quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A FÉ EXPLICADA (XVI)


P. – A eternidade das penas do inferno se contrapõe à justiça de Deus. É injusto castigar eternamente um pecado que durou apenas alguns momentos.

R. – Nenhum crime se castiga pelo tempo que se leva para cometê-lo, e sim, pela gravidade intrínseca que ele contém. A justiça humana não condena às vezes à prisão perpétua e mesmo à pena capital ao malfeitor que cometeu um crime num instante? Pois levando-se em conta que o pecado - sobretudo o pecado cometido contra Deus com plena vontade e maldade obstinada - encerra uma malícia de certo modo infinita, em função da distância que separa o ofensor do ofendido, torna-se justo que seja castigado também com uma pena infinita. Não sendo possível tal pena em intensidade, tem que ser pelo menos em extensão. Assim pois, a eternidade das penas do inferno não somente não se contrapõe à justiça de Deus, como é um exigência e uma consequência elementar da mesma.

P. – Parece-me muito difícil conceber a malícia infinita do pecado, pois uma criatura não pode realizar um ato infinito.

R. – O caráter infinito do pecado não procede do ato em si mesmo, objetivamente considerado, mas da infinita distância existente entre Deus e o pecador. Ao pecar, livre e voluntariamente, o pecador assume uma condição que o alija e o separa de Deus. E esta separação possui, de fato, uma dimensão infinita e naturalmente irreparável.
   
P. – O pecador não comete seu pecado prevendo e ratificando essa projeção eterna. A grande maioria dos homens peca provisoriamente, 'por um tempinho', esperando arrepender depois.

R. – Essa esperança de um futuro arrependimento é uma ilusão vã e imoral. Vã, porque o pecador não poderá deixar o seu pecado sem a graça do arrependimento, que Deus não está obrigado a lhe dar e que pode mesmo negar-lhe em castigo por tanta ingratidão. Quem se arrisca a descer em um poço que não pode sair sem que alguém de fora lhe estenda um cabo tende a ficar lá eternamente se alguém de fora - que não tem a obrigação de ajudá-lo em sua louca temeridade - não se dispor a fazê-lo. E é imoral porque se apoia precisamente na misericórdia de Deus para ofendê-lO com maior tranquilidade. 

P. – De qualquer forma, o pecador peca num tempo, por que castigá-lo pela eternidade?

R. – Desde o momento em que o pecador coloca seu propósito de vida em uma criatura, ato absolutamente incompatível e que constitui a própria renúncia ao seu fim último sobrenatural, demonstra claramente que se entregaria a esse pecado ainda com maior vigor se pudesse gozar eternamente do prazer que o mesmo lhe oferece agora. Se, por um instante que seja, fugaz e passageiro, aceita a possibilidade de perder a eternidade junto de Deus, quanto mais não se aprazaria em cometer tal pecado se nele pudesse permanecer impunemente por toda a eternidade! Neste sentido, São Tomás dizia, com profunda percepção, que o pecador, ao separar de Deus, peca em sua eternidade subjetiva. Assim sendo, se o pecador ofende a Deus em sua eternidade, é muito justo que Deus o castigue pela sua, como diz Santo Agostinho. 

P. – Mas a malícia subjetiva do pecado não depende do grau de conhecimento e voluntariedade com que procedeu o pecador?

R. – Certamente que sim.

P. - E que pecador se dá conta, ao cometer um pecado, do alcance e da transcendência do seu ato? Seria preciso que ele tivesse uma ideia bastante clara da grandeza de Deus e da dimensão incomensurável da eternidade.

R. – O pecado cometido nessas condições teria uma malícia verdadeiramente diabólica. Esse foi o pecado dos anjos rebeldes, cuja malícia era tal que Deus negou para sempre o benefício da redenção que é oferecido, no entanto, ao homem pecador. 

P. –  Então vós mesmo confessais que o pecado do homem não possui a malícia satânica dos demônios e, portanto ...

R. – Portanto, Deus se compadeceu dele e lhe ofereceu o benefício da redenção, que negou aos anjos rebeldes. Mas, precisamente por causa dessa recorrência voluntária do homem em pecar, mesmo depois de ter sido derramado o sangue do Filho de Deus encarnado para redimi-lo, implica maior ingratidão e também maior malícia subjetiva. E isso é o bastante para que esse pecado, cometido livre e voluntariamente, tenha a força suficiente para afastar o pecador para sempre de Deus como fim último sobrenatural.

P. – Mas por que Deus cria aqueles que sabe que serão condenados?

R. – Entre outras razões que transcendem infinitamente a pobre inteligência humana, há que se dizer que, caso contrário, ter-se-ia uma grande imoralidade, a qual contradiz a santidade infinita de Deus. De fato, se Deus, levado por sua infinita misericórdia, não criasse mais os que não haveriam de salvar-se, resultaria que o homem poderia zombar impunemente de Deus, violando um por um todos os mandamentos da lei divina. Nem sequer precisariam se arrepender de seus pecados, uma vez que Deus teria que os perdoar forçosamente, mais cedo ou mais tarde. Pelo que se poderia ter o caso de um pecador, que depois de sofrer na vida uma pena temporal ainda que bastante longa, eventualmente, entraria no céu sem se arrepender de seus pecados e sem ter pedido perdão a Deus. Quem não percebe que tal coisa seria uma monstruosidade ultrajante, mil vezes mais inconcebível que o fato de Deus criar aqueles que virão a ser condenados? 

Por outro lado, uma coisa está bastante clara na teologia da salvação, qualquer que seja a escola teológica a que se pertença: Deus não cria nem criará jamais ninguém para ser condenado por princípio (punição positiva), embora possa prever que alguém possa querer se condenar voluntariamente (punição negativa, em castigo pelo pecado voluntariamente cometido). De quem é a culpa, pois, se o pecador é condenado? Seria o cúmulo da imoralidade pedir contas a Deus por punir com justiça um crime que somente o pecador, por perversão, tem por culpa livre e voluntária.

P. - Mas, por que a pena do pecado deve ser eterna? Não seria suficiente uma pena temporal - ainda que longuíssima - para satisfazer as exigências da justiça divina?

R. – De forma alguma. A obstinação do pecador, perpetuamente agarrado ao seu pecado, obriga a uma manutenção eterna da pena. O pecador não se arrepende nem se arrependerá jamais. Nessas condições, a pena terá de ser necessariamente eterna. Enquanto se estiver em falta, há que perdurar o castigo. Nas palavras de São Tomás: 'A culpa permanece para sempre, porque não pode existir remissão sem a graça, que o homem não pode mais adquirir depois da morte. Portanto, a pena não pode cessar enquanto permanecer a culpa' (Supl. 99, 1).

(Excertos da obra 'Teología de la Salvación', do Pe. A. Royo Marín, tradução do autor do blog)