segunda-feira, 15 de maio de 2023

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LVI)

 

Capítulo LVI

Auxílio às Santas Almas - A Santa Missa - A Aparição de Eugenie Van de Kerchove - O Camponês e o Príncipe Polonês

Nada é mais conforme ao espírito cristão do que oferecer o Santo Sacrifício para o alívio das almas que partiram, e seria uma grande desgraça se o zelo dos fieis esfriasse a esse respeito. Deus parece multiplicar prodígios para nos impedir de cair em tão fatal relaxamento. O seguinte incidente é atestado por um digno padre da diocese de Bruges, que o recebeu de sua fonte primitiva, e cujo testemunho carrega toda a certeza de uma testemunha ocular sobre o fato. Em 13 de outubro de 1849, morreu com a idade de cinquenta e dois anos, na freguesia de Ardoye, na Flandres, uma mulher chamada Eugenie Van de Kerchove, cujo marido, John Wybo, era agricultor. Ela era uma mulher piedosa e caridosa, dando esmolas com uma generosidade proporcional aos seus meios.

Ela teve, até o fim de sua vida, uma grande devoção à Santíssima Virgem e, em sua honra, fazia abstinência nas sextas-feiras e nos sábados de cada semana. Embora sua conduta não fosse isenta de certas falhas domésticas, ela levou uma vida exemplar e edificante. Uma criada chamada Barbara Vennecke, de vinte e oito anos, uma jovem virtuosa e dedicada, e que havia ajudado sua patroa nos momentos finais de doença, continuou a servir a John Wybo, o viúvo de Eugenie.

Cerca de três semanas após a sua morte, a falecida apareceu à sua serva em circunstâncias que vamos relatar. Foi no meio da noite; Bárbara dormia profundamente, quando ouviu distintamente ser chamada três vezes pelo seu nome. Ela acordou sobressaltada e viu diante de si a sua patroa, sentada ao lado de sua cama, vestida em roupas de serviço, compostas por saia e jaqueta curta. Diante da visão, por estranho que pareça, Bárbara não se assustou nem um pouco e conservou a sua presença de espírito. A aparição falou com ela: 'Bárbara' - disse, simplesmente pronunciando seu nome.  'O que você deseja, Eugenie?' - respondeu a serva. 'Pegue o pequeno ancinho que muitas vezes lhe disse para colocar em seu lugar; remexa o monte de areia no quartinho; você sabe ao qual me refiro. Lá você encontrará uma certa quantia em dinheiro; use-a para rezar missas em minha intenção, dois francos para cada uma, pois ainda estou sofrendo'. 'Farei isso, Eugenie' - respondeu Bárbara, e no mesmo instante a aparição desapareceu. A serva, ainda bastante serena, adormeceu novamente e repousou tranquilamente até de manhã.

Ao acordar, Bárbara acreditou ter sido tudo um sonho, mas estava profundamente impressionada, pois tinha a impressão de ter ficado desperta e ter visto a sua velha patroa de forma tão distinta e tão cheia de vida, e da qual recebera instruções tão precisas, que não pôde deixar de pensar: 'Não é assim que sonhamos; vi a minha senhora pessoalmente; ela se apresentou diante dos meus olhos e falou comigo. Isto não é um sonho, mas uma realidade'. A seguir, ela pegou o ancinho conforme lhe fôra indicado, remexeu na areia e ali encontrou uma bolsa contendo a quantia de quinhentos francos.

Diante de circunstâncias tão estranhas e extraordinárias, a jovem julgou ser seu dever consultar o pastor e foi relatar-lhe tudo o que havia acontecido. O venerável Abade R., então pároco de Ardoye, respondeu que as missas pedidas pela falecida deviam ser celebradas mas, considerando a quantia em dinheiro, era necessário o consentimento prévio do marido. Este último consentiu de bom grado que o dinheiro fosse empregado para tão santo propósito, e as missas foram celebradas, sendo aplicados dois francos por cada missa. Chamamos a atenção para a circunstância da taxa, porque correspondia ao piedoso costume da falecida. A taxa para uma missa fixada pela tarifa diocesana à época era de cerca de um franco e meio, mas a esposa de Wybo, por consideração pessoal e ao clero, obrigado naquele momento de escassez a socorrer um grande número de pobres, concedia dois francos para cada missa que costumava celebrar.

Dois meses após a primeira aparição, Bárbara foi novamente acordada durante a noite. Desta vez, seu quarto foi iluminado por uma luz brilhante, e sua senhora revelou-se tão bela quanto nos seus dias de juventude, vestida com um manto de deslumbrante brancura, olhando-a com um sorriso amável. 'Bárbara' - disse com uma voz clara e audível - 'eu te agradeço; estou libertada'. Dizendo essas palavras, ela desapareceu e o quarto tornou-se escuro como antes. A serva, maravilhada com o que tinha visto, foi tomada de grande alegria. Essa aparição causou a impressão mais viva em sua mente, e ela preserva até hoje a lembrança mais consoladora de tudo. É dela que temos esses detalhes tão específicos, por especial concessão do venerável abade R., então pároco em Ardoye quando esses fatos ocorreram.

O célebre Padre Lacordaire, no início das conferências sobre a imortalidade da alma, que ministrou alguns anos antes de sua morte aos alunos de Soreze, relatou-lhes o seguinte incidente: o príncipe polonês de X., infiel e materialista declarado, acabara de compor uma obra contra a imortalidade da alma. Ele estava a ponto de enviá-la  à imprensa quando certo dia, passeando pelos seus parques, encontrou uma mulher que, em prantos, prostrou-se aos seus pés e tomada de profunda dor lhe disse: 'Meu bom príncipe, meu marido acaba de falecer. Neste momento, a sua alma talvez esteja sofrendo no Purgatório. Estou em estado de tal pobreza que não tenho nem mesmo a pequena quantia necessária para celebrar uma missa pelos defuntos. Por sua bondade, intervenha em meu auxílio em favor da alma do meu pobre marido'.

Embora o príncipe estivesse convencido da falsa credulidade daquela mulher, não teve coragem de recusar o seu pedido, dando-lhe então uma moeda de ouro. A pobre mulher correu em direção à igreja e fez a oferta ao sacerdote para oferecer algumas missas pelo repouso da alma do seu marido. Cinco dias depois, ao entardecer, o príncipe, no isolamento de seu escritório, estava lendo o manuscrito e retocando alguns detalhes do texto de sua autoria quando, erguendo os olhos, viu, diante de si, um homem vestido com trajes de camponês. 'Príncipe' - disse o visitante desconhecido - 'venho agradecer-lhe, pois sou o marido daquela pobre mulher que outro dia lhe implorou para lhe dar uma esmola, com a qual pudesse oferecer o Santo Sacrifício da Missa em intenção da minha alma. A tua caridade agradou a Deus: foi Ele quem me permitiu vir agradecer-te pessoalmente'. Ditas essas palavras, o camponês desapareceu como uma sombra. A emoção do príncipe foi indescritível e, de pronto, lançou os seus escritos às chamas, e se rendeu tão inteiramente à convicção da verdade que sua conversão foi imediata e completa, nela perseverando até a sua morte.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.