domingo, 27 de janeiro de 2013

JESUS NA SINAGOGA DE NAZARÉ


A dimensão messiânica de Jesus é revelada no Evangelho deste terceiro domingo do Tempo Comum aos moradores da aldeia de Nazaré, onde Jesus vivera até a juventude, como o filho do carpinteiro.  Quase ao término do segundo ano de sua pregação pública e após o batismo por João, Jesus retorna às suas origens para proclamar aos seus conterrâneos que Ele é o Messias prometido das Escrituras. E aí vai experimentar, se não pela primeira vez, talvez a rejeição mais dolorosa, pois oriunda daqueles que lhe eram mais próximos, mais conhecidos, que com Ele conviveram cotidianamente por quase trinta anos. 

E naquele sábado, Jesus encontrava-se novamente na sinagoga de Nazaré. O filho do carpinteiro estava de volta à sua pequena cidade natal, amparado pelo conhecimento generalizado da enorme fama de suas pregações e dos seus milagres por toda a Galileia, como nos relata São Lucas: 'sua fama espalhou-se por toda a redondeza' (Lc, 4,14). É possível imaginar a enorme expectativa daquele povo, que deve ter lotado a sinagoga de Nazaré, para ouvir o filho que portava agora tão grande fama e admiração. Depois das orações preliminares e da leitura de uma passagem da Torá, Jesus foi convidado a comentar um trecho de um dos profetas e Lhe foi entregue o rolo de Isaías. 

Jesus abriu o livro profético nas passagens relativas às previsões messiânicas (Is 61, 1ss). Na sua oratória, embora não se tenha transcrição alguma do conteúdo de sua fala, Jesus certamente explicou com suma riqueza de doutrina e de detalhes o texto de Isaías, conforme o testemunho do evangelista:  'E todos davam testemunho em seu favor, e admiravam-se das palavras de graça que saíam da sua boca' (Lc, 4,22). Á margem o tesouro da doutrina exposta, aquele evento proclamava a chegada do Ungido, do Messias revelado pelos tempos nas Sagradas Escrituras. E a portentosa revelação é explicitada nas palavras finais do Mestre: 'Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabaste de ouvir' (Lc, 4, 21).

Mas os seus, ainda que admirados de sua pregação e oratória, não vão entendê-Lo. Eles O têm apenas no espectro da perplexidade e de certa admiração: o mero artesão que conheciam tinha adquirido um elevado grau de sabedoria e conhecimento das Escrituras. Mas não o reconhecem e não vão segui-Lo. Naquele dia histórico em Nazaré, os seus não foram capazes de apreender a admirável revelação messiânica de Jesus e  seu chamado de Filho de Deus. Da certeza de que um profeta não é bem recebido em sua terra (Lc 4, 24), Jesus não foi acolhido pelos seus e, por isso, 'não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles' (Mt 13, 58). Para os homens de Nazaré daquele tempo, Jesus foi apenas uma sombra de admiração, tolhida pela incredulidade e covardia de tantos que preferiram, por puro preconceito, a 'se encher de ira' e perder o convite à plena conversão: 'Não fiqueis tristes, porque a alegria do Senhor será a vossa força' (Ne, 8, 10). 

sábado, 26 de janeiro de 2013

A BÍBLIA EXPLICADA (III)

'... PADECEU SOB PÔNCIO PILATOS...' 

Ecce Homo de Antonio Ciseri (1821 - 1891)

A passagem do Credo, símbolo da fé cristã, faz referência estrita ao homem que mandou executar Nosso Senhor Jesus Cristo, não para tirá-lo do limbo da história, mas para enfatizar que o cristianismo é realmente uma religião histórica e não apenas uma filosofia de cunho moral, nascida de um mistério de redenção ocorrido num lugar determinado do mundo - a Palestina e num tempo concreto da história - quando Pôncio Pilatos era o prefeito ('praefectus') da Judeia.

O que se sabe com certeza é que no ano 26 de nossa era, Pôncio Pilatos sucedeu Valério Grato no governo da região da Judeia, Samaria e Idumeia, então províncias romanas, já desposado de Cláudia Prócula, que tinha parentesco com o imperador Tibério (42 a.C. - 37 d.C.). Sua residência oficial era em Cesareia (cidade à beira-mar construída por Herodes, o Grande) mas, em eventos especiais, deslocava-se para o Pretório em Jerusalém com todo o seu regimento. 

Dos poucos registros históricos disponíveis de sua administração, Flávio Josefo relata violentos entreveros com os judeus, particularmente quando Pilatos tentou introduzir em Jerusalém os estandartes de suas tropas com as insígnias de Tibério e quando quis utilizar os recursos do templo para construir um aqueduto de Belém até Jerusalém. Foi destituído do cargo pelo seu superior imediato, Lúcio Vitélio, governador da Síria, após violentos protestos devido ao massacre ocorrido no Monte Garazim, ao tentar conter uma rebelião dos samaritanos, no ano 35 da nossa era. Seu destino final é incerto, tendo sido feitas diversas conjecturas que vão desde o suicídio no exílio na França até uma eventual conversão ao cristianismo junto com a sua esposa Prócula.

CRÍTICAS ÀS OBJEÇÕES À DOUTRINA DO INFERNO


EXCERTO DA OBRA: 'O PROBLEMA DO SOFRIMENTO' DE C.S LEWIS


Num capítulo anterior, foi admitido que somente a dor que pode despertar o homem perverso para uma noção de que nem tudo está bem pode, da mesma forma, levá-lo a uma rebelião final e sem arrependimento. Foi admitido sempre que o homem possui livre arbítrio e que todas as concessões feitas a ele são portanto de dois gumes. A partir dessas premissas, segue-se diretamente que a obra divina de remir o mundo não pode ter certeza de êxito com respeito a cada alma individual. Alguns não serão remidos. Não existe doutrina no cristianismo que eu gostasse mais de remover do que esta, se tivesse esse poder. Mas ela tem o pleno apoio das Escrituras e, especialmente, das próprias palavras de Nosso Senhor; foi sempre mantida pela cristandade; e está fundamentada na razão. 

Quando jogamos deve haver a possibilidade de perder o jogo. Se a felicidade de uma criatura se acha na auto-rendição, ninguém mais pode realizar essa rendição além dela mesma (embora muitos possam ajudá-la nesse sentido) e ela pode recusar. Eu estaria disposto a pagar qualquer preço para poder dizer sinceramente: 'Todos serão salvos'. A minha razão, porém, replica: 'Com ou sem o consentimento deles?' Se disser: 'sem seu consentimento', percebo imediatamente uma contradição; como pode o ato supremo e voluntário da auto-rendição ser involuntário? Se disser 'com seu consentimento', minha razão replica, 'Como, se não quiserem ceder?'

Os sermões dominicais sobre o inferno, como fazem todos eles, são dirigidos à consciência e à vontade e não à nossa curiosidade intelectual. Quando eles nos despertam para a ação, convencendo-nos de uma terrível possibilidade, terão provavelmente feito tudo o que pretendiam fazer; e se o mundo inteiro fosse composto de cristãos convictos, seria desnecessário dizer uma palavra sequer a mais sobre o assunto. Como as coisas se acham, porém, esta doutrina é uma das bases principais para se atacar o cristianismo como sendo bárbaro, e impugnar a bondade de Deus. Dizem-nos que se trata de uma doutrina detestável - e, na verdade, também a detesto do fundo do coração - e somos lembrados das tragédias nas vidas humanas que têm origem nessa crença. Quanto às demais tragédias resultantes do fato de não crermos na mesma, pouco se fala nelas. Por essas razões, e só essas, torna-se necessário discutir o assunto.

