sábado, 11 de maio de 2013

QUANDO O INFERNO É AQUI...

24 de abril. Periferia da cidade de Daca, em Bangladesh. O trágico desabamento de um edifício de nove andares, o Rana Plaza, que abrigava lojas, bancos e cinco fábricas têxteis, resultou até agora em 1089 mortos, ainda sendo removidos os escombros dos andares inferiores. Das ruínas remanescentes, eleva-se um fedor de corpos em decomposição. Uma mistura de ganância, má construção, falta de segurança, miséria espiritual e descaso humano, registrado na trágica fotografia do último anelo de humanidade.


sexta-feira, 10 de maio de 2013

ORAÇÃO: SALVE RAINHA

SALVE REGINA  (SALVE RAINHA)

Um monge chamado Herman Contractus é geralmente considerado o autor dessa que é a mais popular das orações marianas, que a teria escrito por volta do ano 1.050, no mosteiro de Reichenan (Alemanha). Presume-se que o texto original não incluía a frase final 'O clemens, O pia, O dulcis Virgo María', que teria sido adicionada por São Bernardo (1091-1153). O que se sabe com certeza é que a oração completa já era cantada pelos monges beneditinos de Cluny em 1135. O complemento das duas frases finais não fazem parte da oração propriamente dita. Uma indulgência parcial é concedida a todos os fiéis que recitarem devotamente esta oração. 



Salve, Regina, Mater misericordiae, Salve, Rainha, Mãe de misericórdia,  vita, dulcedo, et spes nostra, salve. vida, doçura e esperança nossa, salve!  Ad te clamamus exsules filii Hevae. A vós bradamos, os degredados filhos de Eva;  Ad te suspiramus gementes et flentes a vós suspiramos, gemendo e chorando  in hac lacrimarum valle. neste vale de lágrimas.  Eia ergo, advocata nostra, Eia, pois advogada nossa, illos tuos misericordes oculos ad nos converte. esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei; Et Jesum benedictum fructum ventris tui, nobis post hoc exsilium ostende. e depois deste desterro nos mostrai Jesus, bendito fruto do vosso ventre, O clemens, O pia, O dulcis Virgo Maria.  ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria.
Ora pro nobis, sancta Dei Genetrix. Rogai por nós, santa Mãe de Deus, Ut digni efficiamur promissionibus Christi. Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

O LIBERALISMO E AS APARIÇÕES DE FÁTIMA

O texto abaixo é uma compilação quase integral dos capítulos II e XV da obra 'Fátima e a Redenção de Portugal', de J.M. Félix (1939) que mostra, de maneira inequívoca, que as aparições de 1917 de Nossa Senhora em Fátima constituiu a resposta divina definitiva à difusão generalizada e desenfreada dos erros heréticos do liberalismo sobre toda a humanidade. 

Capítulo II - Causas do Liberalismo

Foram muitas as circunstâncias e causas que contribuíram para o aparecimento das tendências liberais desde os fins da Idade Média. Recordemos as principais. Os excessos do feudalismo provocaram reações violentas da parte das populações tiranicamente vexadas e oprimidas. Os monarcas desse tempo, vendo na decadência do feudalismo uma condição indispensável para o revigoramento do seu poder, não hesitaram em secundar as insurreições populares contra as prepotências dos senhores feudais. A própria Igreja Católica, sempre disposta a combater as injustiças e a defender os fracos e os oprimidos, colocou-se à frente deste movimento destinado a melhorar as condições materiais, intelectuais e morais daqueles que então viviam na 'miséria imerecida'. A melhoria da situação das classes populares originou o desenvolvimento das comunas, dos municípios e das cidades burguesas.

Claro está que era justo esse movimento renovador das instituições medievais. Mas começava já a preparar-se o ambiente em que havia de intensificar-se a sede de liberdade e as tendências individualistas. Ainda em pleno século XIII aparece a Magna Carta das liberdades inglesas, e pouco depois, o Parlamento, que estava destinado a desempenhar um papel importante na marcha do liberalismo e na história da Inglaterra e das outras nações que importariam mais tarde essa instituição tão querida dos apaixonados da democracia e da liberdade.

Desde os fins do século XIII e princípios do seguinte, começa a diminuir o prestígio e a influência da Igreja. Contribuíram para isso as lutas de Bonifácio VIII com o ambicioso e avarento Felipe IV, o Belo, que, servindo-se audaciosamente da mentira, do insulto e da violência, ofendeu gravissimamente a dignidade e os direitos do Sumo Pontífice. A esses fatos lamentáveis sucederam outros acontecimentos de piores consequências para o prestígio da Santa Sé, isto é, a residência dos papas em Avignon e o Cisma do Ocidente.

A residência dos papas em Avignon, deixando o Chefe da Igreja na dependência, pelo menos aparente, do rei da França, foi ocasião de começarem a desconfiar do Sumo Pontífice os outros monarcas da cristandade. Daí nasceram os graves conflitos entre a Santa Sé e os imperadores da Alemanha, que tiveram o seu período mais agudo no reinado de Luiz da Baviera, o qual chegou a invadir a Itália, entrar em Roma e a criar um anti-papa.

O Cisma do Ocidente, que durou 39 anos, teve o triste condão de dividir a cristandade e de afrouxar consideravelmente os vínculos da obediência, do respeito e do amor à Santa Sé... As rebeliões do poder civil contra a Santa Sé eram até então fatos mais ou menos espaçados... A partir do século XIV tornam-se uma rebelião sistemática, uma epidemia permanente e universal, devido ao aparecimento de doutrinas avariadas que libertavam os príncipes da sujeição à Santa Sé e lhes atribuíam poderes maiores aos do Pontífice Romano e conferiam o direito absoluto de regularem a própria vida interna da Igreja.

