quinta-feira, 4 de setembro de 2014

À SEMELHANÇA DE JESUS


Em certas horas encontro-me tão triste, que até a própria vida me pesa. Mas, refletindo um pouco, vejo que é tudo questão do amor próprio ofendido, ou de alguma paixão contrariada. Disseram-me alguma palavra humilhante, mimosearam-me com exprobrações injustas ou palavras injuriosas, fui malsinado por aqueles mesmos cuja estima me é tão cara e preciosa. E por tudo isto me deixo dominar da melancolia? Que cabeça pequenina a minha! Não foi Jesus tratado pior do que eu? Não lhe chegaram a dizer que era dado ao vinho, que era um furibundo, um possesso do demônio? Portanto, porque hei de entristecer-me? Reparando bem, toda esta aparente desonra que me aflige, não representa senão um traço de semelhança entre mim e Jesus. E será isto um mal?

Como? Eu assemelhar-me a Jesus? Eu pensava que para isso bastava orar um pouco como Ele, trabalhar um pouco como Ele, dizer algumas palavras santas como as suas, fazer algumas carícias às crianças, arremessar algumas setas contra os escribas e fariseus, como era seu costume. Mas esquecia que tudo isto é muito pouco e que, para ter parecenças com Jesus, tenho de tomar uma certa cruz e, com a cruz, quantas coisas amargas e pesadas!

E, contudo, é assim mesmo: a semelhança com Jesus demanda humilhações e humilhações, e depois ainda humilhações. E preciso ser-se mal compreendido e interpretado nas coisas mais evidentes e mais justas; passar por hipócrita quando se é franco e sincero; ser tido por egoísta quando se fez um sacrifício pelo próximo; ser acoimado de imbecil quando se perdoa e se ama um ofensor; ser perseguido pela calúnia pelo temor que uma virtude nossa vá ofuscar o falso esplendor duma hipocrisia; ser amaldiçoado quando só bênçãos se mereceram... 

São coisas que queimam a alma como botões de fogo; mas como lhe fazem bem! Que prazer, quando se tem os olhos cheios de lágrimas, poder dizer, olhando o Tabernáculo: também Jesus chorou assim; quando o coração transborda de amargura e de dor, poder dizer: também Jesus sofreu assim; quando se cai por terra sob o peso duma cruz enorme, poder dizer: também a Jesus aconteceu assim. São gostos estranhos para o mundo, mas para a alma eucarística tem uma tal doçura e sublimidade, que ela estaria sempre sobre a via do Calvário para granjeá-las todos os dias. Para a alma eucarística... Mas para mim, que sou muito diverso, como encontro eu estes gostos?

Agora, compreendo porque quando olho o Crucifixo sinto no coração um não sei quê, como que um remorso. Acontece-me como a um homem vaidoso que, vendo-se ao espelho, se encontra disforme. Basta; já sei onde está o retrato de Jesus. Irei contemplá-lo e farei confrontos. Serão odiosos à minha soberba, mas paciência! Afinal, tendo eu sofrido tantas coisas no passado para aviltar a minha alma, serei agora um louco se sofrer um pouco para me assemelhar a Jesus?

(Excertos da obra 'Centelhas Eucarísticas', de original italiano, 1906; trad. de Adolfo Tarroso Gomes, 1924)

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

BREVIÁRIO DIGITAL - ORAÇÕES E MEDITAÇÕES (II)

 
(Do original 'O Pequeno Missionário', P. Guilherme Vaessen, 1953, p. 50 - 54)

MODO BREVE DE MEDITAR A PAIXÃO DO SENHOR


Após a invocação do Espírito Santo, façamo-nos três perguntas: 

1.º Quem é que sofre? É um homem, um príncipe, um rei? É um anjo, um querubim, um serafim? Não, é mais ainda, é um Deus, o eterno, o infinito, o Criador de todas as coisas, o soberano do céu e da terra. Não nos é um estranho, pois que é nosso amigo, o nosso benfeitor, o nosso irmão, o nosso Pai por excelência. Que motivo para nos compadecermos de seus tormentos!

Detenhamo-nos em cada um destes pensamentos para melhor deles nos compenetrarmos.

2.º O que Ele sofre? No seu corpo: a flagelação, a coroação de espinhos, o esgotamento de suas forças no caminho do Calvário, na crucifixão. Na sua alma: temores, desgostos, tristeza no jardim das Oliveiras, angústias indizíveis até a morte por causa dos nossos pecados e da perdição das almas.

Figuremo-nos sofrer nós mesmos todos esses suplícios, e nos compadecermos melhor das dores do Redentor.