O problema não é simplesmente o de um Deus que destina algumas de suas criaturas à ruína final. Seria esse o problema se fôssemos maometanos. O cristianismo, leal como sempre à complexidade do que é real, nos apresenta algo mais intrincado e mais ambíguo - um Deus tão cheio de misericórdia que se torna homem e morre torturado para impedir a ruína final de suas criaturas e que, porém, onde falha esse remédio heroico, parece pouco disposto, ou até mesmo incapaz, de sustar a ruína por um ato de simples poder. Eu afirmei loquazmente pouco atrás que pagaria 'qualquer preço' para remover esta doutrina. Mas menti. Eu não poderia pagar um milésimo do preço que Deus já pagou para remover o fato. Este é um problema real: tanta misericórdia e, ainda assim, existe o inferno.

Não vou fazer qualquer tentativa no sentido de demonstrar que a doutrina é tolerável. Não nos enganemos; ela não é tolerável. Penso, entretanto, que pode ser demonstrado que ela é moral, mediante uma crítica das objeções geralmente feitas, ou sentidas, em relação à mesma. Primeiro, existe uma objeção, em muitas mentes, quanto à ideia de castigo retributivo como tal. Isto foi tratado parcialmente em outro capítulo. Dissemos então que todo castigo se tornaria injusto se as idéias de demérito e retribuição fossem removidas dele; e um núcleo de retidão fosse descoberto no próprio íntimo da paixão vingadora, na exigência de que o perverso não permaneça perfeitamente satisfeito com a sua maldade, que ela venha a parecer-lhe o que corretamente parece a outros - um mal. Eu disse que a dor finca a bandeira da verdade na fortaleza rebelde. Estávamos então discutindo o sofrimento que poderia ainda levar ao arrependimento. E se isso não acontecer - se nenhuma outra vitória além de enterrar a bandeira no solo jamais tenha lugar? Vamos ser honestos conosco mesmos. 

Imagino um homem que tenha ficado rico ou poderoso através de uma série contínua de traições e crueldades, explorando com fins puramente egoístas os sentimentos nobres de suas vítimas, rindo de sua ingenuidade; que, tendo alcançado assim o sucesso, faz uso dele para sua própria gratificação, cobiça e ódio e finalmente perde o último vestígio de honra entre malfeitores, traindo seus cúmplices e zombando de seus derradeiros momentos de desilusão desnorteada. Suponhamos, ainda, que ele faça tudo isso, não (como gostaríamos de imaginar) atormentado pelo remorso ou mesmo apreensão, mas comendo como um adolescente e dormindo como uma criança saudável - um homem alegre, sadio, sem um cuidado no mundo. Confiante até o fim de que só ele encontrou a resposta para o enigma da vida, que Deus e o homem são tolos de quem se aproveitou, que seu modo de viver é completamente satisfatório, cheio de sucesso, inatacável. Temos de ser cuidadosos neste ponto. A menor indulgência da paixão vingativa é um pecado mortal. A caridade cristã aconselha-nos a empreender todos os esforços para a conversão de alguém assim: preferir a sua conversão, mesmo ao risco de nossa própria vida, talvez de nossa própria alma, do que o seu castigo; e preferir isso infinitamente. Mas esse não é o ponto. Suponhamos que ele não venha a converter-se, que destino no mundo eterno você consideraria adequado para ele? Será que pode realmente desejar que um indivíduo desse tipo, permanecendo como é (e ele deve ter capacidade para tanto se tiver livre-arbítrio), seja confirmado para sempre na sua felicidade presente - deveria ele continuar, por toda eternidade, a manter-se perfeitamente convencido de que a última risada será sua?

Se você não puder considerar isto como tolerável, será apenas a sua maldade - apenas o despeito - que impede que o faça? Ou você encontra agora esse conflito entre a Justiça e a Misericórdia, que algumas vezes lhe pareceu uma parte obsoleta da teologia, atuando em sua mente, e tem a sensação de que ele vem do alto, e não de baixo? Você não é movido pelo desejo de ver sofrer essa miserável criatura, mas por uma exigência verdadeiramente ética de que, cedo ou tarde, o direito deve vencer, a bandeira deve ser plantada nessa alma tremendamente rebelde, mesmo que não seja seguida de uma vitória melhor e mais ampla, já que a própria misericórdia dificilmente poderia desejar que um indivíduo assim continue eternamente satisfeito em sua deplorável ilusão. Tomás de Aquino falou a respeito do sofrimento o mesmo que Aristóteles falou da vergonha: tratava-se de algo que não era bom em si mesmo, mas que poderia apresentar certos aspectos bons em determinadas circunstâncias. Isto é, se o mal está presente, a dor ao reconhecer o mal, sendo uma espécie de conhecimento, é relativamente boa; pois a alternativa seria que a alma ignorasse o mal, ou ignorasse que o mal é contrário à sua natureza, 'sendo ambas', diz o filósofo, 'manifestamente prejudiciais'1. E penso que, embora tremendo, concordamos.

A exigência de que Deus deva perdoar tal homem enquanto permaneça como é, está baseada numa confusão entre tolerar e perdoar. Tolerar um mal é simplesmente ignorá-lo, tratá-lo como se fosse um bem. Mas o perdão precisa ser tanto aceito como oferecido caso deva ser completo: e a pessoa que não admite culpa não pode aceitar perdão. Iniciei com o conceito de inferno como um castigo retributivo e positivo infringido por Deus, por ser essa a forma em que a doutrina é mais repelente, e queria tentar resolver a objeção mais forte. Mas, naturalmente, embora Nosso Senhor fale com frequência do inferno como de uma sentença infligida por um tribunal, Ele também diz em outro ponto que o juízo consiste no próprio fato de que os homens preferem as trevas à luz, e que sua 'palavra' e não Ele julga os homens2. Temos, portanto, liberdade - desde que os dois conceitos, a longo prazo, significam a mesma coisa - de pensar na perdição deste perverso, não como uma sentença imposta a ele, mas como o simples fato de ele ser o que é. A característica das almas perdidas é 'sua rejeição de tudo que não seja simplesmente elas mesmas'3. Nosso egoísta imaginário tentou transformar tudo o que encontra em uma província ou apêndice do EU. A preferência pelo outro, isto é, a própria capacidade de gozar do bem, é apagada nele exceto até o ponto em que seu corpo ainda o arrasta a um contato rudimentar com o mundo exterior. A morte remove este último contato. Ele alcança o que deseja - viver inteiramente para si mesmo e tirar o melhor proveito do que descobre em seu interior. E o que encontra ali é o inferno.

Outra objeção se prende à aparente desproporção entre a danação eterna e o pecado transitório. Se pensarmos na eternidade como um simples prolongamento do tempo, é mesmo desproporcional. Mas muitos rejeitariam esta ideia de eternidade. Se pensarmos no tempo como uma linha - que é uma boa imagem, porque as partes do tempo são sucessivas e duas delas não podem coexistir; i,e., não existe largura no tempo, apenas comprimento - provavelmente pensaríamos na eternidade como sendo um plano ou mesmo um sólido. Assim sendo, toda a realidade de um ser humano seria representada por uma figura sólida. Esse sólido seria principalmente a obra de Deus, agindo através da graça e da natureza, mas o livre-arbítrio humano teria contribuído com a linha-base que chamamos de vida terrena: e se você traçar sua linha-base torta, todo o sólido irá ficar no lugar errado. O fato de a vida ser curta ou, no símbolo, que contribuímos apenas com uma linha pequena e fina em toda figura complexa, poderia ser considerado como uma misericórdia divina. Pois se até mesmo o traçado dessa pequena linha, deixada ao nosso livre-arbítrio, é tão mal feito que pode prejudicar o todo, quanto mais estragaríamos a figura se mais dela nos fosse confiado? 