... o primeiro célebre doutrinador do sistema regalista foi Marsílio de Pádua que, na luta entre o Papa e Luiz da Baviera, atacou com violência os direitos da Igreja e do Sumo Pontífice e defendeu as orgulhosas pretensões do imperador alemão. As suas péssimas teorias...tornaram-se a medula dos sistemas semelhantes que foram aparecendo, depois, com diferentes denominações: regalismo, galicanismo,  jansenismo, febronianismo, josefinismo e, finalmente, o liberalismo contemporâneo.


Para preparar o terreno e abrir o caminho ao movimento liberal concorreu também não pouco a decadência da Escolástica, iniciada no entardecer do século XIII, em consequência de circunstâncias de vária ordem ... Com a multiplicação das universidades... começam as rivalidades entre as diversas escolas filosóficas: surge o Escotismo com a sua crítica cerrada aos argumentos do Tomismo; ressurge o Nominalismo que subverte alguns fundamentos da filosofia tradicional; consomem-se as energias e perde-se muito tempo com subtilezas  dialéticas e questões de importância secundária; e, assim, vai caindo no esquecimento a doutrina fundamental dos grandes mestres... Aparecem novas tendências científicas a que a escolástica decadente não consegue opor resistência eficaz... progridem bastante as ciências naturais e fazem-se notáveis descobertas científicas que alvoroçam os espíritos e imprimem nova direção à vida da humanidade...


O relativo bem-estar do período áureo da Idade Média e os diversos acontecimentos que acabamos de referir-nos originaram uma geral e acentuada decadência dos costumes, que se agravou consideravelmente com os triunfos do Humanismo iniciado na Itália no século XIV, intensificado com a queda do império bizantino e espalhado rapidamente para todas as nações da Europa. O movimento humanista, considerado em si mesmo, nada tinha de condenável. Como sempre, a Igreja Católica colaborou eficazmente nesse movimento literário e científico. Mas a paixão com que os estudiosos começaram a cultivar as belezas artísticas e a forma literária da antiguidade clássica foi ocasião de reviverem também as antigas ideias e os velhos sistemas do mundo pagão.


Surgiu, assim, dentro em pouco, ao lado da renascença cristã, uma verdadeira renascença pagã ... Em resumo: 'A partir do século XIV, os princípios basilares em que apoiara a Idade Média começam a apresentar uma decadência manifesta: - enfraquece o vigor social da cristandade, pela debilitação da autoridade pontifícia; perde-se a noção da disciplina, pela força dissolvente do cisma ocidental; diminui a influência civilizadora da Igreja, pela negligência do clero; acentua-se o desmoronamento da filosofia escolástica, pela multiciplidade das universidades, onde passam a ensinar professores sem a competência dos do século XIII; impõe-se o domínio das forças políticas, pelo triunfo do Absolutismo; modificam-se as forças da atividade econômica, social e mental, pelo conhecimento da bússola, da pólvora e da imprensa.


É então que, no meio dessa efervescência extraordinária, começa a se esboçar uma vigorosa corrente de opinião que, tentando modificar as concepções artísticas, literárias e científicas e as bases constitutivas da sociedade, pelo abandono das fontes espirituais e cavalheirescas da Idade Média, procura, na antiguidade greco-romana, os princípios orientadores do pensamento e da vida. 'Faz-se o estudo da antiguidade pagã na sua arte e na sua literatura; imitam-se os modelos clássicos, fonte de toda a inspiração; espalha-se a afirmação de que o conhecimento das letras antigas fará a humanidade mais civilizada, mais ditosa e mais feliz; exalta-se o domínio exclusivo da razão. Estavam lançadas as bases de um movimento que em breve se espalha por toda a Europa com o nome de Renascimento. Às tradições nacionais da Idade Média, substitui-se o gosto apaixonado pela antiguidade; a alma pagã, desordenada e insubmissa, procura vencer a noção cristã da vida; a ciência e a arte tentam emancipar-se da autoridade da Igreja; e o engenho humano, conduzido pelo espírito clássico, desperta para novas concepções intelectuais, artísticas e científicas.' (A. G. Matoso, 'Compêndio de História Medieval, Moderna e Contemporânea, Lisboa, 1933). 


Capítulo XV - Esplendores de Fátima


O movimento liberal, que invadiu todos os campos da vida humana, no indivíduo e na família, nos confins de cada pátria e no mundo internacional, foi uma expansão lenta, mas persistente, do orgulho da humanidade; foi um atentado estulto contra a ordem natural e sobrenatural sapientissimamente estabelecida pela Providência de Deus Criador e Senhor de todas as coisas. Quando o liberalismo atingia o auge da loucura, da violência, da anarquia e da libertinagem; quando amadureciam os frutos mais amargos do liberalismo envenenador da humanidade; quando a avalanche libertária ameaçava subverter o mundo, a sua ordem e a sua civilização - nessa hora tremenda, em que não havia esperança de humano remédio para os graves males da humanidade, desce do Céu à Terra, em plena luz do dia, em pleno mês de maio, em plena primavera, ... a Santíssima Virgem, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Portugal ... Tal é o sentido da providencial mensagem de Fátima, tal é a resposta da Mãe de Deus à desvairada ideologia libertária que tanto mal trouxe ao mundo.


O liberalismo tentou desligar os homens de Deus. Fátima é a Mãe de Deus a chamar os homens para a ideia de Deus, para a união com Deus, para a vida em Deus. O liberalismo desviou os homens dos caminhos de Deus, dos caminhos do Céu, da ordem natural e sobrenatural, concebida por Deus desde toda a eternidade, executada no tempo pelo Divino Criador e Governador de todas as coisas, e intimada aos homens pela voz da Razão ou da Revelação. Fátima é a Mãe de Deus a convidar os homens ao arrependimento, a lembrar-lhes a ordem providencial estabelecida por Deus, e a chamar os homens ao cumprimento das leis eternas de Deus. 


