terça-feira, 6 de maio de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXII)

 

100. Depois de Jesus Cristo, que é o Rei dos humildes, que belo exemplo de humildade temos na Santíssima Virgem Maria, que é a sua Rainha! Nenhuma criatura a superou em mérito, nem a ultrapassou em humildade. Pela sua humildade mereceu ser a Mãe de Deus, e só pela humildade conservou a dignidade e a honra da sublime Maternidade.

Imaginemos Maria no seu quarto em Nazaré, quando lhe foi anunciado pelo Arcanjo Gabriel que era chegado o momento de o Verbo Eterno se encarnar no seu seio, pela ação do Espírito Santo. Ela não mostra nenhum sinal de orgulho por ter sido abençoada entre as mulheres e escolhida para uma honra tão alta, mas, pelo contrário, ficou angustiada e 'perturbou-se com a sua palavra' [Lc 1,29], sem poder entender por que foi escolhida para uma honra tão grande. E o que é que ela exclama? Eu -  a Mãe de Deus! Eu, uma vil criatura, tornar-me a Mãe de Deus! Não sou senão a sua serva, e seria demasiada honra para mim ser sequer a sua serva. 'Eis aqui a serva do Senhor' [Lc 1,38]. Assim Maria humilhou-se tanto quanto estava ao seu alcance e continuou nesta profunda humildade durante toda a sua vida, comportando-se em todas as coisas como serva do Senhor, sem nunca atribuir a si própria a menor glória por ser sua Mãe. Que belo exemplo para nós! 

Por isso, se temos devoção a Nossa Senhora, devemos procurar imitá-la na sua humildade; e em todas as orações, comunhões e mortificações que fizermos em sua honra, peçamos-lhe sempre que nos obtenha, por sua intercessão, a graça da santa humildade. Não há nenhuma graça que a Virgem Santíssima peça tão prontamente a Jesus para os seus devotos, e que Jesus conceda tão prontamente a Maria, como a graça da humildade, pois tanto Jesus como Maria têm esta virtude em singular afeto. Recomendemo-nos à sua proteção e depositemos nela toda a nossa confiança, suplicando-lhe, pelo amor que ela própria tem à humildade, que nos conceda também a nós sermos verdadeiramente humildes de coração; e não duvidemos de que as nossas preces sinceras serão ouvidas e os nossos desejos atendidos.

Ó minha alma, é pela humildade que chegaremos ao Paraíso. E o que é que faremos no Paraíso? Lá, a prática de todas as outras virtudes cessa e só a caridade e a humildade permanecem. Veremos Deus e, ao vê-lo, saberemos que Ele é o Bem infinito; e este conhecimento perfeito trará consigo um amor mais perfeito, e quanto mais amarmos Deus, melhor o conheceremos, e quanto melhor o conhecermos, mais humildes seremos, praticando a humildade por toda a eternidade, como os antigos, vistos no Apocalipse pelo Apóstolo São João: 'Que se prostraram sobre os seus rostos e adoraram a Deus, dizendo: Graças Te damos, Senhor Deus todo-poderoso, que és, que eras e que hás-de vir' [Ap 11,17]. 

Comecemos a praticar na terra as virtudes que esperamos praticar para todo o sempre, através de todos os séculos, no Céu: 'Nosso Senhor Jesus Cristo humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Por esta razão, também Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todos os nomes' [Fp 2,8-9]. 'Livrai-me, Senhor, do homem mau, resgatai-me do homem injusto' [Sl 139,2]. Quem é esse homem mau e injusto de quem peço para ser libertado? É o meu eu interior, que é todo vício, corrupção e orgulho, isto é o mesmo que eu dizer: 'Livrai-me, Senhor, de mim mesmo, isto é, dai-me a graça de me emendar e de me reformar, a fim de que eu não seja mais a criatura terrena, mundana e orgulhosa que fui até agora, dominada pela paixão, mas que eu seja renovado e conformado ao espírito do meu humilde Mestre e Senhor Jesus Cristo' - 'Livrai-me, Senhor, do homem mau; resgatai-me do homem injusto'.

Oração

Ó Deus, que resistis aos soberbos e dais vossa graça aos humildes, concedei-nos a graça da verdadeira humildade, de que o vosso Filho Unigênito deu exemplo aos fiéis, para que nunca, ensoberbecidos pelo orgulho, incorramos na vossa cólera, mas para que, submissos à vossa vontade, recebamos os dons da vossa graça.

Exame Prático sobre a Virtude da Humildade

Agora que já conheceis a idéia da humildade, da sua necessidade, da sua excelência e dos seus motivos, estou persuadido de que se despertou no vosso coração um desejo ardente de a praticar. Mas, porque, por um lado, não o podeis fazer sem a ajuda especial de Deus e, por outro, Deus nada fará em vós sem a cooperação da vossa vontade, segue-se, portanto, que, depois de terdes invocado o auxílio divino, não duvidando senão de que o recebereis, deveis aplicar-vos a adotar os meios que mais vos ajudem a alcançar essa virtude. E porque todos os mestres de vida espiritual concordam nisto, que é mais eficaz fazer todos os dias um exame particular sobre a virtude que queremos adquirir, vou expor para vosso esclarecimento um exame prático sobre a humildade cristã; e, para que façais bom uso dele, dou-vos três conselhos.

