segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXIII)

Capítulo XXIII

Duração do Purgatório - O Abade Cisterciense e o Papa Inocêncio III - João de Lierre - A irmã de São Vicente Ferrer

Na 'Vida de Santa Lutgarda', obra escrita pelo seu contemporâneo, Tomás de Cantimpre, é mencionado um religioso outrora fervoroso mas que, por excesso de zelo, foi condenado a quarenta anos do Purgatório. Este era um abade da Ordem Cisterciense, chamado Simão, que tinha por Santa Lutgarda grande veneração. A santa, por sua vez, seguiu de bom grado o seu conselho e, em consequência, formou-se entre eles uma espécie de amizade espiritual. Mas o abade, por sua vez, não era tão brando com os seus subordinados quanto era com a santa. 

Severo consigo mesmo, também foi severo em sua administração, e levou as suas exigências em matéria de disciplina até um rigor muito elevado, esquecendo a lição do Divino Mestre que nos ensina a ser mansos e humildes de coração. Tendo falecido, e enquanto Santa Lutgarda estava rezando fervorosamente e impondo a si penitências pelo repouso de sua alma, ele apareceu a ela e declarou que estava condenado a quarenta anos no Purgatório. Felizmente ele tinha em Lutgarda uma amiga generosa e poderosa. Ela redobrou as suas orações e austeridades e, tendo recebido de Deus a garantia de que a alma que partira logo seria libertada, a santa respondeu: 'Não cessarei de chorar; não deixarei de importunar a Vossa Misericórdia até vê-lo livre de suas dores'.

Uma vez que me referi a Santa Lutgarda, devo falar também da célebre aparição do Papa Inocêncio III? Reconheço que a leitura deste incidente me chocou, e gostaria de passá-lo olvidado pois relutei em pensar que um papa, e um papa assim, tivesse sido condenado a um Purgatório tão longo e terrível. Sabemos que Inocêncio III, que presidiu o célebre Concílio de Latrão em 1215, foi um dos maiores pontífices que já ocuparam a cátedra de São Pedro. Sua piedade e zelo o levaram a realizar grandes coisas da Igreja de Deus e da santa disciplina. Como, então, admitir que tal homem foi julgado com tanta severidade no Supremo Tribunal? Como conciliar esta revelação de Santa Lutgarda com a Divina Misericórdia? Quis, portanto, tratá-la como uma fantasia e procurei razões que apoiassem essa ideia. Mas descobri, pelo contrário, que a realidade desta aparição tem sido admitida pelos autores mais fidedignos, e nunca rejeitada por nenhum deles. Além disso, o biógrafo, Thomas de Cantimpre, é muito explícito e ao mesmo tempo muito reservado: 'Observe, leitor´' - escreve ele no final de sua narrativa - 'que foi da boca da própria piedosa Lutgarda que ouvi falar das faltas reveladas pelo defunto, e que omito aqui por respeito a tão grande papa'.

Além disso, considerando o evento em si, podemos encontrar alguma boa razão para questioná-lo? Não sabemos que Deus não faz distinção de pessoas – que até os papas aparecem diante do seu tribunal como os mais humildes dos fiéis – que todos os grandes e os humildes são iguais diante dele, e que cada um recebe de acordo com as suas obras? Não sabemos que aqueles que governam os outros têm uma grande responsabilidade e terão que prestar contas bastante severas? Judicium durissimum seu qui praesunt fietum julgamento mais severo será para aqueles que governam (Sb 6,6). É o Espírito Santo que o declara. Agora, Inocêncio III reinou por dezoito anos e durante os tempos mais turbulentos e, acrescentam os bolandistas, não está escrito que os julgamentos de Deus são inescrutáveis ​​e muitas vezes muito diferentes dos julgamentos dos homens? - Judicia tua abyssus multa (Sl 35,7). A realidade desta aparição não pode, então, ser razoavelmente questionada. Não vejo razão para omiti-la, visto que Deus não revela mistérios dessa natureza para nenhum outro propósito além de que eles sejam conhecidos para a edificação da sua Igreja.

