre. Também para o Alter Christus, o mundo tem pre­parado seu manto de escárnio. O ódio à Igreja e a incredulidade, diariamente, hora por hora até, estão trabalhando para descarregar sobre o sacerdócio as suas ironias, para ridicularizá-lo ante os olhos da humanidade.

A imprensa e a língua são as lançadeiras que tecem o manto de escárnio com os fios da mentira e do ódio. Até a vestimenta do sa­cerdote é alvo de ferozes agressões e de palavras injuriosas. A batina preta e o burel do religioso figu­ram em imundas revistas como quadros sensacionais. Eis a sorte do Padre. Mostremos, porém, força e ânimo de heróicos confessores da fé. Alegremo-nos em sofrer opróbrios pelo nome de Jesus e jamais dei­xemos tão facilmente a nossa santa fé.

Encimaram a sua cabeça com uma coroa

A soldadesca com facilidade adquiriu pa­ra Jesus um diadema, pois bem próximo cresciam os arbustos de lotos e os espinhos; os seus galhos flexíveis e seus penetrantes acúleos pa­reciam mais belos que o ouro e o diamante aos malévolos soldados que deles logo se utilizaram fabricando uma coroa, impondo-a sobre a sagrada cabeça de nosso Salvador e, por fim, fazendo-a entrar bem profundamente. Então apareceram os rubis que faltavam, que eram as purpúreas gotas do precioso sangue de Jesus; deslizavam pelos ramos e pendiam nas pontas agu­das dos espinhos como pérolas brilhantes. Uma dor indefinível invadira então o nosso Divino Redentor.

Ó sagrada cabeça de meu Salvador, ul­trajada e escarnecida, cheia de sangue, de feridas, de dor... eu vos venero e reverencio. E vós, meu Jesus, não Vos queixais? E Vosso olhar, embaçado de sangue, meiga­mente dirige-se para a terra ou busca horizontes a nós desconhecidos? A Vossa mão não se levantará para rebater os monstros que Vos ultrajam? Ó santa e heróica paciência!

A tudo que vos rodeava éreis indiferente; a vida interior, porém, a vida celeste, a vida eterna, era para Vós tudo. Assim eu devo levar a minha coroa. Posuisti in capite meo coronam. Vós me destes a tonsura; ela é o símbolo de vossa coroa de dor. Devo, pois, praticar o desprezo de mim mesmo e do mundo, esta é a vossa vontade; satisfazendo-a, é mister sofrer. Esta cruz interior, escondida, que me faz mor­rer a tudo o que é do mundo, apronta-me para um altar, como Vos aprontou para a Cruz. Exsurge gloria mea (Sl 5, 6-9).

Puseram-lhe nas mãos uma cana

O bastão dos soberanos é o símbolo do poder; por isso permanece desde tempo imemoriais o cetro nas mãos dos reis. Que coisa mais natural do que entregar à vítima coroada o sinal de seu poder? Os algozes executaram esse seu intento. Cor­taram uma cana frágil e entregaram-na a Jesus, que lhes parecia tão fraco e débil como a própria cana. A força e onipotência divinas, porém, que residiam nos membros trêmulos do Salvador, escondiam-se aos olhos dos presentes.

E novamente resoaram sobre o pátio do Pretório as risadas e mofas atrozes. Jesus autem tacebat! Se formos prudentes, imitaremos a Jesus. Possuímos e temos um cetro; somos, por assim dizer, reis na paróquia. Nosso braço é for­te: podemos transubstanciar pão e vinho em Jesus Cristo, perdoar pecados, abençoar, man­dar e punir.

Esta nossa posição tem, porém, seus contraditores. Quantos se revoltam e procuram diminuir o nosso prestigio! Cortam então para nós a cana; entretanto nada temamos. Mas pro­curemos sabiamente evitar todo o abuso impru­dente de protestos sacerdotais. A nossa, divisa seja: 'calar, orar, amar'. Se Deus é por nós, quem será contra nós?