Uma forma mais simples da mesma objeção consiste em dizer que a morte não deveria ser final, que deveria haver uma segunda oportunidade4. Acredito que se um milhão de oportunidades tivessem qualquer probabilidade de ajudar, elas seriam dadas. Mas um professor sempre sabe, mesmo quando os alunos e os pais não sabem, que é realmente inútil fazer um estudante repetir uma determinada prova. O fim deve chegar um dia, e não é necessária uma fé muito forte para crer que a onisciência sabe quando deve ser esse dia.

Uma terceira objeção se concentra na terrível intensidade das penas do inferno como sugerido pela arte medieval e, sem dúvida, por algumas passagens das Escrituras. Von Hügel nos adverte aqui para não confundirmos a doutrina em si com as imagens mediante as quais é transmitida. Nosso Senhor fala do inferno sob três símbolos: primeiro, o do castigo ('castigo eterno' Mt 25:46); segundo, da destruição ('temam apenas a Deus, que pode destruir no inferno a alma e o corpo juntos' Mt 10:28); e terceiro, da privação, exclusão e expulsão para as 'trevas exteriores', como nas parábolas do homem que não tinha as roupas do casamento ou a das virgens sábias e das tolas. A imagem predominante do fogo é significativa porque combina as noções de tormento e destruição.

É, porém, praticamente certo que todas essas expressões têm na verdade a intenção de sugerir algo indiscutivelmente horrível, e qualquer interpretação que não enfrente esse fato estará, conforme receio, errada desde o princípio. Não é, entretanto, necessário concentrar-se nas imagens de tortura, excluindo as que sugerem destruição e privação. O que pode ser então aquilo de que as três imagens são símbolo? A destruição, podemos naturalmente presumir, significa a eliminação ou aniquilação dos destruídos. E as pessoas falam com frequência como se a 'aniquilação' de uma alma fosse possível. Em nossa experiência, porém, a destruição de uma coisa significa a emergência de outra. Queime um pedaço de madeira e terá gases, calor e cinzas. Ter sido um pedaço de madeira significa agora ser essas três coisas. Se a alma pode ser destruída, não haverá um estado de ter sido uma alma humana? E não é esse, talvez, o estado que é igualmente bem descrito como tormento, destruição e privação? Você estará lembrado de que, na parábola, os salvos vão para um lugar preparado para eles, enquanto os perdidos vão para um lugar que não foi absolutamente feito para homens5.

Entrar no céu é tornar-se mais humano do que jamais alguém o foi na terra; entrar no inferno é ser banido da humanidade. O que é lançado (ou se lança) no inferno não é um homem: são 'refugos'. Ser um homem completo significa ter as paixões obedientes à vontade e essa vontade oferecida a Deus: ter sido um homem – ser um ex-homem ou um 'fantasma perdido' - iria presumivelmente significar consistir de uma vontade completamente voltada para o Eu e paixões não controladas pela vontade. Torna-se, naturalmente, impossível imaginar com o que a consciência de tal criatura – já então um agregado indefinido de pecados mutuamente antagônicos em lugar de um pecador - poderia comparar-se. O conceito de uma 'segunda oportunidade' não deve ser confundido nem com o Purgatório (para as almas já salvas) nem com o Limbo (para as almas que já estão perdidas).

Pode haver grande parte de verdade no ditado: 'o inferno é inferno, não de seu próprio ponto de vista, mas do ponto de vista celestial'. Não acredito que isto interprete mal a severidade das palavras de Nosso Senhor. Somente aos condenados é que seu destino poderia parecer menos do que insuportável. E deve ser admitido que, nestes últimos capítulos, à medida que pensamos na eternidade, as categorias de dor e prazer, que nos prenderam por tanto tempo, começam a retroceder, enquanto bens e males mais vastos surgem no horizonte. Nem a dor nem o prazer como tais têm a última palavra. Mesmo se fosse possível que a experiência (se pode ser chamada assim) dos perdidos não contivesse dor mas muito prazer; ainda assim, esse prazer negro seria de um tipo tal que faria qualquer alma, ainda não condenada, voar para as suas orações num terror de pesadelo: mesmo que houvesse sofrimentos no céu, todos os que têm entendimento os desejariam.

Uma quarta objeção é que nenhum homem caridoso poderia considerar-se abençoado no céu enquanto soubesse que uma única alma continuasse ainda no inferno; e se for assim, somos então mais misericordiosos que Deus? Por trás dessa objeção existe uma imagem mental de céu e inferno coexistindo numa época unilinear como coexistem as histórias da Inglaterra e América: dessa forma a cada momento os bem-aventurados poderiam dizer: 'As misérias do inferno estão agora continuando'. Mas eu noto que Nosso Senhor, embora enfatizando os terrores do inferno com grande severidade, no geral não destaca a ideia de duração, mas de finalidade.

A entrega ao fogo destruidor é geralmente tratada como o fim da história e não como o começo de outra nova. Não podemos duvidar que a alma perdida esteja eternamente fixada em sua atitude diabólica; mas se esta fixidez eterna implica numa duração sem fim - ou que dure mesmo - não podemos dizer. O Dr. Edwyn Bevan faz algumas especulações interessantes sobre este ponto6. Sabemos muito mais sobre o céu do que sobre o inferno, pois o céu é o lar da humanidade e, portanto, contém tudo o que está implícito numa vida humana glorificada: mas o inferno não foi feito para homens. Ele não é de forma alguma paralelo ao céu, mas a 'escuridão lá fora', a borda externa em que o ser se desvanece no nada.

Finalmente, é objetado que a perda final de uma única alma significa a derrota da onipotência. E assim é. Ao criar seres com livre-arbítrio, a onipotência desde o início se submete à possibilidade de tal fracasso. O que você chama de derrota, eu chamo de milagre: pois fazer coisas que não são Ele mesmo, e tornar-se assim, num certo sentido, capaz de sofrer resistência por parte das obras de suas próprias mãos, é o mais surpreendente e inconcebível dos feitos que atribuímos à divindade. Acredito realmente que os perdidos são, de certa forma, rebeldes bem sucedidos até o fim; que as portas do inferno são fechadas por dentro. Não quero dizer que os fantasmas não desejem sair do inferno, da maneira vaga como uma pessoa invejosa 'deseja' ser feliz: mas eles certamente não querem nem sequer os primeiros estágios preliminares daquele auto-abandono através do qual a alma pode alcançar qualquer bem. Eles gozarão para sempre da horrível liberdade que exigiram, e são portanto auto-escravizados; da mesma maneira que os justos, para sempre submissos à obediência, tornam-se através de toda eternidade cada vez mais livres.

A longo prazo, a resposta a todos os que se opõem à doutrina do inferno é, em si mesma, uma pergunta: 'O que você está querendo que Deus faça?' Apagar os pecados cometidos por eles no passado e permitir-lhes um novo começo, alisando toda dificuldade e oferecendo toda ajuda milagrosa? Mas Ele fez isso, no Calvário. Perdoá-los? Não podem ser perdoados. Abandoná-los? Sim, tenho medo de que é justamente isso que Ele faz.

Summa Theol. I, II, Q, xxxix, Art. 1
Jo 3:19; 12:48

3 Von Hügel, Essays and Addresses, lst series, 'What do we mean by Heaven and Hell?'
O conceito de uma 'segunda oportunidade' não deve ser confundido nem com o Purgatório (para as almas já salvas) nem com o Limbo (para as almas que já estão perdidas).
Mt 25:34,41
Symbolism and Belief, pág, 101.