O Papa Inocêncio III morreu em 16 de julho de 1216. No mesmo dia, apareceu a Santa Lutgarda em seu mosteiro em Aywieres, em Brabante. Surpresa ao ver o espectro envolto em chamas, ela perguntou quem seria e o que ele queria. 'Eu sou o Papa Inocêncio' - ele respondeu. 'Como é possível que você, nosso pai comum, esteja em tal estado?' 'É bem verdade: estou expiando três faltas que poderiam ter causado a minha perdição eterna. Graças à bem aventurada Virgem Maria, obtive o perdão, mas tenho que fazer expiação por eles. Infelizmente! Isto é terrível; e durará séculos se você não vier em meu auxílio. Em nome de Maria, que obteve para mim o favor de apelar para você, ajude-me'. Com essas palavras, desapareceu. Lutgarda anunciou a morte do papa às suas irmãs e todas juntas se dedicaram à oração e às obras penitenciais em favor da alma do augusto e venerado pontífice, cuja morte lhes foi confirmada algumas semanas depois por outra fonte.

Acrescentemos aqui um fato mais consolador, que encontramos na vida da mesma santa. Um pregador célebre, chamado John de Lierre, era um homem de grande piedade e bem conhecido da nossa santa. Ele havia feito um compromisso com ela, pelo qual mutuamente prometiam que aquele que morresse primeiro, com a permissão de Deus, deveria aparecer ao outro. João foi o primeiro a partir desta vida. Tendo empreendido uma viagem a Roma para tratar de certos assuntos de interesse dos religiosos, encontrou a morte entre os Alpes. 

Fiel à sua promessa, ele apareceu a Lutgarda no célebre claustro de Aywières. Ao vê-lo, a santa não teve a menor ideia de que ele estaria morto, e o convidou, de acordo com a Regra, a entrar no salão para que pudessem conversar. 'Não sou mais deste mundo' - respondeu ele - 'e venho aqui apenas em cumprimento da minha promessa.' Com essas palavras, Lutgarda caiu de joelhos e permaneceu por algum tempo bastante confusa. Então, erguendo os olhos para o seu abençoado amigo, perguntou: 'Por que você está vestido com tamanho esplendor? O que significa este manto triplo com o qual te vejo adornado'? 'A vestimenta branca' - respondeu ele - 'significa a pureza virginal, que sempre preservei; a túnica vermelha implica os trabalhos e sofrimentos que esgotaram prematuramente minhas forças e o manto azul, que cobre tudo, denota a perfeição da vida espiritual'. Ditas essas palavras, ele de repente deixou Lutgarda, que ficou dividida entre o arrependimento por ter perdido um amigo tão bom e a alegria que experimentara por causa de sua felicidade. 

São Vicente Ferrer, o célebre taumaturgo da Ordem de São Domingos, que pregou com tanta eloquência a grande verdade do Juízo de Deus, tinha uma irmã que não se comovia nem com as palavras e nem com o exemplo do seu santo irmão. Ela estava cheia do espírito do mundo, intoxicada com seus prazeres, e caminhou a passos rápidos em direção à sua eterna ruína. Entretanto, o santo rezou pela sua conversão, e sua oração foi finalmente respondida. A infeliz pecadora caiu mortalmente doente e, no momento da morte, voltando a si, fez a sua confissão com sincero arrependimento.

Alguns dias depois de sua morte, enquanto seu irmão celebrava o Santo Sacrifício, ela lhe apareceu no meio das chamas e presa dos mais intoleráveis ​​tormentos. 'Ai! meu querido irmão' - disse ela - 'estou condenada a sofrer esses tormentos até o dia do Juízo Final. Mesmo assim, você pode me ajudar. A eficácia do Santo Sacrifício é tão grande: ofereça para mim cerca de trinta missas, e assim posso esperar o resultado mais feliz'. O santo apressou-se a atender o seu pedido. Ele celebrou as trinta missas e, no trigésimo dia, viu sua irmã aparecer novamente cercada de anjos e subindo ao céu. Graças às virtudes do Sacrifício Divino, uma expiação de vários séculos foi reduzida a trinta dias.

Este exemplo nos mostra ao mesmo tempo que a duração das dores que uma alma pode incorrer e o poderoso efeito do Santo Sacrifício da Missa, quando Deus se agrada de aplicá-lo a uma alma. Mas esta aplicação, como todos os outros sufrágios, nem sempre se realiza ou, melhor dizendo, nem sempre se realiza na mesma plenitude.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)