O liberalismo foi um atentado contra a Religião, uma escola de indiferentismo, de descrença, de ateísmo. Fátima é uma escola de Fé, é o despertar da vida religiosa, é a conversão de tantas almas esquecidas de Deus, é a praia misteriosa aonde arribam satisfeitos e repousam tranquilamente aqueles que naufragaram no oceano da dúvida e da descrença. O liberalismo foi, para muitos, a negação da Providência de Deus, uma revolta contra o governo de Deus no mundo. Fátima é uma extraordinária manifestação da Providência divina, uma afirmação soleníssima da intervenção de Deus nos acontecimentos da história.


O liberalismo foi a negação do Sobrenatural. Fátima é a afirmação irrefutável do Sobrenatural, é a certeza e a evidência do Sobrenatural , é 'a intimidade com o Sobrenatural'. O liberalismo foi uma ofensiva de ódio e de morte contra o Cristianismo, a Religião Cristã, a vida cristã, a civilização cristã. Fátima é o rejuvenescimento cristão, é a renovação da vida cristã, é o triunfo da civilização cristã, é uma divina apologia do Cristianismo. O liberalismo foi um grito de revolta contra a Igreja Católica, pretendeu ser a morte do Catolicismo. Fátima é o triunfo da obediência à Santa Igreja, é uma vitória da Igreja Católica, é o segredo de inúmeras vitórias do Catolicismo.


O liberalismo foi a insolência, o desrespeito, o desamor, por vezes o ódio ao Sumo Pontífice. Fátima é  a plena obediência, é a profunda veneração, é o amor, é a devoção do Vigário de Cristo na Terra. O liberalismo foi o ataque furioso contra as verdades do Cristianismo, contra o magistério infalível da Santa Igreja; foi um louco semeador de dúvidas, de incertezas, de perplexidades, de negativismos destruidores das belezas da fé católica. Fátima é uma 'aula de verdades', é uma escola de certezas, é uma resposta sem réplica a todas as dúvidas e ataques que alvejaram a Verdade Católica. O liberalismo foi a negação da realidade e até da possibilidade da Revelação Divina. Fátima é, na sua essência e no conjunto dos seus efeitos admiráveis, uma autêntica revelação do Céu.


O liberalismo combateu o milagre e até a sua possibilidade. Fátima é uma 'fonte de milagres', de milagres palpáveis, de milagres incontestáveis. O liberalismo foi um escola de sensualismo, de libertinagem, de prazer imoderado. Fátima é o convite à penitência, é uma 'escola de sacrifícios', é a glória da imolação que satisfaz pelo pecado, converte os transviados e dignifica a humanidade. O liberalismo proclamou os direitos do homem, não lembrando os seus deveres; deu vivas à liberdade, não marcando os seus limites. Deste modo, perverteu a liberdade, destruiu a base dos direitos, instaurou no mundo um regime de escravidão. Fátima, lembrando os deveres, mostra a base de todo o direito e defende a única e verdadeira liberdade possível na terra para o indivíduo e para a sociedade.


... O liberalismo esqueceu o Evangelho e pretendeu ser autor de uma fraternidade universal. Mas a 'fraternidade liberal' deu em arrogâncias egoístas, em triunfos individualistas, em ódios fratricidas, em lutas partidárias, em perseguições sectárias, em antagonismos internacionais. Fátima é a família de Deus, é a solidariedade cristã, é a verdadeira fraternidade dos irmãos em Cristo, invocando em comum o mesmo Pai e a mesma Mãe dos Céus... O liberalismo pretendeu ser considerado o portador da nova luz e do verdadeiro progresso das nações. Arvorou o pendão 'iluminista' contra o 'obscurantismo' da Igreja, a bandeira do 'Progresso' contra o Cristianismo 'retrógrado'... Fátima, ao contrário, é a irradiação intensa do esplendor do Cristianismo, é o trinfo da Doutrina Católica, foi a salvação de Portugal, foi a salvação da Espanha, pode ser,s e quiserem, a salvação de todos os povos.


O liberalismo chamou ciência a todos os erros, e tornou orgulhosa essa ciência tanta vezes balofa e falsa. Fátima proclama a verdade eterna, reconhece a verdadeira ciência, e acolhe carinhosamente os desenganados e abandonados da ciência, aos quais tantas vezes dá a cura e sempre a resignação. O liberalismo foi em muitos fiéis, em alguns sacerdotes, na escola, na família e na sociedade, a derrocada da vida cristã e do espírito católico. Fátima é a Ação Católica, é a santificação do Clero, é a restauração da família e da sociedade, é a renovação da vida cristã em Portugal e no mundo. O liberalismo é a liberdade sem peias, o desprezo de todas as leis, a renúncia aos compromissos voluntários das almas generosas. Fátima é a liberdade racional, é a submissão amorosa às leis divinas e humanas, é um campo de promessas, propósitos e generosas resoluções. 


O liberalismo é o caminho da corrupção, é a ruína da virtude, é a escola de todos os vícios. Fátima é o caminho da perfeição, é o estímulo de virtudes, é a escola dos santos. O liberalismo é o pendor para a matéria, é a queda na lama, é a morte para uma vida de ideal. Fátima é a oração sentida, é ascensão para Deus, é voo das almas nobres para as altas regiões do mais sublime ideal. O liberalismo é o mau conselheiro dos filhos de Deus, que abandonaram, como o pródigo, a casa do Pai Celeste, para irem dissipar as riquezas do seu talento, das suas qualidades naturais, dos seus dons sobrenaturais, nas longínquas regiões da dúvida, da indiferença, da incredulidade, da embriaguez do vício, da tristeza e desventura. Fátima é o céu chamando os pródigos à casa paterna, ao solar do Pai divino, a  esse ambiente encantador onde vive a dignidade humana, brilha o sol da fé, aquece o calor da caridade, seduz o ideal da santidade, reina a felicidade possível no tempo e sorri a esperança da ventura eterna. 