                                                        C.S. Lewis (1898 - 1963) - 'The Problem of Pain' (1940)

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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

AS SETE MEDITAÇÕES DE SÃO FRANCISCO DE SALES (II)

Quinta-Feira: Sobre o Inferno

Preparação: 1. Põe-te na presença de Deus; 2. Pede a Deus humildemente a sua graça; 3. Imagina uma cidade envolta em trevas, toda ardendo em chamas de enxofre e pez, que levantam uma fumaça horrível e toda cheia de habitantes desesperados, que dela não podem sair nem morrer.

Consideração

1. Os condenados estão no abismo do inferno, como desventurados habitantes desta cidade de horrores. Padecem dores incalculáveis em todos os seus sentidos e em todo o corpo; pois, assim como empregaram todo o seu ser para pecar, sofreram também em todo ele as penas devidas ao pecado. Desde modo, sofrem os olhos por seus olhares pecaminosos, vendo perto de si os demônios em mil figuras hediondas e contemplando o inferno inteiro. Aí só se ouvem lamentos, desesperos, blasfêmias, palavras diabólicas, para punir por estes tormentos os pecados cometidos por meios dos ouvidos. E de modo análogo acontecerá aos demais sentidos.

2. Além destes tormentos, existem ainda um outro muito maior. É a privação e a perda da glória de Deus, que jamais verão. Por mais ditosa que fosse a vida de Absalão em Jerusalém, ele não deixava de protestar que a infelicidade de não ver por dois anos o seu pai querido lhe era mais intolerável que o tinha sido as penas do exílio. Ó meu Deus, que sofrimento será, pois, e que pesar imenso ser privado eternamente de Vos ver e amar.

3. Considera sobretudo a eternidade a qual por si só faz o inferno insuportável. Ah! Se o calor de uma febrezinha torna uma breve noite corrompida e enfadonha, que horrenda não será a noite no inferno, onde a eternidade se ajunta a abundância dos tormentos? É desta eternidade que procede a desesperação eterna, as blasfêmias execráveis e os rancores sem fim.

Afetos e Resoluções

1. Procura incutir temor em tua alma, dirigindo-lhe as palavras do profeta Isaías: 'Ó minha alma, poderás habitar com o fogo devorante? Habitarás com os ardores sempiternos? Queres deixar teu Deus para sempre?'

2. Confessa que tens merecidos esses horríveis castigos; e quantas vezes? Ah! desde este instante melhorarei de vida, seguirei um caminho diferente do que tenho seguido até agora. Para que precipitar-me neste abismo de misérias?

Conclusão

Agradece...oferece...ora, etc.

Pai-Nosso, Ave-Maria.

Sexta-Feira: Sobre o Paraíso

Preparação: 1.Põe-te na presença de Deus; 2. Pede a Deus que te inspire.

Consideração

1. Representa-te uma noite serena e tranquila e pondera como agradável é para a alma contemplar o céu todo resplandecente ao brilho de tantas estrelas. Ajunta a estes encantos inefáveis as delícias de um claro dia, em que os raios mais brilhantes do sol, entretanto, não encobrissem a vista das estrelas e da lua; e, feito isso, dize a ti mesmo que tudo isso não é absolutamente nada, em comparação com a beleza e a glória do paraíso. Oh! Bem merece os nossos desejos esta mansão encantadora. Ó cidade santa de Deus, quão gloriosa, quão deliciosa és tu?

2. Considera a nobreza, a formosura, as riquezas e todas as excelências da companhia santa daqueles que vivem ai; esses milhões de anjos, e serafins e querubins; esses exércitos inumeráveis de apóstolos, de mártires, de confessores, de virgens e de tantos outros santos e santas. Oh! Que união bem-aventurada a dos santos da glória de Deus. O menor de todos é mil vezes mais belo que o mundo inteiro; que dita será então vê-los todos juntos! Meu Deus, que felizes são eles! Sem cessar e sem fim levam a cantar os doces cânticos do eterno amor; regozijam-se num júbilo perene; dão-se mutuamente mil motivos de gozo e vivem cercados das consolações indivisíveis de uma companhia feliz e indissolúvel.

3. Considera muito mais ainda o auge de sua bem-aventurança, o qual consiste na felicidade de ver a Deus, que os honra e inunda de gozos pela visão beatífica, fonte de bens inumeráveis, pela qual ele emite todas as luzes da sabedoria em suas mentes e todas as delícias do amor em seus corações. Que felicidade ver-se ligado tão estreitamente e para sempre a Deus com laços tão preciosos! Cercados e compenetrados de divindade, como os passarinhos no ar, ocupam-se dia e noite unicamente de seu criador, adorando-O continuamente, amando-O e louvando-O sem cansaço e com uma alegria inefável: 'Bendito sejais para sempre, soberano Senhor e criador Nosso amantíssimo, que com toda a bondade manifestais em nós a vossa glória, pela participação que nos concedeis'. E, ao mesmo tempo, Deus os faz ouvir aquelas palavras ditosas: 'Abençoado sejais, criaturas minhas, com a benção eterna, pois que me servistes com fidelidade'; vós louvareis perpetuamente o Vosso Senhor na união mais perfeita do seu amor.

Afetos e Resoluções

1. Entrega-te à admiração de tua pátria celeste. Oh! quão formosa, rica e magnífica és tu, minha Jerusalém querida, e quão ditosos teus habitantes!

2. Repreende a tua frouxidão em progredir no caminho do Céu. Porque fugi assim de minha felicidade suprema? Ah! Miserável que sou! mil vezes renunciei a estas delícias infinitas e eternas, para ir atrás de prazeres superficiais, passageiros e misturados de muita amargura. Onde tinha a cabeça, quando desprezei assim os bens estáveis e dignos de almejar, por causa dos prazeres vãos e desprezíveis?

3. Reanima, entretanto, tua esperança e aspira com todas as tuas forças a esta estância de delícias, ó amantíssimo e soberano Senhor, já que Vos aprouve reconduzir-me ao caminho do Céu, nunca mais me desviarei dai, nem reterei meus passos, nem voltarei atrás. Vamos, minha alma querida, embora custe algum cansaço; vamos a esta estância de repouso; caminharemos sempre avante para esta terra abençoada, que nos foi prometida; que estamos nós a fazer no Egito? Privar-me-ei, pois, disto e daquilo, destas coisas que me apartam do meu caminho ou me fazem parar. Farei isto e aquilo, tudo que pode servir a me conduzir e a adiantar no caminho do Céu.

Conclusão

Agradece...oferece...ora, etc.

Pai-Nosso, Ave-Maria.

Sábado: Escolha entre o Céu e o Inferno

Preparação: 1. Põe-te na presença de Deus; 2. Pede a Deus humildemente que te inspire.

Consideração

1. No começo desta meditação imagina que estás numa vasta região com o seu anjo da guarda, mais ou menos como Tobias, o jovem que viajava em companhia do Arcanjo Rafael e que ele, abrindo o Céu ante teus olhos, te mostre a beleza e a glória dessa mansão, ao mesmo tempo que faz aparecer o inferno debaixo de teus pés.

2. Feita esta suposição, de joelhos, como em presença de teu bom anjo, considera que, na realidade, te achas neste caminho entre o Céu e o Inferno e que um e outro estão abertos para te receber, conforme a escolha que fizeres. Mas pondera atentamente que a escolha que pode fazer-se agora, nesta vida, perdura eternamente na outra.