Deram-lhe homenagens

Os anjos do céu homenagearam o Divino Redentor. Cobertos de acatamento e respeito estão desde tempos muito remotos, estupefatos e extasiados diante do trono, exclamando: Salas Deo nostro, qui sedet super thronum, et Agno (Ap 7, 10). Caem sobre suas faces e ado­ram a Deus.

Na coroação de espinhos, porém, não se viam anjos: homens satânicos ao contrário, talvez inebriados, apresentaram-se, uns após outros, diante de Jesus. Gemi flectiram, cuspindo-lhe na sagrada face e gritando: Ave, rex Judaeorum! (Mt 27, 29). Seu respeito era uma horrível hipocrisia, seu acatamento, desprezo e sua homenagem, escárnio.

Jesus autem tacebat! Conservemos em nós segundo o seu exemplo, a calma, se semelhantes coisas nos sucedem. Em muitas paróquias tais acontecimentos não lançam raízes, nem semelhantes sofrimentos aparecem; em outras, contudo, se repetem sempre aquelas cenas da co­roação: insultos chistosos, grosseiros ludíbrios, baixas ridicularias, enfim vexação, de toda espécie.

Sim, cospe-se diante dos ministros do altar, cospe-se na passagem do sacerdote. Tais fatos leem-se nas crônicas de corajosos bispos e párocos de grandes metrópoles, de religiosos e missionários. Em suas vidas resplandece a 3.ª dezena dos mistérios dolorosos. Fortaleçamo-nos com o lema dos antigos místicos: sperno sperni. Roguemos a Deus que nos conceda grande paciência e muita caridade. Maledicimur et benedicimus (I Cor 4, 12).


NONO MISTÉRIO: UM OUTRO CONDUZIR-TE-Á!


Jesus Cristo tinha muitos discípulos. Uma verdadeira multidão de homens, ávidos da ver­dade, rodearam a sua pessoa fascinadora: dou­tores versados nas Escrituras, homens de mãos calejadas, jovens de alma em chamas e olhar fascinante.

Presos pela força e pelo calor de suas pa­lavras, muitos perseveraram por longo tempo junto do Redentor. Outros abandonaram-no, quando Ele exigia de sua fé e do seu espírito de sacrifício grandes esforços e atos heroicos. A doutrina da cruz, porém, até para os seus mais íntimos discípulos era uma pedra de escândalo. Enfim, quando a cruz era visível e pesava já nos ombros de Jesus, dispersara-se todo o resto de seus discípulos. Os Apóstolos tre­miam e foi mister bastante tempo para que eles empreendessem levar a cruz e pusessem em prática esta tão sublime doutrina.

A mesma coisa soa acontecer a nós, sacerdotes. Somos certamente os amigos íntimos e privilegiados de Jesus; seguimo-lo voluntariamente até o partir do pão, como diz o grande asceta. Mas, o alius te cinget, et ducet quo tu non vis (Jo 21, 18), encontra também em nós resistência da parte do velho homem. Devemos aprender do nosso Redentor, que por nós levou o pesado lenho da cruz; que o levou apesar dos sofrimentos anteriores, por meio da tumultuosa Jerusalém, por tanto tempo até que caiu debaixo de seu peso.

Apesar dos sofrimentos anteriores, não se ressentiam já os ombros de Jesus debaixo de tantos e tão atrozes sofrimentos? Não pingava o sangue de cada poro? Não era o seu corpo todo coberto de contusões, chagas e feridas profundas e dolorosas? Ó imagem de dor e comiseração! Sim, ó sim, desta sorte foi tratado o mais belo filho do homem. Detém-te, ó mão cruel, detém-te algoz desumano.

Mas a sede de sangue inflamou-se e era impossível retê-la. Trazem a grande e enorme cruz de madeira e Jesus não se queixa. A fraqueza o assalta, quase já não pode mais; não dá ouvido à natureza. Esquece os sofrimentos passados e abraça os novos. Magis pati — dizem e mur­muram os seus olhos a desfalecer.

