sábado, 31 de agosto de 2019

REZAI PELAS ALMAS DO PURGATÓRIO!


'A minha vocação religiosa e sacerdotal é uma graça imensa que atribuo à minha cotidiana oração pelas Almas do Purgatório que, ainda menino, eu aprendi com minha mãe' (Beato Angelo D'Acri)

'Quando quero obter alguma graça de Deus, recorro às almas do Purgatório e sinto que sou atendida por causa de sua intercessão' (Santa Catarina de Bolonha)

'Caminhando pela rua, no tempo livre, rezo sempre pelas Almas do Purgatório. Estas santas Almas, com sua intercessão, me salvaram de muitos perigos da alma e do corpo' (São Leonardo do Porto Maurício)

'Nunca pedi graças às almas purgantes sem ser atendida; pelo contrário, aquelas que não pude obter dos espíritos celestes as obtive pela intercessão das Almas do Purgatório' (Santa Catarina de Gênova)

'Todos os dias ouço a Santa Missa pelas almas do Purgatório: a este piedoso costume eu devo tantas graças que, continuamente, recebo para mim e para meus amigos' (São Conrado Ferrini)

AS RAÍZES DOS SETE PECADOS CAPITAIS

Como ensina São Gregório Magno e, depois dele, São Tomás, os pecados capitais de vanglória ou vaidade, preguiça, inveja, ira, gula e luxúria não são os mais graves de todos, pois maiores são os de heresia, apostasia, desesperação e de ódio a Deus; mas são os primeiros a que se inclina nosso coração, levando-nos a nos afastar de Deus e a cometer outras faltas ainda mais graves.

O homem não chega à perversão absoluta de uma vez, mas pouco a pouco. Examinemos primeiro, em si mesma, a raiz dos sete pecados capitais. Todos eles se originam no amor desordenado de si mesmo ou egoísmo, que nos impede de amar a Deus sobre todas as coisas e inclina a nos apartarmos dele. É evidente que pecamos, isto é, que nos desviamos de Deus e nos afastamos dele cada vez que tendemos para um bem criado, indo contra a vontade divina.

Isto é a consequência fatal de um amor desordenado de nós mesmos, que vem a ser a fonte de todo pecado. Por conseguinte, não só é necessário moderar esse amor desordenado ou egoísmo, mas também é preciso mortificá-lo, para que o amor ordenado ocupe seu lugar. Enquanto o pecador em estado de pecado mortal se ama a si sobre todas as coisas, praticamente antepondo-se a Deus, o justo ama a Deus mais que a si e deve, além disso, amar-se em Deus e por Deus; amar seu corpo de tal maneira que sirva à alma, não lhe obstando a vida superior; amar a alma convidando-a a participar eternamente da vida divina; amar sua inteligência e vontade, de modo que participem mais e mais da luz e do amor de Deus. Este é o sentido profundo da mortificação do egoísmo, do amor e da vontade próprios, opostos à vontade de Deus.

O amor desordenado de nós mesmos leva à morte, como diz o Senhor: 'O que ama (desordenadamente) a sua vida, perdê-la-á; e quem aborrece (ou mortifica) a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna' (Jo 12, 25). Desse desordenado amor, raiz de todos os pecados, nascem as três concupiscências de que fala São João (I Jo 2, 16) quando diz: 'Porque tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, e concupiscência dos olhos, e soberba da vida; e isto não vem do Pai, mas do mundo'.

Observa Santo Tomás que os pecados carnais são mais vergonhosos que os espirituais porque nos rebaixam ao nível do animal; contudo, os espirituais, os únicos que se compartilham com o demônio, são mais graves, porque vão diretamente contra Deus e nos afastam dele. A concupiscência da carne é o desejo desordenado do que é ou parece útil à conservação do indivíduo ou da espécie e, deste amor sensual, provêm a gula e a luxúria. A concupiscência dos olhos é o desejo desordenado do que agrada a vista, o luxo, as riquezas, o dinheiro que nos proporciona os bens terrenos; dela nasce a avareza.

A soberba da vida é o desordenado amor da própria excelência e de tudo aquilo que pode ressaltá-la; quem se deixa levar pela soberba, erige-se a si em seu próprio deus, a exemplo de Lúcifer. Daí se vê a importância da humildade, que é virtude capital, tanto quanto o orgulho é fonte de todo pecado. São Gregório e Santo Tomás ensinam que a soberba é mais que um pecado capital: é a raiz da qual procedem mormente quatro pecados capitais: vaidade, preguiça espiritual, inveja e ira.

A vaidade é o amor desordenado de louvores e de honras; a preguiça espiritual se entristece pensando no trabalho requerido para santificar-se; a ira, quando não é uma indignação justificada e sim um pecado, é um movimento desordenado da alma que nos inclina a rechaçar violentamente o que nos desagrada, de onde se seguem as disputas, injúrias e vociferações. Estes pecados capitais, sobretudo a preguiça espiritual, a inveja e a ira engendram tristezas amargas que afligem a alma e são totalmente contrários à paz espiritual e ao contentamento, ambos frutos da caridade.