3. Com a escolha que fizeres conformar-se-á à providência de Deus ou usando de misericórdia para te receber no Céu ou de Justiça para te precipitar no Inferno; entretanto, é mais que certo que Deus, por sua bondade, quer sinceramente que escolhas a eternidade de delícias e que teu bom anjo quer te conduzir para lá com todas as suas forças, mostrando-te, da parte de Deus, os meios absolutamente necessários para merecê-la.

4. Escuta atentamente as vozes interiores que vêm do céu convidar-te a ir para lá. 'Vem, alma querida' - diz Jesus Cristo - 'que amei mais do que meu sangue; estendo-te os meus braços, para te receber no lugar das imortais delícias do meu amor'; 'vinde' - diz-nos a Santíssima Virgem - 'não desprezeis a vós e o sangue de meu Filho e os desejos que tenho de vossa salvação, e os pedidos que lhe faço para vos obter as graças necessárias'. 'Vêm' - dizem-te os santos, que só desejam a união do teu coração com o deles, 'para louvar eternamente a Deus'; 'vem, o caminho do Céu não é tão difícil como o mundo pensa'. Nós vencemos e ensejas tu também, mas com coragem, e verás que, por um caminho incomparavelmente mais suave e feliz do que o do mundo, chegarás ao auge da glória e da felicidade.

Escolha

'Ó detestável inferno, eu te aborreço com todos os teus tormentos e com tua tremenda eternidade. Detesto em especial essas blasfêmias horríveis e maldições diabólicas que vomitas eternamente contra o meu Deus. Minha alma foi criada para o Céu e é para lá que me leva o anelo de meu coração; sim, paraíso de delícias, mansão divina da felicidade e da glória eterna, é entre os teus tabernáculos santos e ditosos que escolho hoje para sempre e irrevogavelmente a minha morada. Eu vos bendigo, meu Deus, aceitando esta dádiva que Vos aprouve fazer-me. Ó Jesus meu Salvador, aceito com todo o reconhecimento de que sou capaz a honra e graça que me fazeis, de querer amar-me ternamente; reconheço que Sois Vós que me adquiristes estes direitos sobre o Céu; sim, fostes Vós que me preparastes um lugar na Jerusalém Celeste e nenhuma das felicidades desta pátria de gozos reputo igual àquela de Vos amar e glorificar eternamente'. 

Coloca-te debaixo da proteção da Santíssima Virgem e dos Santos; promete-lhes de os servir fielmente, para que te ajudem a conseguir esse Céu, onde te esperam; estende as mãos a teu bom anjo, suplicando-lhe que te conduza para lá; anima a tua alma a perseverar constantemente nesta escolha.

São Francisco de Sales, rogai por nós!

AS SETE MEDITAÇÕES DE SÃO FRANCISCO DE SALES (I)

Domingo: Sobre o Fim do Homem

Preparação: 1. Põe-te na presença de Deus; 2. Pede a Deus que te inspire.

Consideração


1. Não foi por nenhum motivo de interesse que Deus te criou, pois nós lhe somos absolutamente inúteis; foi unicamente para nos fazer bem, em nos facultando, com sua graça, participar de sua glória; e foi por isso, alma devota, que Ele te deu tudo o que tens: o entendimento, para te lembrares Dele; a vontade, para O amares; a imaginação, para te representares os seus benefícios; os olhos, para admirares as Suas obras; a língua, para O louvares, e assim as demais potências e faculdades.

2. Sendo esta a intenção que Deus teve, em te criando, com certeza deves abominar e evitar todas as ações que são contrárias a este fim; e quanto aquelas que não te conduzem a Ele, tu as deves desprezar, como vãs e supérfluas.

3. Considera quão grande é a infelicidade do mundo, que nunca pensa nestas coisas; a infelicidade, digo, dos homens que vivem por ai, como se estivessem persuadimos de que seu fim neste mundo é edificar casas, construir jardins deliciosos, acumular riquezas sobre riquezas e ocupar-se de divertimentos frívolos.

Afetos e resoluções

1. Confunde-te considerando a miséria de tua alma e o esquecimento destas verdades. Ah! de que se tenha ocupado o meu espírito, ó meu Deus, quando não pensei em Vós? De que me lembrava, quando Vos esqueci? Que amava eu, quando não Vos amava? Ah! eu me devia alimentar da verdade e fui saturar-me na vaidade. Como escravo que eu era do mundo, eu o servia, a esse mundo, que foi feito para me servir e me ensinar a Vos conhecer e amar.

2. Detesta a vida passada. Eu vos renuncio e aborreço, máximas falsas, vãos pensamentos, reflexões inúteis, recordações detestáveis. Eu vos abomino, amizades infiéis e criminosas, vão apegos ao mundo, serviços perdidos, miseráveis afabilidades, generosidade falsa que, para servir aos homens, me levaste a uma imensa ingratidão para com Deus; eu vos detesto de toda a minha alma.

3. Volta-se para Deus. E vós, ó meu Deus, Ó meu Salvador, Vós sereis de agora em diante o único objeto de meus pensamentos; Não darei atenção a nada que Vos possa desagradar; minha memória se encherá todos os dias da grandeza e doçura de Vossa bondade para comigo; Vós sereis as delícias de meu coração e toda a suavidade de meu interior. Sim, assim seja; tais e tais divertimentos com que me entretinha, estes e aqueles exercícios vãos que ocuparam o meu tempo, estas e aquelas afeições que prendiam meu coração, tudo isso serão objeto de horror para mim; e, para conservar-me nestas disposições, empregarei tais e tais meios.

Conclusão


1. Agradece a Deus. 'Eu vos dou graças, ó meu Deus, porque me destinastes para um fim tão sublime e útil, que é o de Vos amar nesta vida e gozar eternamente na outra da intensidade de vossa glória. Como serei digno Dele? Como Vos bendirei quanto mereceis?'

2. Oferece-te a Deus. 'Eu vos ofereço, ó meu amabilíssimo criador, todos estes propósitos e afetos com todo o meu coração e com toda a minha alma'.

3. Ora humildemente a Deus. 'Eu Vos suplico, ó meu Deus, que Vos agradeis de meus desejos e votos, de dar à minha alma a vossa santa benção, para que seja levados a efeito, pelos merecimentos de Vosso Filho, que por mim derramou todo o seu sangue na Cruz. 

Pai-Nosso, Ave-Maria.

Segunda-Feira: Sobre os Pecados

Preparação: 1.Põe-te na presença de Deus; 2. Pede a Deus que te inspire.

Consideração


1. Vai em espírito aquele tempo em que começastes a pecar; pondera quanto tens aumentado e multiplicado os teus pecados de dia a dia, contra Deus e contra o próximo, por tuas obras, por tuas palavras, por teus pensamentos e por teus desejos.

2. Considera tuas más inclinações e com que paixão tu as seguiste; com estas duas considerações, verás que teus pecados sobrepujam o número de teus cabelos e mesmo as areias do mar.

3. Presta atenção especialmente na tua ingratidão para com Deus, pois este é um pecado geral que se acha em todos os outros e lhes aumenta infinitamente a enormidade. Conta, se podes, todos os benefícios de Deus, dos quais a maldade de teu coração se serviu para desonrá-Lo; todas as inspirações desprezadas, todas as moções da graça inutilizadas e todos os diferentes abusos do sacramentos. Onde estão, pelo menos, os frutos que Deus esperava dai? Que é o feito das riquezas com que o teu divino esposo exortou a tua alma? Tudo foi deturpado por tuas iniquidades. Pensa que tua ingratidão foi a ponto de fugires da esperança de Deus, para te perderes, enquanto Ele te seguia, passo por passo, para te salvar.