Numa palavra: o liberalismo é a escola de todos os erros, o campo detestável onde germinam todos os vícios e crescem as plantas daninhas cujos frutos envenenados contaminam e matam as flores das virtudes sociais e individuais. Fátima, pelo contrário, é universidade do bem, a escola da verdade, o jardim abençoado onde germinam as virtudes e crescem as plantas sublimes cujos frutos dão vida, perfeição e beleza ao indivíduo, à família e à sociedade.



(Excertos da obra 'Fátima e a Redenção de Portugal', de J.M. Félix, 1939).

quinta-feira, 9 de maio de 2013

COM NOSSA SENHORA...

Não há forma mais simples e direta de chegar ao coração de Jesus do que pelo coração de Maria. Na Ave Maria, pedimos para que Ela interceda por nós em todos os momentos de nossas vidas e, principalmente, ‘na hora da nossa morte'. Na certeza dessa hora tremenda, peçamos, então a ela, Mãe de Deus, que nos socorra particularmente neste momento e nos leve ao encontro do seu Filho:


Com Nossa Senhora ... 

Eu sei que Deus vai me chamar um dia 
que pode se perder no tempo ou ser agora 
mas, qualquer que seja esse tempo, 
quero estar pronto quando eu for embora... 
Mas, mais que tudo, ao fechar meus olhos, 
quero fechá-los com Nossa Senhora... 

Na nova Jerusalém 
Deus não será pai de ninguém 
que desde agora já não tem 
Nossa Senhora como Mãe. 

Eu sei que Deus vai me pedir contas um dia 
e eu sei como será tremenda essa hora: 
quero levar comigo só a caridade 
o mais que tiver eu vou deixar lá fora... 
Mas, mais que tudo, ao reabrir meus olhos, 
quero abri-los com Nossa Senhora... 

Na nova Jerusalém 
Deus não será pai de ninguém 
que desde agora já não tem 
Nossa Senhora como Mãe.

Eu sei que vou estar com Deus um dia 
e a ânsia de viver tal tempo me devora: 
quero brilhar por toda a eternidade 
com luz mais bela que a mais bela aurora... 
Mas, mais que tudo, no Coração de Deus, 
Terei Jesus porque terei Nossa Senhora... 

Na nova Jerusalém 
Deus não será pai de ninguém 
que desde agora já não tem 
Nossa Senhora como Mãe.

(Arcos de Pilares)

96 ANOS DAS MENSAGENS DE FÁTIMA (II)

A CONSAGRAÇÃO DA RÚSSIA E A MISSÃO DE LÚCIA

Por que, nas mensagens, Nossa Senhora pediu expressamente a consagração da Rússia ao seu Imaculado Coração? Porque a conversão da Rússia seria reconhecida mundialmente como fruto direto de uma intervenção divina e um triunfo absoluto do Coração Imaculado de Maria. A partir deste fato, tomaria expressão mundial a devoção ao Imaculado Coração de Maria conjuntamente à devoção ao Imaculado Coração de Jesus (Aliança dos Dois Corações). 'Se atenderem aos meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz. Se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja ...' A situação da Rússia, à época das aparições, era totalmente imprevisível em termos de sua enorme influência geopolítica no cenário mundial no decorrer do século XX, o que caracterizaria a mensagem como praticamente ininteligível, mesmo porque a Rússia ainda não se tornara comunista, uma vez que a revolução marxista-leninista somente iria se irromper brutalmente em novembro daquele ano. Em 13/06/1929, a Irmã Lúcia teve uma visão da Santíssima Trindade e recebeu a seguinte mensagem de Nossa Senhora: 'É chegado o momento em que Deus pede para o Santo Padre (Pio XI, 1922 – 1939) fazer, em união com todos os bispos do mundo, a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração, prometendo salvá-la por este meio...' Mais tarde, por meio duma comunicação íntima, Nosso Senhor disse à Lúcia: queixando-se: 'Não quiseram atender o meu pedido ... Arrepender-se-ão e fá-la-ão, mas será tarde'. Em outro depoimento, carta escrita em 1935, Lúcia afirmava que 'Nosso Senhor estava bastante descontente por não se realizar o seu pedido ...' 

A partir dos pontificados seguintes, várias tentativas foram feitas para se estabelecer a consagração da Rússia e do mundo ao Imaculado Coração de Maria (iniciadas com a consagração feita pelo Papa Pio XII, muito tempo depois, em 07/07/52), mas nenhuma delas pareceu atender plenamente as condições impostas por Nossa Senhora para a sua efetiva realização. Entretanto, a consagração realizada pelo Papa João Paulo II em 25 de março de 1984 foi reconhecida como sendo válida pela vidente, desde meados de 1989, embora como expressão de uma sua opinião particular e não como fruto de uma revelação sobrenatural. A União Soviética deixou de existir formalmente em dezembro de 1991, substituída pela CEI (Comunidade dos Estados Independentes), incluída a Rússia como uma de suas repúblicas associadas. 

