quinta-feira, 13 de outubro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XLI)

 

Capítulo XLI

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados Contra o Abuso da Graça - Santa Madalena de Pazzi e a Religiosa em Expiação por Abuso da Graça - Santa Margarida Maria e as Três Almas do Purgatório 

Há uma outra desordem na alma que Deus pune severamente no Purgatório, a saber, o abuso da graça. Por isso se entende a negligência em corresponder às ajudas que Deus nos dá e aos convites que Ele nos impõe à prática da virtude para a santificação de nossas almas. Esta graça que Ele nos oferece é um dom precioso, que não podemos jogar fora; é a semente da salvação e do mérito, que não se pode deixar improdutiva. Ora, esta falta é cometida quando não respondemos com generosidade ao convite divino. Recebo de Deus o meio de dar esmolas; uma voz interior me convida a fazê-lo. Mas fecho o meu coração ou a dou com mão avarenta; isso é um abuso da graça. Posso assistir a missa, ouvir o sermão ou frequentar os sacramentos; uma voz interior me incita a ir, mas não vou por frouxidão, isso é um abuso da graça. Uma pessoa religiosa deve ser obediente, humilde, mortificada e devotada aos seus deveres. Deus exige isso e lhe dá esta graça em virtude de sua vocação. Mas quando ela não se aplica a isso e não se esforça para superar a si mesma, a fim de cooperar com a assistência que Deus lhe dá; isso é um abuso da graça.

Este pecado, como dissemos, é severamente punido no Purgatório. Santa Madalena de Pazzi relata que uma das suas irmãs religiosas teve muito que sofrer depois da morte por não ter correspondido à graça por três vezes. Num certo dia de festa, sentiu-se inclinada a fazer um pouco de trabalho de pouca monta; tratava-se de uma simples peça de bordado, mas que não era absolutamente necessária e que poderia ter sido adiada convenientemente para outro momento. A inspiração da graça a alertara para se abster disso, por respeito à santidade do dia, mas ela preferiu satisfazer o desejo natural que tinha de fazer o trabalho, sob o pretexto de que era algo leve. Numa segunda ocasião, tendo notado que um ponto relevante de discussão havia passado desapercebido - e cuja menção às suas superioras teria resultado em um grande bem à comunidade - omitiu-se por mencioná-lo. A inspiração da graça a motivou para realizar esse ato de caridade, mas o respeito humano o impediu de fazê-lo. Uma terceira falta foi um apego desregulado aos seus que estavam no mundo. Como esposa de Jesus Cristo, devia todos os seus afetos a este divino Esposo; mas ela compartilhava seu coração por se importar muito com os membros de sua família. Embora pressentisse que a sua conduta a esse respeito era equivocada, ela não obedeceu ao movimento da graça e não trabalhou fervorosamente para se corrigir nesse sentido.

Quando esta irmã, aliás muito edificante, veio a falecer, Santa Madalena de Pazzi rezou em sua intenção com o seu habitual fervor. Dezesseis dias depois, ela se apresentou diante à santa, anunciando a sua libertação. Como Madalena estava espantada por ela ter estado tanto tempo em tormento, a alma revelou a ela que teve que expiar pelo abuso de graça nos três casos mencionados e acrescentou que essas faltas a teriam mantido por muito mais tempo em expiação se Deus não tivesse considerado aspectos mais positivos da sua conduta; assim, Ele abreviara suas sentenças por causa de fidelidade da alma ao cumprimento da regra, das suas boas intenções e dos frutos da sua caridade para com suas outras irmãs.

Aqueles que tiveram mais graças neste mundo e mais meios para quitar as suas dívidas espirituais serão tratados no Purgatório com menos indulgência do que outros que tiveram menos facilidade para as satisfazer durante a vida. Santa Margarida Maria, ao ser informada da morte de três pessoas recentemente falecidas, sendo duas freiras e um secular, começou imediatamente a rezar pelo descanso eterno de suas almas. Era o primeiro dia do ano. Nosso Senhor, tocado por sua caridade e usando uma inefável familiaridade, condescendeu em aparecer a ela; e, mostrando-lhes as almas dos três falecidos nas prisões de fogo onde sofriam, lhe disse: 'Minha filha, como um presente de Ano Novo, concedo-lhe a graça da libertação de uma dessas três almas, e deixo que você faça a escolha; qual delas você quer que seja libertada?' A santa respondeu então: 'Quem sou eu, Senhor, para designar aquela que merece a Vossa consolação? Façais Vós mesmo essa escolha!' Então Nosso Senhor libertou o secular, dizendo que tinha menos dificuldade em ver as religiosas sofrerem, porque elas teriam tido mais meios de expiar os seus pecados em vida.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

(Fim da Primeira Parte)