Afetos e resoluções

1. Sirva aqui a tua miséria para confundir-te. Ó meu Deus, como ouso apresentar-me diante de Vós? Oh! Eu me acho num deplorável estado de corrupção, impureza, ingratidão e iniquidade. É possível que eu tenha levado a minha insensatez e ingratidão a ponto de já não haver um de meus sentidos que não esteja deturpado por minha iniquidade, nenhuma das potências de minha alma que não esteja profanada e corrompida por meus pecados e que não se tenha passado um só dia de minha vida que não fosse cheio de obras más? É este o fruto dos benefícios do meu Criador e o preço do sangue de meu Redentor?

2. Pede perdão dos teus pecados e lança-te aos pés do Senhor, como o filho pródigo aos pés de seu pai; como Santa Madalena aos pés dos seu amantíssimo Salvador, como a mulher adúltera aos pés de Jesus, seu juiz. 'Ó Senhor, misericórdia para essa alma pecadora. Ó divino coração de Jesus, fonte de compaixão e de bondade, tende piedade desta alma miserável'.

3. Propõe-te melhorar de vida. Nunca mais, Senhor, me entregarei ao pecado, não, jamais, como o auxílio de Vossa graça. Oh! amei-o demais, mais agora detesto-o de todo o meu coração. Eu Vos agradeço, ó Pai das misericórdias! Em Vós quero viver e morrer.

Acusar-me-ei a um sacerdote de Jesus Cristo, com o coração humilde e sincero, de todos os meus pecados, sem espécie alguma de reserva ou dissimulação. Farei todo o possível para destruir os pecados em mim até a raiz, especialmente estes e aqueles que mais me pesam na consciência. Para isso empregarei com generosidade todos os meios que Ele me aconselhar e nunca pensarei ter feito bastante para reparar minhas enormes faltas.

Conclusão

1. Agradece a Deus que até esta hora esperou por tua conversão e te deu estas boas disposições;  
2. Oferece-Lhe a vontade que tens de servi-Lo o melhor possível;
3. Pede-lhe que te dê a sua graça e a força, etc.

Pai-Nosso, Ave-Maria.


Terça-Feira: Sobre a Morte

Preparação: 1.Põe-te na presença de Deus; 2. Pede a Deus que te inspire; 3. Imagina que te achas no inferno, no leito de morte, sem nenhuma esperança de vida.

Consideração


1. Considera, minha alma, a incerteza do dia da morte. Um dia sairás do teu corpo. Quando será? Será no inverno ou no verão ou em alguma outra estação do ano? No campo ou na cidade, de noite ou de dia? Será de um modo súbito ou com alguma preparação? Será por algum acidente violento ou por uma doença?Terás tempo e um sacerdote para te confessares? Tudo isto é desconhecido, de nada sabemos, a não ser que havemos de morrer indubitavelmente e sempre mais cedo que pensamos.

2. Grava bem em teu espírito que então para ti já não haverá mundo, vê-lo-ás perecer antes teus olhos; porque então os prazeres, as vaidades, as horas, as riquezas, as amizades vãs, tudo isso se te afigurará como um fantasma que se dissipará ante tuas vistas. Ah! Então haverás de dizer: por umas bagatelas, umas quimeras, ofendi a Deus, isto é, perdi o meu tudo por um nada. Ao contrário, grandes e doces parecer-te-ão então as boas obras, a devoção e as penitências, e haverás de exclamar: Oh! Porque não segui eu esta senda feliz? Então, os teus pecados, que agora tens por uns átomos, parecer-te-ão montanhas e tudo o que crês possuir de grande em devoção será reduzido a um quase nada.

3. Medita esse adeus grande e triste que tua alma dirá a este mundo, as riquezas e as vaidades, aos amigos, a teus pais, a teus filhos, a um marido, a uma mulher, a teu próprio corpo, que abandonarás imóvel, hediondo de ver e todo desfeito pela corrupção dos humores.

4. Prefigura vivamente com que pressa levarão embora este corpo miserável para lançá-lo na terra, e considera que, passadas essas cerimônias lúgubres, já não se pensará mais de todo em ti, assim como tu não pensas nas pessoas que já morreram. 'Deus o tenha em paz' - há de dizer-se - e com isso terá tudo acabado para ti neste mundo. Oh! morte, sem piedade és tu! A ninguém poupas neste mundo.

5. Advinhas, se podes, que rumo seguirá tua alma, ao deixar o teu corpo. Ah! Para que lado se há de voltar? Por que caminho entrará na eternidade? - É exatamente por aquele que encetou já nesta vida.

Afetos e resoluções

1. Ora ao Pai da misericórdias e lança-Te em seus braços. 'Ah! Tomai-me, Senhor, debaixo de vossa proteção, neste dia terrível, empenhai a vossa bondade por mim, nesta hora suprema de minha vida, para torná-la feliz, ainda que o resto de minha vida seja repleto de tristezas e aflições'.

2. Despreza o mundo. 'Já que não sei a hora em que hei de te deixar, ó mundo; já que hora é tão incerta, não me quero apegar a ti. Ó meus queridos amigos, permiti que vos ame unicamente com uma amizade santa e que dure eternamente; pois, para que unir-nos de modo que seja preciso em breve romper esses laços? Quero preparar-me para essa última hora; quero tranquilizar minha consciência; quero dispor isso e aquilo em ordem e predispor-me do necessário para o pensamento feliz'.

Conclusão

Agradece a Deus por estas boas resoluções que te fez tomar, e oferece-as à divina majestade; suplica-lhe que pelos merecimentos da morte de seu Filho, te prepare uma boa morte; implora a proteção da santíssima virgem e dos santos.

Pai-Nosso, Ave-maria.


Quarta-Feira: Sobre o Último Juízo

Preparação: 1.Põe-te na presença de Deus; 2.Pede a Deus que te inspire.

Consideração


1. Enfim, uma vez terminado o prazo prefixado pela sabedoria de Deus, para a duração do mundo, aqueles inúmeros e vários prodígios e presságios horríveis, que consumirão de temor e tremor os homens ainda vivos, um dilúvio de fogo se alastrará pela terra fora, destruindo tudo, sem que coisa alguma escape as suas chamas devoradoras.

2. Depois deste incêndio universal, todos os homens hão de ressuscitar, ao som da trombeta do arcanjo, e comparecerão em juízo todos juntos, no vale de Josafá. Mas - ah - bem diversa será a sua situação: uns terão o corpo revestido de glória e esplendor e outros se horrorizarão de si próprios.

3. Considera a majestade com que o soberano juiz há de aparecer em seu tribunal, cercado de anjos e santos e tendo diante de si, mais brilhante que o sol, a cruz, como sinal de graça para os bons e de vingança para os maus.

4. À vista deste sinal e por determinação de Jesus Cristo, separar-se-ão os homens em duas partes: uns se acharão à sua direita e serão os predestinados; outros, à sua esquerda, e serão os condenados. Separação eterna! Jamais se encontrarão de novo juntos.

5. Então se abrirão os livros misteriosos das consciências: nada ficará oculto. Clara e distintamente ver-se-á  nos corações de uns e de outros tudo o que fizeram de bom e de mau - as afrontas a Deus e a fidelidade às suas graças, os pecados e a penitência. Ó Deus, que confusão de uma parte e que consolação da outra!