Isto é heroísmo e este deve habitar, em nossa alma. Não devemos olhar para traz e di­zer: Eis, Senhor, a minha vida sacerdotal foi só trabalho e sofrimento em extremo. E já nova­mente estendeis-me o cálice da amargura? Dez... vinte anos... Vos servi, e não che­gou ainda o fim dos sofrimentos? Não pensemos assim, não. Acostumemos os nossos ombros às car­gas cada vez mais pesadas. Ainda que já tenhamos sustentado e suportado muita coisa, isto nunca será demasiado. Deus bem nos reconhece e sua graça é forte e pode muito, pode tudo. Sufficit tibi gratia mea (II Cor 12, 9).

Por meio da tumultuosa Jerusalém

O nosso Divino Redentor foi considerado réu. Seduz o povo: hunc inveniemus subvertentem gentem nostram (Lc 23, 2), di­ziam os judeus. Por que razão, então, devia-se lhe dar melhor tratamento do que a um escravo condenado à morte? O escravo, para sua con­fusão e vergonha, deve passar, antes de mor­rer, pelo mercado público, até o lugar de sua execução; o mesmo tratamento foi dado ao Homem-Deus. Todos deviam ver e presenciar a sua vergonha e confusão.

Levaram-no pelo meio da velha cidade-baixa, muito frequentada. Da altura do castelo ou palácio Antonia, ia a sua via dolorosa ao Vale de Jerusalém, até à porta Efraim. Conduzia a estrada para baixo e também para baixo espiritualmente, sim para as profundezas da humilhação. Assim iam sempre conduzidas em Jerusalém as pobres vítimas, acompanhadas por soldados, até, ao lugar do sacrifício.

Sigamos silenciosos o Salvador. As blasfêmias e gritos, os vitupérios e zombarias da mul­tidão repercutem nos nossos ouvidos. Os judeus só têm olhares de desprezo para quem leva a cruz. Poucos pensavam de maneira diferente, e estes poucos cresceram depois com o tempo aos milhares. Sempre volta o olhar do crente para as tristes cenas da Sexta-feira Santa.

Ó doce consolação para sacerdotes alquebrados pelos anos, ou doentes, que dolorosamente seguem seu caminho neste vale de lágrimas. O pensamento que eleva e robustece todos aqueles sacerdotes que sofrem e padecem. Estes dão nas paróquias exemplos como Cristo os deu na tumultuosa Jerusalém aos olhos dos poucos que lhe ficaram fieis. Estes exemplos ficarão mais tempo na memória do que as próprias pregações; produzirão o bem até além do túmulo.

Por tanto tempo até que caiu debaixo do peso da cruz

Muitas forças Jesus já tinha perdido, restavam-lhe agora muito poucas. O sangue na maior parte já foi derramado, os seus membros já esta­vam a desfalecer, mas, mesmo assim, prosseguiu com o seu peso. Não pediu nenhum alívio nem jogou longe de si a cruz tão pesada. Silencioso, curvado, mas resignado, Jesus segurou, abra­çando o precioso fardo; contudo os seus ombros pouco a pouco perderam a força. Cederam afi­nal essas forças. Verdadeira é a tradição que nos transmite que o Divino Salvador desfaleceu e caiu por terra debaixo da cruz. Os judeus presenciaram isto e obrigaram então um certo Simão, o Cirineu, a substituir a Jesus, levando-lhe o pesado lenho.

Ó sublime grandeza de nosso Divino Mestre Cum dilexisset suos qui erant in mundo in finem dilexit eos (Jo 13,1); sim, amou-os até o fim de suas forças. Como anões, esta­mos ao lado do gigante com a sua enorme ener­gia e fácil prontidão para tudo sofrer e tudo suportar. Como são mesquinhos os nossos sofrimentos e sem razão as nossas queixas.