Os videntes Jacinta e Francisco Marto morreram ainda na infância, logo após as aparições. Quanto a Lúcia, Nossa Senhora assim se expressou: '... Mas tu ficas cá mais algum tempo. Jesus quer servir-se de ti para Me fazer conhecer e amar.Ele quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração...' A missão dada à Lúcia era cristalina: divulgar uma devoção especial à Mãe de Deus e, particularmente, a consagração ao seu Imaculado Coração. Através de Lúcia, esta devoção deveria assumir amplitude mundial e ser instrumento privilegiado de conversão e salvação de muitas almas: 'Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz'. É fato concreto que a mensagem de Fátima não foi correspondida e os pedidos e súplicas de Nossa Senhora não foram atendidos: os homens continuaram e continuam a pecar em magnitude crescente, numa corrida desenfreada aos paroxismos do inimaginável. A desordem moral vigente (degradação da família, do casamento, da sexualidade e implantação de um regime de vida que prega e justifica todo e qualquer pecado) é uma agressão cotidiana à mensagem de Fátima e combustível que incendeia, a cada dia, a taça da cólera divina. A impiedade e a corrupção moral campeiam em nossa sociedade, formulada essencialmente em princípios naturais e que se especializa cada vez mais em banir totalmente nos homens a ideia de Deus. A crise da Igreja é gravíssima: a permissividade moral, a apostasia, a direção espiritual manietada num sem número de atividades frívolas e materiais, conduz inexoravelmente os sacerdotes (o chamado 'Estado Maior de Cristo', nas palavras de Monsenhor Escrivá de Balaguer, fundador do Opus Dei) a um estado de aviltamento, perplexidade, tibieza e conformismo, em tudo contrário à missão salvífica (Mateus, 16, 15-16): 'Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura. Aquele que crer e for batizado será salvo; o que não crer será condenado'

Nesta devastadora crise moral que assola o mundo contemporâneo, a conclusão é óbvia e terrível: a mensagem de Fátima foi desprezada pelos homens e o pressuposto da emenda de vida e conversão foram olvidados ao extremo. As recentes aparições e manifestações de Nossa Senhora, no Brasil e no mundo, apenas ratificam e amplificam, ao extremo da aflição, os mesmos apelos e chamamentos feitos em Fátima. Por que Nossa Senhora chora? No silêncio e na sua angústia, a Mãe chora contra as agressões de tantos filhos, a Mãe chora para extravasar a sua dor premente e a sua tristeza profunda, a Mãe chora na esperança de que suas lágrimas, ao menos suas lágrimas, comovam corações entorpecidos pela dureza do pecado e por uma vida sem Deus. E chora porque mais e mais almas se perdem porque '... vão muitas almas para o Inferno por não haver quem se sacrifique e peça por elas...'. 

(Da publicação '8 Questões sobre as Aparições de Nossa Senhora em Fátima, do autor do blog).

VISÕES DO INFERNO (III)


DE SANTO ANSELMO (1033 - 1109, doutor da Igreja):

1. Eles (os condenados) jazem nas 'trevas exteriores' ... Pois, lembrai-vos, o fogo do Inferno não emite nenhuma luz. Assim como, ao comando de Deus, o fogo da fornalha babilônica perdeu o seu calor, mas não perdeu a sua luz, contrariamente, sob o comando de Deus, o fogo do Inferno, conquanto retenha a intensidade do seu calor, arde eternamente nas trevas.

2. É uma tempestade que nunca mais acaba, de trevas, de negras chamas e de negra fumaça de enxofre a arder, por entre as quais os corpos estão amontoados uns sobre os outros, sem uma nesga de ar. De todas as pragas com que a terra dos faraós foi flagelada, uma praga só, a das trevas, foi chamada de horrível. Qual o nome, então, que devemos dar às trevas do Inferno, que hão-de durar, não por três dias apenas, mas por toda a eternidade?

3. O horror desta estreita e negra prisão é aumentado pelo seu tremendo cheiro nauseabundo. Toda a imundície do mundo, todos os monturos e escórias do mundo, segundo está escrito, correrão para lá, como para um vasto e fumegante esgoto, quando a terrível conflagração do último dia houver purgado o mundo. Também o enxofre, que arde lá em tão misteriosa quantidade, enche todo o Inferno com seu intolerável fedor. E os corpos dos próprios danados exalam um cheiro tão pestilento que, como diz São Boaventura, só um deles bastaria para infectar todo o mundo.

4. Até o ar deste mundo, esse elemento vital e puro, torna-se fétido e irrespirável quando fica fechado longo tempo. Considerai, então, quanto deve ser irrespirável e fétido o ar do Inferno. Imaginai num cadáver fétido e pútrido, que tenha jazido a decompor-se e a apodrecer na sepultura, uma matéria gosmenta de corrupção líquida. Imaginai um tal cadáver preso das chamas, devorado pelo fogo de enxofre a arder e a emitir densos e horrendos fumos de nauseante e repugnante decomposição. E de seguida, imaginai esse cheiro nauseabundo multiplicado um milhão de vezes, por milhões de fétidas carcaças comprimidas na treva fumarenta, numa enorme fogueira de podridão humana. Imaginai tudo isso, e tereis uma pálida ideia do horror fétido do Inferno.

5. Mas tal fetidez extrema não é, terrível pensamento este, o maior tormento físico a que os danados estão sujeitos. O tormento do fogo é o maior suplício a que o demônio sempre tem sujeitado as suas vítimas. Colocai o vosso dedo, por um só momento, na chama duma vela, e logo sentireis a dor do fogo. Mas o fogo terreno foi criado por Deus para benefício do homem, para manter nele a centelha da vida e para ajudá-lo nas suas necessidades, ao passo que o fogo do Inferno é duma outra natureza e foi criado para atormentar e punir o pecador sem arrependimento.

6. O fogo terrestre, outrossim, consome-se mais ou menos rapidamente, conforme o objeto que ele ataca for mais ou menos combustível, ao ponto da inteligência humana ter sempre procurado inventar soluções para garantir ou frustrar a sua duração. Mas o sulfuroso breu que arde no Inferno é uma substância que foi especialmente criada para arder contínua e perpetuamente com indizível fúria. Além disso, o fogo terrestre destrói e consome-se ao mesmo tempo que arde, de maneira que quanto mais intenso ele for, mais curta será a sua duração; enquanto que o fogo do Inferno tem a propriedade de preservar aquilo que ele queima, e embora ataque com incrível violência, permanece para sempre.