O primeiro é que, ao fazerdes o vosso exame uma vez por dia, pelo menos, para assinalardes as faltas que porventura tenhais cometido contra a humildade, não escolhais mais do que uma ou duas das mais flagrantes que tenhais o hábito de cometer, e assim, depois de vos terdes habituado a emendá-las, passareis pouco a pouco às outras, até que o orgulho seja gradualmente erradicado e a humildade brote no vosso coração.

É assim também que devemos meditar. Certas resoluções gerais, tais como dominar o orgulho e praticar a humildade, nunca servem para nada; pelo contrário, geram frequentemente confusão e criam conflitos na mente: por isso é necessário entrar em pormenores sobre as coisas em que durante o dia fomos mais sensíveis às nossas imperfeições e, mesmo assim, não devemos formar uma intenção geral de não voltar a cair nelas durante toda a nossa vida, mas basta que tomemos a firme resolução de não voltar a cair nelas durante esse dia. Foi assim que o santo rei Davi tomou resoluções e as renovou, não tentando mantê-las de ano para ano, nem de mês para mês, mas de dia para dia: 'Pagarei os meus votos a cada dia' [SL 60,9]. E, para as manter, nunca é demais insistir na necessidade de impor a si mesmo uma penitência e de a cumprir fielmente. Por exemplo, quantas vezes eu não tiver cumprido as minhas resoluções de hoje, tantas vezes beijarei a chaga do lado de Cristo e recitarei devotamente tantas Ave-Marias...

A segunda é tomar estas faltas que constituem o objeto do nosso exame e acusarmo-nos delas nas nossas confissões, para nos envergonharmos ainda mais da nossa soberba diante de Deus, e também porque o sacramento da Penitência confere uma graça singular que nos ajuda a emendar as faltas de que nos acusamos, como ensina São Tomás [P. 3. qu. lxxxiv, art. 8 ad 1]. E embora nenhum desses defeitos possa absolutamente ser chamado de pecado, e sejam simplesmente imperfeições, não se segue que não devamos prestar atenção a eles, porque ou servem para nos manter no vício ou são um impedimento para a virtude.

Quando se trata de humildade, que é a virtude mais necessária para a nossa salvação eterna, é sempre melhor e mais seguro tê-la em excesso do que tê-la em falta. E é certo que aquele que se contenta em ter apenas a quantidade que lhe é absolutamente essencial nunca adquirirá realmente essa virtude. 'Se não vos tornardes como criancinhas, não podereis entrar no reino dos céus', disse o Salvador do mundo, e não temos outro meio de nos tornarmos como criancinhas senão eliminar o nosso amor-próprio pelo exercício vigoroso da humildade.

A terceira é que deves ler frequentemente este exame prático, para refletires seriamente sobre ti mesmo e veres como estás em relação à humildade, para que não sejas daqueles que se julgam humildes e não o são realmente. São Tomás diz que é próprio da humildade examinar as faltas cometidas contra qualquer virtude que seja. Quanto mais, portanto, deve examinar as faltas que se cometem contra essa mesma humildade!

Você encontrará muitos pontos pequenos nesse exame, mas se você se achar defeituoso em muitos deles, não deve considerá-los do ponto de vista de seu tamanho, mas de seu número, e quanto mais você descobrir que eles são habituais em você, mais eles devem enchê-lo de medo e apreensão. E na medida em que descobrir que não é humilde nesse ou naquele ponto, poderá inferir que é orgulhoso; e se esse exame sobre humildade apenas o ensinar a conhecer seu próprio orgulho, não será um ganho pequeno, porque começamos a ser humildes quando abrimos os olhos e reconhecemos que somos orgulhosos.

Muitas coisas consideradas em si mesmas são apenas um conselho; mas, em relação a tais e tais circunstâncias, elas podem, no entanto, ser obrigatórias, e são necessárias também para que não transgridamos o preceito, de acordo com o ensinamento de São Tomás [2a 2æ, qu. lxxii, art. 3; et qu. clxxxvi, art. 2] Em conclusão, você não deve fazer esse exame com escrúpulos ou muita ansiedade, como se toda imperfeição fosse um pecado e como se você tivesse a presunção de querer ser humilde de uma só vez, nem deve rejeitar com desprezo tudo o que não lhe parece positivamente de preceito.

Você deve ser solícito em seu desejo e vontade de adquirir humildade e deve ter diligência e cuidado para não omitir os meios que o levariam a obtê-la, e então, recomendando-se a Deus, continue a fazer esse exame de acordo com a inspiração de Deus e os ditames de sua própria consciência. Como a humildade pode ser considerada sob três aspectos diferentes, em relação a Deus, ao próximo e a nós mesmos, e praticada de duas maneiras, isto é, interior e exteriormente, segue-se, portanto, que podemos pecar dessas várias maneiras, assim como pecamos contra as leis de qualquer outra virtude, seja por nossos pensamentos, palavras, atos ou omissões. 

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)