É natural que tenhamos cuidado com a nossa saúde, para não interrompermos antes do tempo o exercício das nossas forças físicas. Mas não exageremos esses cuidados. Volunta­riamente queiramos sacrificar toda força da al­ma e do corpo, imolar a última gotinha de sangue pelo nosso bom Deus. Trabalhemos com o suor de nosso rosto, até que Deus seja servido e nos chamar para as eternas glórias, para os eternos gozos, para as eternas alegrias!


DÉCIMO MISTÉRIO: PREGAMOS CRISTO RESSUSCITADO!

A cruz rodeia-nos em toda parte: acena das torres das igrejas, admoesta nos sepulcros dos cemitérios, tem seu trono nas casas de famílias, nos altares, e no paramento do sacerdote quando diz a Santa Missa. E nós... temos na língua a cruz. As pa­lavras não pronunciadas, escritas por gotas do sangue precioso de Jesus, estão gravadas silenciosas no duro lenho da cruz, nós as pronunciamos: 'nós pregamos Cristo crucifi­cado' (I Cor 1, 23) nos autem praedicamus Christum crucifixum

Como nós po­demos isto, se a cruz não se confunde totalmente com o nosso modo de pensar e de existir! Pene­tremos por isso gostosamente nesse sublime mistério que para os pagãos é uma loucura, para os judeus um escândalo, para os cristãos, ao con­trário, a mais alta sabedoria. Cristo porém foi por nós crucificado: por fraqueza; para benefício do universo e para exemplo e doutrina do mundo.

Por fraqueza

Mas como? A cruz ensanguentada do Gólgota será um monumento de fraqueza? Sim, pois o Apóstolo diz: Crucifixus in infirmitate (II Cor 13, 4). Toda a majestade, toda a suprema dignidade do muito louvado e venerado profeta naufragou aos olhos dos romanos e judeus na cruz. Aparentemente fraco e sem auxílio estava Jesus, pen­dente do patíbulo da cruz, exposto às zom­barias. Todos viram aí a realeza perdida e irrevogavelmente condenada à morte. 

Entretanto, o que parecia fraqueza era na realidade força e força infinita, onipotência. No Redentor vivia, apesar de quase todo o sangue se destilar do corpo, uma força divina e que tudo superava. Subjugou a morte e o demônio, sim, todo o poder do infer­no, quando a sua língua se pregou no véu palatino e seus olhos murcharam.

Jesus edificou, por assim dizer, na hora da morte, no momento de expirar, a igreja mundial. Nam etsi crucifixus est ex infirmitater sed vivit ex virtude Dei (II Cor 13, 4). Procuremos realizar na nossa vida, pela prá­tica, esta sublime doutrina de Jesus. Nam et nos infirmi sumus in illo: sed vivemus cum eo ex virtute ei in vobis (II Cor 13, 4). Isto mesmo provou São Paulo por toda a sua vida. Sofrimentos cruciaram e enfraqueceram-no; quem porém sabe medir a sua vontade de ação, quem descreve seus triunfos? Tão grande era a energia que cintilava em seus olhos, que até se gloriou de sua fraqueza. 

Não observamos a mesma coisa, muitas vezes, na vida de alguns sacerdotes, que, apesar de doentes e al­quebrados, dão provas de grande força de alma e de heroísmo sem igual? Sim, há sacerdotes que trabalham com muito fruto, apesar de sua fraqueza e de sua débil constituição, pois o seu espírito parece ser totalmente constituído de energia. A graça apossou-se inteiramente des­ses obreiros da vinha do Senhor e verifica-se então o que diz o Apóstolo: nam virtus in infirmitate perficitur (II Cor 12, 9).

 Para benefício do Universo

Da morte brota a vida; isto nos ensina a na­tureza. O sobrenatural diz a mesma coisa. Não era sempre o sangue dos mártires a semente frutuosa de novos cristãos? O rei de todos os mártires porém é Jesus Cristo. Nada de extraordinário, pois, quando na primeira Sexta-feira Santa, pelas três horas, pas­sou pelo universo um hálito renovador que cha­mava à vida o que estava morto no homem: a vida da alma, a vida da graça. Veio então a pri­mavera; vagarosamente, mas veio. A fonte purpúrea, do sangue de Jesus, que brotara no cimo do Gólgota, percorreu os povos e as nações como um rio de bênçãos.