7. E ainda, o nosso fogo terreno, não importando que intensidade ou tamanho possa ter, é sempre duma extensão limitada; mas o mar de fogo do Inferno é ilimitado, sem praias nem fundo. Está documentado que o próprio demônio, ao ser-lhe feita a pergunta por um soldado, foi obrigado a confessar que, se uma montanha inteira fosse jogada dentro do oceano ardente do Inferno, seria queimada num instante como um pedaço de cera. E esse terrível fogo não aflige os condenados somente por fora, pois cada alma perdida transforma-se num inferno dentro de si mesma, com o fogo sem limites enraivecendo-se na sua essência. Oh, quão terrível é a sorte desses desgraçados seres! O sangue ferve e referve nas veias; o cérebro fica fervendo no crânio; o coração, no peito flamejando e ardendo; os intestinos, uma massa vermelha e quente de polpa a arder; os olhos, tão sensíveis, flamejando como bolas fundidas.

8. Ainda assim, quanto vos falei da força, da qualidade e da imensidão desse fogo, é como se fosse nada, quando comparado com a sua intensidade, uma intensidade que é justamente tida como sendo o instrumento escolhido pela Justiça Divina para punição da alma, assim como igualmente do corpo. Trata-se dum fogo que procede diretamente da Ira de Deus, agindo assim não pela sua própria constituição, mas como instrumento do castigo divino. Assim como a água do Batismo limpa espiritualmente tanto a alma como o corpo, assim o fogo do Inferno tortura simultaneamente o espírito e a carne.

9. Todos as faculdades da alma são torturadas; e todos os sentidos do corpo outro tanto: os olhos com impenetráveis trevas; o nariz com fétidos nauseantes; os ouvidos com berros, uivos e execrações; o paladar com matéria sórdida, corrupção leprosa, sujeiras sufocantes inomináveis; o tato com aguilhões e chuços em brasa e cruéis línguas de chamas. E através dos vários tormentos dos sentidos, a alma imortal é torturada eternamente, na sua própria essência, no meio de léguas e léguas de ardentes fogos acesos nos abismos pela Majestade de Deus infinitamente ofendida, e soprados numa perene e sempre violenta fúria pela Ira da Onipotência Divina.

10. Considerai, finalmente, que o tormento dessa prisão infernal é acrescido pela companhia nefasta dos próprios condenados. A má companhia, sobre a terra, é tão prejudicial às pessoas, que até os próprios animais, por instinto, fogem da companhia do que lhes seja mortal ou nocivo. No Inferno, porém, todas as leis estão trocadas, pois lá não há nenhum pensamento de família, de pátria, de laços, de amizade. Os condenados odeiam e gritam uns aos outros a sua raiva e tortura, que são intensificadas pela sua presença, enfurecendo-se mutuamente.

11. Todo o senso de humanidade é esquecido ou negado. Os gritos dos réprobos em desespero enchem os mais recuados cantos do vastíssimo abismo.As mentes e as bocas dos condenados estão cheias de blasfêmias contra Deus, de ódio pelos seus companheiros de suplício, e de maldições contra as almas que foram suas cúmplices nos pecados. Nos tempos antigos, era costume punir o parricida, o homem que erguera a sua mão assassina contra o pai, arremessando-o nas profundezas do mar dentro dum saco, no qual também eram colocados um galo, um burro e uma serpente.

12. A intenção dos inventores dessa lei, que parece muito cruel nos nossos tempos, era punir tal gênero de homicídio também pela presença e ação de animais violentos e venenosos. Mas o que é a violência ou fúria desses animais estúpidos, comparada com a fúria da execração que rompe dos lábios tostados e das gargantas inflamadas dos danados no Inferno, quando eles contemplam nos seus companheiros de desgraça aqueles mesmos que os levaram ou incitaram ao pecado, aqueles cujas palavras criaram as primeiras sementes do mal nos seus espíritos, aqueles cujas atitudes insensatas conduziram-nos ao delito, aqueles cujos olhos os tentaram e desviaram do caminho da virtude? Só podem voltar-se contra esses seus cúmplices do pecado, insultando-os e amaldiçoando-os. Não terão, contudo, nenhum socorro nem ajuda, visto que já é demasiado tarde para o arrependimento (que eles mesmos abominam).

13. Finalmente, considerai o terrível tormento daquelas almas condenadas, as que tentaram e as que foram tentadas, agora todas juntas e, ainda por cima, na companhia dos demônios. Esses demônios afligirão os réprobos de duas maneiras: com as suas horríveis presenças e com as suas odiosas acusações. Não podemos ter uma ideia de quão horríveis são esses demônios. Uma vez, Santa Catarina de Sena viu um demônio, tendo escrito que preferia caminhar por cima de carvões em brasa, até ao fim da sua vida, a ter que olhar de novo, por um só instante, para tão horroroso monstro.

14. Tais demônios, que originariamente foram belíssimos anjos, tornaram-se tão feios e repugnantes quanto antes tinham de formosos e atraentes. Eles escarnecem e riem com desprezo das almas perdidas que arrastaram para a ruína. E é pelos diabos que são feitas, no Inferno, as vozes de acusação dos condenados: 'Por que pecaste? Por que deste ouvidos às tentações dos amigos? Por que abandonaste as tuas práticas piedosas e as tuas boas ações? Por que não evitaste as ocasiões de pecado? Por que não deixaste aquele mau companheiro? Por que não desististe daquele mau hábito, daquele hábito impuro? Por que não ouviste os conselhos do teu confessor? Por que, mesmo depois de haveres tombado a primeira, ou a segunda, ou a terceira, ou a quarta, ou a centésima vez, não te arrependeste dos teus maus passos e não voltaste para Deus, que esperava apenas pelo teu arrependimento para te absolver dos teus pecados? Agora, o tempo para o arrependimento já passou. O tempo no mundo ainda existe, mas tempo na eternidade não existe mais.'