6. Escuta atentamente a sentença formidável que o soberano juiz pronunciará contra os maus: ide, malditos para o fogo eterno, que foi preparado para o diabo e seus anjos. Pondera bem estas palavras, que os hão de esmagar por completo: ide. Essa palavra já nos está anunciando o abandono completo em que Deus deixará a sua criatura, expulsando-a de sua presença e não a contando mais no número daqueles que lhe pertencem. Ide, malditos. Ó minha alma, que maldição esta! Ela é universal, pois encerra todos os males, e ela é irrevogável, porque se estende a todos os tempos, por toda a eternidade. Ide, malditos, para o fogo eterno. Considera, ó minha alma, essa eternidade tremenda. Ó eternidade de penas eternas, como horrível és tu!

7. Escuta também a sentença que decidirá sobre a sorte feliz dos bons: 'Vinde', dirá o juiz. Ah! esta é a doce palavra de salvação, pela qual o Nosso Divino Salvador nos há de chamar a Si, para recebermos, bondoso, entre seus braços. 'Vinde, benditos de meu Pai'. Ó benção preciosa e incomparável, que encerra em si todas as bênçãos! Possuí o reino que vos está preparado desde o criação do mundo. Ó meu Deus, que graça! Possuir um reino que nunca terá fim!

Afetos e resoluções

1. Compenetra-te, minha alma, de temor, com a lembrança deste dia fatal. Ah! com que segurança contas tu, quando as próprias colinas do céu tremerão de terror?

2. Detesta teus pecados. É só isso que te pode levar a perdição. Ah! julga-te a ti mesma agora para então não seres julgado. Sim, eu quero fazer bem o exame de consciência, acusar-me, julgar-me, condenar-me, corrigir-me, para que o juiz não me condene naquele dia tremendo: confessar-me-ei, pois, aceitarei os avisos necessários, etc.

Conclusão

1. Agradece a Deus, que te deu tempo e meios de pôr-te em segurança pelo exercício da penitência;
2. Oferece-Lhe teu coração, para fazer dignos frutos de penitência;
3. Pede-Lhe a graça necessária para isso.

Pai-Nosso, Ave-Maria.

São Francisco de Sales, rogai por nós!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A CONVERSÃO DE RATISBONNE

Afonso Ratisbonne (1814 - 1884)

Afonso Ratisbonne pertencia a uma riquíssima família de banqueiros judeus de Estrasburgo e nutria um ódio extremado contra a Igreja Católica, aumentado ainda mais pela conversão do seu irmão mais velho Theodore ocorrida em 1827, que se tornara sacerdote, renunciando à sua família. Em 20 de janeiro de 1842, em viagem a Roma, Ratisbonne encontrou-se casualmente na rua com o Barão Theodore de Bussières, católico fervoroso e amigo íntimo do seu irmão e que ele conhecera pouco antes na casa de um amigo comum. Em ocasião anterior, o barão insistira pela conversão de Ratisbonne, conseguindo que o mesmo passasse a portar uma Medalha Milagrosa e recomendando-o insistentemente a rezar a oração do 'Lembrai-vos'. Desse encontro casual, Ratisbonne acompanhou o barão até a Igreja de Sant'Andrea delle Frate, onde iriam ocorrer as exéquias do Conde de La Ferronays, ex-embaixador da França junto à Santa Sé e homem de grande piedade cristã, falecido dois dias antes. Na véspera de sua morte e a pedido do Barão de Bussières, o conde havia rezado cem vezes o 'Lembrai-vos' pela conversão de Afonso Ratisbonne. Os extraordinários eventos que se seguiram então são descritos assim pelo Barão Theodore de Bussières:


'Ela não falou uma palavra, mas eu entendi tudo'

Ratisbonne não deu sequer um passo rumo à verdade, sua vontade permanece como sempre; ele não deixa de ridiculizar tudo e parece se importar somente das coisas terrenas. Perto do meio-dia ele entrou em um café na Piazza di Spagna para ler os jornais. Lá ele encontrou o meu cunhado, Edmund Humann; eles conversaram sobre as notícias do dia, com uma irreverência e uma facilidade que excluía qualquer preocupação séria.

Parece que a Providência queria dispor as coisas de modo a excluir até a possibilidade de dúvida quanto ao estado de espírito de Ratisbonne pouco antes de a graça inesperada de sua conversão. Cerca de meio-dia e meia, saindo do café, ele encontrou seu amigo de escola, o barão A. de Lotzbeck e começou a conversar com ele sobre os assuntos mais frívolos. Ele falou da dança, do prazer, da esplêndida festa dada pelo príncipe T. Em verdade, se alguém tivesse dito a ele naquele momento: dentro de duas horas você vai ser católico, ele certamente o teria julgado louco.

Por volta de uma hora, eu tinha que combinar algumas coisas na igreja de Sant'Andrea delle Fratte para a cerimônia fúnebre do dia seguinte. Mas encontrei Ratisbonne descendo pela Via Condotti. Ele aceitou vir comigo, iria me aguardar alguns minutos e, em seguida, iríamos passear juntos. Entramos na igreja. Ratisbonne percebeu os preparativos para um funeral, e perguntou para quem seria feito. 'Para um amigo que acabo de perder, e que eu amava muito, M. de Laferronnays', respondi.

(Igreja Sant'Andrea delle Frate)

Ele então começou a andar pela nave e seu olhar frio e indiferente parecia dizer: 'Esta é certamente uma igreja muito feia.' Deixei-o do lado da epístola na igreja, à direita de um pequeno compartimento destinado a receber o caixão, e fui para o mosteiro. Eu tinha apenas algumas palavras para dizer a um dos frades, porque eu queria uma tribuna preparada para a família do falecido. Eu me demorei não mais do que 10 ou 12 minutos.

Quando voltei para a igreja, de início não achei Ratisbonne. Mas logo o vi ajoelhado em frente ao altar lateral de São Miguel Arcanjo. Fui até ele, toquei-lhe três ou quatro vezes sem que ele percebesse minha presença. Finalmente, ele se virou para mim, o rosto banhado em lágrimas, com as mãos juntas, e me disse com uma expressão que nenhuma palavra vai render: 'Oh, como este senhor [M. de Laferronnays] orou por mim!' Fiquei petrificado de espanto, naquele momento senti aquilo que as pessoas sentem na presença de um milagre. 

(altar da aparição)

Eu levantei Ratisbonne, acompanhei-o, ou melhor, quase o levei para fora da igreja, e perguntei-lhe qual era o problema, e onde ele queria ir. 'Leva-me onde quiserdes', respondeu ele, 'depois que eu vi, eu obedeço'. Insisti para que me explicasse o que queria dizer, mas não conseguia por causa de uma emoção forte demais. Ele tirou de seu peito a Medalha Milagrosa, e a cobriu de beijos e lágrimas. Eu tentei trazê-lo de volta para si, e não obstante as minhas insistentes perguntas, não recebia dele senão exclamações interrompidas por soluços: 'Oh, como eu sou feliz! Oh, como é bom o Senhor! Que plenitude de graça e felicidade! Como é lamentável o lote daqueles que não sabem!' Então ele começou a chorar ao pensar em hereges e descrentes. 

Finalmente, ele se perguntou se não estava louco. 'Mas não', acrescentou ele, 'eu estou em meu perfeito juízo. Meu Deus, meu Deus, eu não estou louco, não. Todo mundo sabe que eu não sou louco!' Quando a delirante agitação foi se acalmando, com um olhar sereno e eu diria quase transfigurado, Ratisbonne estendeu seus braços em volta de mim e me abraçou, me pediu para levá-lo a um confessor; queria saber quando ele poderia receber o Santo Batismo sem o qual ele não podia viver, suspirava de felicidade pelos mártires, cujos tormentos ele tinha visto retratados nas paredes da igreja de S. Stefano Rotondo. Ele me disse que não poderia dar explicação alguma sem a permissão de um padre, 'porque aquilo que eu tenho a dizer', acrescentou, 'é algo que não posso dizer nem devo dizer senão de joelhos'.