O Redentor tudo e todos prendeu a si: pa­gãos e judeus. Viu na hora da sua morte cruel o nascimento glorioso da Igreja Universal. Reminiscentur et convertentur ad Dominum universi fines terrae: et adorabunt in conspectu ejus uni­versa familiae gentium (Sl 21, 28). O que foi a cruz na primeira Sexta-Feira da Paixão, o é hoje, pois o crucificado vive e morre no santo sacrifício da Missa. Este tão sublime mistério está depositado na minha mão e na mão de todo sacerdote. Oh, tremendum mysterium!

Eu posso tudo e a todos prender a mim como o Salvador na cruz. Que benção! Instruirei e entusiasmarei o povo para o incruento sacrifício do altar e celebrarei eu mesmo como o Sacerdote-Magno no espírito e na intenção de Jesus Cristo. De­vo estar tão acima da terra, quando fico junto do altar, devo estar alheio a ocupações humanas e longe de negócios terrenos. Então correrá a fonte de bênçãos e de graças, que muda e trans­forma os corações humanos em corações segundo Jesus Cristo; então seguirá à transubstanciação do pão no altar a transformação da alma e de toda a paróquia.

Para exemplo e doutrina do mundo

O Crucifixo substitui uma completa biblioteca sacerdotal; é um Livro, tão universalmente escrito, que qualquer espírito o pode ler e compreender. E, contudo, são os seus pensamentos de uma profundidade tal, que a vida longa e inteira de um sacerdote não basta para esgotar o seu conteúdo. São Paulo reúne num só pensa­mento e numa só frase toda a doutrina da cruz, quando ele escreve aos gálatas: Qui autem sunt Christi, carnem suam crucifixerunt cum vitiis et concupiscentiis (Gl 5, 24).

Com isto o Apóstolo quer dizer: pelo batismo fomos incorporados a Cristo, porém a esta incorporação deve seguir a crucifixão: o velho homem deve morrer. Treze séculos mais tarde, leu-se no crucifixo a mesma doutrina: Ecce in cruce totum constat, et in moriendo totum jacet: et non est alia via ad vitam et ad veram internam pacem, nisi via sanctae crucis, et quotidianae mortificationis (Imit. Christi 2, 12).

Assim, pois, tudo está na cruz, e todo o ponto está em morrer; outro caminho não há para a vida e paz interior verdadeira fora do ca­minho da santa cruz e contínua mortificação. Em que ponto estou eu com o morrer a mim mesmo? Dobram os sinos na torre da minha igreja, representando o toque fúnebre da morte de minha natureza, que morreu totalmente para o mundo.

Ó profunda mística contida na cruz! Tu, ó santo lenho, prendeste espírito e alma de inúmeros santos sacerdotes; horas inteiras retiveste junto de ti os seus corações. Ó profunda mística contida na cruz! Tu fizeste chorar um Paulo, um Thomas, um Boaventura; dirigiste a pena de um Francisco de Sales, um Henrique Suso, um Tauler, um Thomas de Kempis!

Ó profunda mística contida na cruz! Pe­netra bem no meu espírito, ó cruz bendita! Faze-me voltar para o meu interior e tira de mim todo pensar frio e frívolo. Não, assim não posso continuar. Sou muito leviano e volvido para as coisas exteriores; devo ao contrário entrar em mim mesmo, bem no fundo do meu interior, mas isso só é possível, se eu morro em mim mesmo. Deve vir a noite para poder aparecer um belíssimo e quase infinito céu coberto e semeado de estrelas. Imensas e muitas extensas regiões abrem-se aos olhos interiores. Vai-se, então, de clareza em clareza, de claridade em claridade!

(Excertos da obra 'A Pérola Preciosa', do Pe. Wendelin Meyer, trad. de Alberto Kolb)