15. 'Tempo houve para pecar às escondidas, para satisfazer a preguiça e o orgulho, para cobiçar o ilícito, para ceder às tentações e aos maus instintos, para viver como as bestas do campo, ou antes, pior do que as bestas, porque elas apenas são irracionais, não possuindo uma razão que as guie. Tempo houve no mundo, mas tempo no Inferno não existe mais. Deus falou-te por intermédio de tantas vozes, mas não quiseste ouvi-las. Não quiseste esmagar esse orgulho e esse ódio do teu coração, não quiseste devolver aqueles bens mal adquiridos, não quiseste obedecer aos preceitos da tua Santa Igreja, nem cumprir os teus deveres religiosos, não quiseste abandonar aqueles péssimos companheiros, não quiseste evitar aquelas perigosas tentações.' 

Tal é a linguagem desses atormentadores diabólicos, com palavras de sarcasmo e de reprovação, de ódio e aversão. De aversão, também sim, pois os próprios demônios, quando pecaram como anjos, fizeram-no por meio dum pecado incompatível com a natureza de tão angélicas criaturas: o da rebelião do seu intelecto (pela infidelidade contra Deus). Por tudo isso, estes mesmos demônios infernais só podem desprezar e odiar os réprobos, revoltados com o nojo e a aversão de terem de contemplar semelhantes pecados também nos homens ímpios, que desse modo ultrajaram a Deus e profanaram o templo do Espírito Santo, aviltando-se e degradando-se a si mesmos.

terça-feira, 7 de maio de 2013

DO LIVRO DO GÊNESIS

SERMÃO LXI:  Sobre a Obra dos Seis Dias

(São Hugo de São Vítor: 1096 - 1141)

No primeiro dia fez Deus a luz primordial, no segundo o firmamento, no terceiro congregou as águas inferiores em um único lugar, no quarto fez os luminares, no quinto as aves e os peixes, no sexto os animais. Criado, pois, o mundo, ordenado e ornamentado, e preparado primeiro tudo o que fosse necessário, cômodo e agradável ao corpo do homem, naquele mesmo sexto dia fez também Deus o homem, constituindo-o senhor de tudo e possuidor de todas as coisas. Deste modo, embora tenha sido criado posteriormente no tempo, por causa de sua dignidade, o homem é anterior e superior a todas as demais criaturas. Deus fez, efetivamente, o mundo sensível por causa do homem, para que o mundo estivesse submetido ao seu corpo, o corpo ao espírito, e o espírito ao Criador.

Preparou também o Criador dois bens para o homem, visto ele ter sido feito de uma dupla natureza. Um destes bens era visível, o outro invisível; um era corporal, o outro espiritual; um transitório e outro eterno, ambos plenos e perfeitos em seus gêneros. O primeiro destes bens foi feito para o corpo, o segundo para o espírito, para que pelo primeiro os sentidos do corpo fossem favorecidos à alegria e pelo segundo os sentidos da alma se saciassem pela felicidade. Para o conforto do corpo e para a alegria do espírito, os bens visíveis haviam sido feitos para o corpo e os invisíveis para o espírito. O primeiro destes bens foi concedido por Deus para que fosse gratuitamente possuído; o segundo foi prometido para que fosse buscado pelo mérito. O bem que era visível foi concedido gratuitamente, para que, pelo dom gratuito, ficasse demonstrada a excelência da promessa; e o que era invisível foi proposto para que fosse buscado pelo mérito, para que pudesse também ser demonstrada a fidelidade de quem o prometia. Depois que o homem, porém, obscurecido pelas trevas do pecado, perdeu o olho da contemplação, a totalidade das coisas visíveis não somente continuou a lhe oferecer o amparo para a sustentação do corpo, como também passou a lhe prestar o auxílio para a apreensão do conhecimento divino. De fato, está escrito:

'As coisas invisíveis de Deus, depois da criação do mundo, tornaram-se visíveis ao entendimento pelas coisas que foram feitas' (Rom. 1, 20).

Três são as coisas invisíveis de Deus: a potência, a sabedoria e a benignidade, e destas três procede tudo o que foi feito. A potência cria, a sabedoria governa, a benignidade conserva. Estas três coisas, porém, assim como em Deus são inefavelmente apenas uma única, assim também não podem ser separadas nas operações exteriores de Deus. Nelas a potência divina cria pela benignidade com sabedoria, a sabedoria governa pela potência benignamente e a benignidade conserva pela sabedoria com poder. A imensidade das criaturas manifesta a potência divina, a beleza a sua sabedoria, e a utilidade a sua benignidade. A criação das coisas visíveis é um grande dom de Deus e um grande bem para homem pois por elas o corpo é sustentado e a alma, iluminada pela contemplação das mesmas, é admiravelmente sublimada ao conhecimento, à admiração e ao amor de seu Criador.

Efetivamente, o Deus escondido chega à notícia do homem de quatro maneiras, das quais duas são interiores e duas são exteriores. Interiormente, pela razão e pelo desejo; exteriormente, pela criatura e pela doutrina. A razão e a criatura pertencem à natureza, o desejo e a doutrina pertencem à graça.

Ditas estas coisas, e tendo mencionado brevemente a obra dos seis dias, vejamos que ensinamentos morais se encontram escondidos nas mesmas e investiguemos com diligência o que nos poderá ser de proveito para a nossa edificação.

'No princípio criou Deus o céu e a terra' (Gen. 1,1).

O céu é o espírito, a terra é o corpo. Pelo céu, de fato, pode-se convenientemente entender o espírito do homem, formado à imagem e semelhança de Deus, criado para o conhecimento, para o amor e para a busca e a posse dos bens celestes. Pela terra entendemos o corpo do homem, que é de terra, e à terra muito brevemente haverá de retornar, conforme se encontra escrito:

'Tu és terra, e à terra hás de voltar' (Gen. 3,19).