3.º Como Ele sofre? Com calma, paciência, submissão perfeita à vontade de seu Pai... Com o desejo de glorificá-lo e de salvar o gênero humano perdido... Praticando todas as virtudes num grau sublime e divino.

Consideremos pormenorizadamente essas virtudes; unamo-nos às intenções e disposições do Homem-Deus que as praticava nas mais difíceis circunstâncias.

(Excertos da obra 'Meditações para todos os dias do ano', de R.P. Bronchain, Tomo I, Ed. Vozes, 1949)

domingo, 31 de agosto de 2014

'TOME A SUA CRUZ E ME SIGA'

Páginas do Evangelho - Vigésimo Segundo Domingo do Tempo Comum


Jesus, a caminho da Cesareia de Felipe, vai fazer aos seu apóstolos neste dia, de forma explícita, o primeiro anúncio de sua Paixão e Ressurreição, que consubstanciarão os eventos culminantes de sua missão salvífica. Missão que Ele vai cumprir até o fim, até a plena consumação das grandes profecias, o Verbo encarnado entregue como cordeiro à morte de cruz, entre dois ladrões, para a redenção da humanidade pecadora.

Diante dos desígnios da Providência, irrompe as emoções e julgamentos humanos. Pedro, a mesma pedra que antes recebera a proclamação como fundamento da Igreja, vacila agora diante da incompreensão dos tributos extraordinários de Deus feito homem. Vacila e se confunde na fé, moldada apenas pelos rudimentos de sua vontade humana e que se recusa a aceitar as reverberações das palavras de Jesus, que acabara de revelar aos discípulos que iria 'sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia' (Mt 16, 21).

Jesus vai repreendê-lo duramente em seguida, nomeando-o como 'satanás' e como 'pedra de tropeço', designações que o tornam adversário das coisas do Alto, por limitar aos ditames da lógica humana os inescrutáveis desígnios da mente divina, por não pensar 'as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens!' (Mt 16, 23). De agora em diante, e com singular devoção, Jesus vai preparar os seus discípulos, e especialmente a Pedro, para os tempos já tão próximos de sua Paixão, Morte de Cruz e Ressurreição e também para o chamamento ao sacrifício e martírio de tantos.

No caminho da santidade, Deus não nos pede um pouco, ou quase tudo, pois cumprir a Vontade de Deus exige de nós a completa e absoluta disposição da alma. Não há meios termos, nem concessões de menos. Deus quer e espera tudo de nós, toda a nossa vida, todo o nosso tempo, toda palavra, pensamento e ação: 'Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois, quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua vida? ' (Mt 16, 24 - 26). E ao perguntar: 'O que poderá alguém dar em troca de sua vida?' (Mt 16, 26), responde com a promessa da verdadeira vida e da verdadeira felicidade no Céu, que hão de nos acompanhar como eleitos da graça nas planuras eternas da Casa do Pai.

sábado, 30 de agosto de 2014

SALMO 62

O profeta Jeremias já havia louvado o Senhor: 'Seduziste-me, Senhor, e deixei-me seduzir' (Jr 20, 7) e proclamado o Senhor como a 'fonte de água viva' (Jr 2, 13). O próprio Jesus prometera à mulher samaritana: 'Quem beber da água que Eu lhe der, jamais terá sede, porque a água que Eu lhe der se tornará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna' (Jo 4, 14). O Salmo 62 refere-se à contemplação mística da alma diante de Deus, alma sedenta do amor de Deus, alma tangida na graça da plenitude de Deus. 

Sois vós, ó Senhor, o meu Deus! 
Desde a aurora ansioso vos busco! 
A minh'alma tem sede de vós,
minha carne também vos deseja,
como terra sedenta e sem água!

Venho, assim, contemplar-vos no templo,
para ver vossa glória e poder.
Vosso amor vale mais do que a vida:
e por isso meus lábios vos louvam.

Quero, pois, vos louvar pela vida,
e elevar para vós minhas mãos!
A minh'alma será saciada,
como em grande banquete de festa;
 cantará a alegria em meus lábios,
ao cantar para vós meu louvor!

Penso em vós no meu leito, de noite,
nas vigílias suspiro por vós!
Para mim fostes sempre um socorro;
de vossas asas à sombra eu exulto!
Minha alma se agarra em vós;
com poder vossa mão me sustenta.