Levei-o imediatamente à igreja do Gesù para ver o Pe. Villefort, que lhe pediu para se explicar. Então Ratisbonne, estendeu a medalha, beijou-a, mostrou-nos, e exclamou: 'Eu a vi, eu a vi!' E a emoção voltou a embargá-lo. Mas logo ele recuperou a calma e se exprimiu nestes termos: 'Eu passei um breve tempo na igreja, quando de repente eu senti uma agitação de espírito indescritível. Ergui os olhos: diante de mim o prédio todo tinha desaparecido, só tinha uma capela, por assim dizer, onde se concentrou toda a luz. E no meio desse esplendor apareceu para mim em pé sobre o altar, grande, cheio de majestade e de doçura, a Virgem Maria, tal como ela é representada na minha Medalha' Uma força irresistível me atraiu para ela. A Virgem me fez sinal com a mão que deveria ajoelhar e, em seguida, ela parecia dizer: assim está bem! Ela não falou uma palavra, mas eu entendi tudo'.

Ratisbonne fez esta breve narração parando com frequência como para tomar fôlego e reprimir a emoção que tomava conta dele. Ouvimos com uma reverência sagrada, misturada com alegria e gratidão, maravilhados com a profundidade das vias do Senhor e os tesouros inefáveis de Sua misericórdia. Uma frase nos impressionou mais do que as outras pela profundidade do mistério: 'Ela não falou uma palavra, mas eu entendi tudo'.

Aliás, agora basta ouvir a Ratisbonne. A fé católica emana de seu coração como um perfume precioso do vaso que a contém, mas não pode confiná-la. Ele falou da Presença Real como um homem que acreditava que com toda a energia de seu ser, mas a expressão é muito fraca; ele falava como aquele que teve uma percepção direta.

Ao deixar o Padre Villefort, fomos dar graças a Deus, em primeiro lugar em Santa Maria Maggiore, nossa cara basílica da Santíssima Virgem, e depois na de São Pedro. É impossível transmitir uma ideia do transporte de Ratisbonne quando esteve nessas igrejas. 'Ah', dizia ele, apertando minhas mãos, 'agora eu entendo o amor dos católicos por suas igrejas, e a devoção que os leva a embelezá-las e adorná-las! Como é bom estar aqui! Querer-se-ia nunca deixá-las! Aqui não estamos mais na terra, é o vestíbulo do céu ...'

Diante do altar do Santíssimo Sacramento, a Presença Real de Jesus o impressionava de tal maneira que ele ficaria quase fora de si se não fosse afastado logo e levado para longe. Ficava aterrorizado pela ideia de comparecer perante o Deus vivo maculado como estava pelo pecado original. Apressou-se a se refugiar na capela da Virgem. 'Aqui', ele me disse: 'não posso ter medo. Sinto-me sob a proteção de uma misericórdia ilimitada'.

Ele rezou com grande fervor diante do túmulo dos santos Apóstolos. A história da conversão de Paulo, que eu lhe narrei, o fez derramar lágrimas abundantes. Ele ficou admirado pelo poderoso afeto, aliás póstumo, para usar sua própria expressão, que o unia a M. de Laferronnays, e pretendia passar a noite ao lado de seus restos mortais, pois, dizia ele, este era seu dever imposto pela gratidão. Mas o Padre Villefort, vendo que ele estava exausto de fadiga, contrariando este desejo piedoso, aconselhou-o prudentemente a não permanecer além das 22 horas.

Em seguida, Ratisbonne nos disse que na noite anterior não havia sido capaz de dormir, que ele tinha sempre diante dos olhos uma grande cruz, de uma forma peculiar, sem a imagem de Cristo que ficava constantemente diante dele. 'Eu fiz', disse ele, 'esforços incríveis para afastar essa visão, mas todos foram infrutíferos'. Algumas horas depois, observando casualmente o reverso da Medalha Milagrosa, ele reconheceu a mesma Cruz!

Enquanto isso, eu estava muito impaciente querendo voltar a ver a família Laferronnays. Eu levava notícias consoladoras para eles no momento em que se despediam dos restos venerados daquele que eles choravam. Entrei na câmara mortuária em um estado de agitação, quase se poderia dizer de alegria, que chamou a atenção de todos os presentes porque compreenderam que eu tinha algo gravemente importante para comunicar. Todos eles me acompanharam até uma sala adjacente, e eu às pressas relatei o acontecimento.

Eu tinha trazido boas novas do Céu. As lágrimas de dor em um momento foram transformadas em lágrimas de gratidão. Aqueles pobres corações aflitos podiam agora suportar com perfeita resignação cristã o mais cruel dos sacrifícios que cobra a morte, o último adeus aos restos daquele que eles tinham amado... Mas eu estava ansioso para voltar a ver o filho que o Céu tinha acabado de me dar. Ele me implorou para não deixá-lo sozinho porque precisava de um amigo em cujo coração derramar as profundas emoções daquele dia.

Perguntei-lhe uma e outra vez as circunstâncias da visão milagrosa. Ele próprio não sabia explicar como ele passou do lado direito da igreja para a capela que está à esquerda, sendo que, entre a capela e o local onde estava, encontravam-se os preparativos para o serviço fúnebre. Tudo o que ele sabia era que se viu de repente de joelhos, prostrado diante desse altar.

De início, ele pôde ver claramente a Rainha do Céu em todo o esplendor de sua beleza imaculada, mas seu olhar não conseguiu suportar o brilho daquela luz divina. Três vezes ele tentou olhar mais uma vez a Mãe de Misericórdia, e três vezes só foi capaz de elevar seus olhos até suas mãos abençoadas, a partir das quais brotava uma torrente de graças em forma de feixes luminosos.

'Ó meu Deus', exclamou ele, 'mas eu, que meia hora antes estava blasfemando ainda! Eu, que sentia um ódio tão violento contra a religião católica!... Mas todos os que me conhecem sabem muito bem que, humanamente falando, eu tinha os mais soberbos motivos para continuar a ser um judeu... Minha família é judaica, minha noiva é judia, meu tio é um judeu... Ao me tornar católico, eu rompo com todos os interesses e todas as esperanças que tenho na terra e, entretanto, eu não sou louco, vê-se claramente que eu não sou louco, que eu nunca fui louco! Portanto, devem acreditar em meu testemunho'.

(Ratisbonne tornou-se sacerdote e apóstolo da conversão dos judeus)

Theodore de Bussières, “La conversione di Alfonso Maria Ratisbonne”, Ed. Amicizia Cristiana, 2008, Chieti, 63 p., páginas 18-25.

Batizado com o nome de Afonso Maria, Ratisbonne quis entrar na Companhia de Jesus, sendo ordenado sacerdote em 1847. Depois de algum tempo, por recomendação do Papa Pio IX, deixou a Companhia de Jesus e foi unir-se a seu irmão Theodore, com ele fundando a Congregação dos Missionários de Nossa Senhora de Sion, dedicada à conversão dos judeus. O Pe. Theodore difundiu sua Congregação pela França e pela Inglaterra. O Pe. Afonso Maria foi para a Terra Santa, e comprou em Jerusalém um terreno em que outrora estivera o Pretório de Pilatos, ali estabelecendo uma casa da Congregação. Os dois irmãos faleceram no ano de 1884, ambos com fama de excepcionais virtudes.

(padres Theodore e Afonso Maria)