Céu, que na língua latina se diz coelum, vem de celare, que significa ocultar.O céu,assim, é o espírito, porque ao seu bel prazer nos oculta as coisas que há nele, do mesmo modo como também está escrito:

'Qual dos homens conhece as coisas que são do homem, senão o espírito do homem, que está nele?' (1 Cor 2,11).

A terra, por sua vez, é o corpo, porque cotidianamente esmagado, - teritum na língua latina -, até que à terra retorne. O céu, também, é o espírito e a terra é o corpo porque assim como o céu é mais sublime e mais sólido do que a terra, assim também o espírito é mais excelente do que o corpo.

O mundo, em seu caos primordial, é o homem em sua iniquidade. Assim como, de fato, no mundo ainda envolvido no caos primordial não havia nem luz nem aparência de ordem futura, assim também para o homem submetido à iniquidade nem a luz brilha pelo conhecimento da verdade, nem a ordem se faz presente pela disposição da equidade.

Em meio ao caos Deus cria, no primeiro dia da vida espiritual, a luz primordial, quando, pelos raios de uma luz interior, ilumina o pecador imerso na confusão de seus diversos pecados, para que conheça não só o que ele é como também e o que deve ser, e se disponha a si mesmo segundo a norma do reto viver. A luz primordial significa, portanto, o conhecimento do pecado.

O firmamento entre as águas superiores e inferiores é o discernimento entre os vícios e as virtudes. As águas inferiores, de fato, designam os vícios, e as águas superiores as virtudes. Coloca-se um firmamento entre ambas as águas quando pela virtude do discernimento distingüem-se as virtudes dos vícios e os vícios das virtudes.

Sucede-se depois a congregação das águas que estavam sob o firmamento. A congregação das águas significa o domínio dos vícios. Os vícios, de fato, não podem nesta vida ser inteiramente evacuados ou eliminados dos recônditos da natureza humana por causa de seus aguilhões que residem naturalmente em nós; devem, portanto, o quanto for possível, mediante o auxílio da graça divina, ser dominados, diminuídos e reduzidos a um único lugar, para que não se disseminem pelo todo, tudo ocupem e corrompam, impedindo nossos sentidos da busca da verdade, nossos desejos do exercício da virtude e nossos membros da exibição da boa obra. Assim como, de fato, a terra ocupada pelas águas não pode germinar, assim nós, imersos nos vícios, não entenderemos o sentido da busca da verdade, nem desejaremos o exercício das virtudes ou poderemos usar de nossos próprios membros para a exibição das boas obras. As águas, congregadas em um só lugar, fazem com que o ar se torne claro e aquecido e com que a terra germine porque, dominados os vícios, a nossa alma brilha pelo conhecimento, aquece-se pelo amor, e a carne frutifica pela boa ação.

A criação dos luminares significa, removida a nebulosa cegueira da ignorância, a perfeita visão da verdade. O Sol pode significar o conhecimento das coisas que pertencem à Santa Igreja; as estrelas o conhecimento das coisas que pertencem a qualquer criatura ou a qualquer alma fiel.

Os peixes, que vivem no mundo inferior, isto é, nas águas, significam as solicitudes das boas ações, exercidas entre as ondas escorregadias da vida. As aves, que voam nas alturas, significam a contemplação dos bens celestes, pela qual nos elevamos das coisas inferiores às superiores.

Os animais terrestres significam os sentidos de nosso corpo, pois os animais tem os sentidos em comum com os homens. Ademais, quando nossos sentidos corporais, antes corrompidos pela vaidade, são restaurados pela graça divina, eles se tornam em nós como os animais feitos por Deus no sexto dia da obra da criação.

Realizadas que foram todas estas coisas, por último é criado o homem à imagem e semelhança de Deus pois, ordenadas desta maneira em nós todas as coisas pelas virtudes e pelas boas obras, o pecador, que antes era deforme e dessemelhante pela culpa, torna-se conforme e consemelhante a Deus pela justiça. O homem, assim criado, é finalmente transportado para o paraíso das delícias, pois o pecador regenerado no mundo pela graça é sublimado ao céu pela glória.

Eis, irmãos caríssimos, um outro mundo. Tanto este mundo maior como o mundo sensível foram criados antes de todos os dias. Nos três primeiros ambos foram ordenados e nos três seguintes ambos foram ornamentados.

Vejamos, pois, caríssimos, se assim como possuímos a existência pela criação, também possuímos a ordenação pela graça, e o ornamento pela excelência da vida. Vejamos se existe em nós a luz primordial pelo conhecimento dos nossos pecados, se existe o firmamento pelo discernimento dos vícios e das virtudes, se as águas se congregam pelo domínio dos vícios, se as árvores e a erva verde germinam pelo exercício das virtudes. Vejamos também se há em nós luminares pelo conhecimento da verdade, se há peixes pela exibição das boas obras, aves pelo voo da contemplação, animais por uma sensualidade já imaculada. Vejamos se em nós a dignidade humana foi restaurada pela justiça, aquela mesma que havia sido foi deformada pela culpa, e se, finalmente, podemos constatar que tudo quanto fizemos 'é imensamente bom' (Gen. 1,31) para que possamos descansar com Deus e em Deus pela boa consciência.

Se for tudo assim, também pela glória poderemos nelas descansar, para que se cumpra em nós o que se encontra em Isaías, onde se diz: 'De sábado em sábado, toda a carne virá prostrar-se diante de mim e me adorará, diz o Senhor' (Is. 66,23). E que, para tanto, digne-se vir em nosso auxílio Jesus Cristo, Senhor Nosso, que é Deus, bendito por todos os séculos. Amém.