COMO RESISTIR ÀS TENTAÇÕES

Há duas maneiras de resistir aos vícios e adquirir as virtudes. Existe uma maneira mais comum e não tão perfeita que consiste em procurar resistir a algum vício por meio de atos de virtude que se lhe opõe e que destrói tal vício, pecado ou tentação. Como se ao vício ou tentação de impaciência ou de espírito de vingança que sinto em minha alma, por algum dano recebido, ou por palavras injuriosas, ou quisesse resistir lançando mão de considerações apropriadas, por exemplo, considerando a paixão do Senhor: 'Era maltratado e ele sofria, não abria a boca' (Is 53,7); ou trazendo à lembrança os bens que se adquirem com o sofrimento e com o vencer-se a si mesmo, ou ainda, pensando que Deus nos ordenou que sofrêssemos por advir daí o nosso aproveitamento. Por meio dessas considerações, consinto em sofrer, querer e aceitar a citada injúria, afronta ou dano, e isso, visando a glória e a honra de Deus. Esta maneira de resistir e de se opor à tentação, vício ou pecado em apreço, dá ocasião ao exercício da paciência e é um bom modo de resistir, ainda que árduo e menos perfeito.

Há outra maneira mais fácil, proveitosa e perfeita de vencer vícios e tentações e adquirir e conquistar virtudes. Consiste no seguinte: a alma deve aplicar-se apenas nos atos e movimentos anagógicos e amorosos, prescindindo de outros exercícios estranhos; por este meio, consegue opor resistência e vencer todas as tentações do nosso adversário, alcançando assim as virtudes, em grau eminente.

Ao sentirmos o primeiro movimento ou investida de algum vício, como a luxúria, a ira, impaciência, espírito de vingança por uma ofensa recebida, não procuremos resistir opondo um ato da virtude contrária, segundo ficou dito, mas desde os primeiros assaltos, façamos logo um ato ou movimento de amor anagógico contra o vício em questão, elevando nosso afeto a Deus, porque com essa diligência já a alma foge da ocasião e se apresenta a seu Deus e se une com ele. Ora, desse modo, consegue vencer a tentação e o inimigo não pode executar o seu plano, pois não encontra a quem ferir, uma vez que a alma, por estar mais onde ama do que onde anima, subtraiu divinamente o corpo à tentação. Portanto, não acha o adversário por onde atacar e dominar a alma; ela já não se encontra ali onde ele a queria ferir e lhe causar dano.

E então, ó maravilha! a alma como esquecida do movimento vicioso e unida ao seu Amado, nenhum movimento sente do tal vício com que o demônio pretendia tentá-la, tendo mesmo, para isso, arremessado seus dardos contra ela; primeiramente, porque subtraiu o corpo, como ficou dito, e, portanto, já não se encontra ali; assim, se me permitem a expressão, seria quase como tentar um corpo morto, pelejar com o que não é, com o que não está, com o que não sente, nem é capaz de ser tentado, naquela ocasião.

Desta maneira vai-se formando na alma uma virtude heroica e admirável, que o Doutor Angélico, Santo Tomás, denomina virtude da alma perfeitamente purificada. Esta virtude, diz o Santo, é a que vem a ter a alma quando Deus a eleva a tal estado que ela já não sente as solicitações dos vícios, nem seus assaltos, nem arremetidas ou tentações, pelo elevado grau de virtude a que chegou. E daqui lhe nasce e advém uma tão sublime perfeição que já nada se lhe dá que a injuriem ou que a louvem e enalteçam; que a humilhem, que digam mal dela ou que digam bem. Porque, como os citados movimentos anagógicos e amorosos conduzem a alma a tão elevado e sublime estado, o efeito mais próprio deles com relação a ela é fazê-la esquecer todas as coisas que estão fora de seu Amado, que é Jesus Cristo. E daqui lhe vem, segundo referimos, que estando a alma unida a seu Deus e entretida com ele, as tentações não encontram a quem ferir, pois não podem elevar-se ao nível a que a alma subiu, ou até onde foi elevada por Deus: 'Nenhum mal te atingirá' (Sl 90,10)

Deve-se prevenir aos principiantes, cujos atos de amor anagógicos não são ainda tão rápidos e instantâneos, nem tão fervorosos, para que consigam, de um salto, ausentar-se completamente dali e unir-se com o Esposo, que, se perceberem que apenas essa diligência não basta para esquecer por completo o movimento vicioso da tentação, não deixem de opor resistência, lançando mão de todas as armas e considerações que puderem, até que cheguem a vencê-la completamente. Devem proceder do seguinte modo: primeiramente, procurem resistir, opondo os mais fervorosos movimentos anagógicos que lhes for possível e os ponham em prática, exercitando-se neles muitas vezes; quando isso não for suficiente, porque a tentação é forte e eles são fracos, aproveitem-se, então, de todas as armas de piedosas meditações e exercícios que julgarem ser necessários para conseguir a vitória. Devem estar persuadidos de que este modo de resistir é excelente e eficaz, pois encerra em si todas as estratégias de guerra necessárias e de importância.

(Excertos a obra 'Ditames de Espírito', de São João da Cruz)