A prática generosa da mortificação dispõe a alma para outra purificação mais profunda que Deus mesmo realiza, com o fim de destruir completamente os germes de morte que ainda subsistam em nossa sensibilidade e faculdades superiores. Mas não basta considerar as raízes dos sete pecados capitais; é preciso analisar suas consequências. Como consequências do pecado, se entendem geralmente as más inclinações que os pecados deixam em nosso temperamento, mesmo depois de apagados pela absolvição. Entretanto, também pode entender-se como consequências dos pecados capitais os demais pecados que têm sua origem neles.

Os pecados capitais assim se chamam porque são um como princípio de muitos outros; temos, em primeiro, inclinação para eles e depois, por meio deles, para outras faltas às vezes mais graves. É dessa forma que a vanglória gera desobediência, jactância, hipocrisia, disputas, discórdia, afã de novidades, pertinácia. A preguiça espiritual conduz ao desgosto das coisas espirituais e do trabalho de santificação, em razão do esforço que exige, engendrando a malícia, o rancor ou a amargura contra o próximo, a pusilanimidade ante o dever, o desalento, a cegueira espiritual, o esquecimento dos preceitos, a busca do proibido.

Igualmente, a inveja ou desagrado voluntário do bem alheio, bem que temos como mal nosso, engendra o ódio, a maledicência, a calúnia, a alegria do mal alheio e a tristeza por seus triunfos. Por sua vez, a gula e a sensualidade geram outros vícios e podem conduzir à cegueira espiritual, ao endurecimento do coração, ao apego à vida presente até à perda da esperança da vida eterna, ao amor de si mesmo até ao ódio de Deus e à impenitência final.

Frequentemente, os pecados capitais são mortais. Podem existir de uma maneira muito vulgar e baixa, como em muitas almas em pecado mortal, ou bem podem também existir, nota São João da Cruz, em uma alma em estado de graça, como outros tantos desvios da vida espiritual. Por isso se fala às vezes da soberba espiritual, da gula espiritual, da sensualidade e da preguiça espiritual.

A soberba espiritual inclina, por exemplo, a fugir daqueles que nos dirigem reprimendas, ainda quando tenham autoridade para isso e no-las dirijam justamente; também pode levar-nos a guardar-lhes certo rancor em nosso coração. Quanto à gula espiritual, poderia fazer-nos desejar consolos sensíveis na piedade, até o ponto de buscarmos nela mais a nós mesmos que a Deus. É o orgulho espiritual a origem do falso misticismo.

Felizmente, diferentemente das virtudes, estes vícios não são conexos, ou seja, pode-se possuir uns sem os outros, e muitos são até contrários entre si: assim, não é possível ser avarento e pródigo ao mesmo tempo.  A enumeração de todos estes tristes frutos do exagerado amor de si deve levar-nos a um sério exame de consciência e nos ensina, ademais, que o terreno da mortificação é muito extenso, se quisermos viver uma vida cristã profunda.

O exame de consciência, longe de apartar-nos do pensamento de Deus, aponta-nos para ele. Deve-se inclusive pedir-lhe luz para enxergar um pouco a alma como o próprio Deus a vê, para enxergar o dia ou a semana que passaram como se os víssemos escritos no livro da vida, à maneira de como os veremos no dia do Juízo Final. Por isto temos de repassar cada noite, com humildade e contrição, as faltas cometidas de pensamento, palavra, ação e omissão.

No exame, deve-se evitar a minuciosa investigação das menores faltas, tomadas em sua materialidade, pois semelhante esforço poderia fazer-nos cair em escrúpulos e esquecer coisas mais importantes. Trata-se menos de uma completa enumeração das faltas veniais que da investigação e acusação sinceras do princípio de onde geralmente procedem. A alma não deve se deter em demasia na consideração de si mesma, deixando de olhar para Deus. Pelo contrário há de se perguntar, tendo os olhos fitos em Deus: como julgará Deus este dia ou semana que agora termina? Foi este dia meu ou de Deus? Busquei a Deus ou a mim mesmo?

Desse modo, sem turbação, a alma julgar-se-á desde um plano elevado, à luz dos preceitos divinos, tal como se julgará no último dia. Mas, como diz Santa Catarina de Sena, não separemos a consideração de nossas faltas do pensamento da infinita misericórdia. Olhemos nossa fragilidade e miséria ao lume da infinita bondade de Deus que nos alevanta. O exame, feito deste modo, longe de desalentar-nos, aumentará nossa confiança em Deus.

Por contraste, a visão de nossos pecados nos esclarece o valor da virtude. O que melhor nos revela o valor da justiça é a dor que a injustiça produz. A imagem da injustiça que cometemos e o pesar de tê-la cometido devem nos despertar a 'fome e sede de justiça'. Por contraste, é necessário: que a fealdade da sensualidade nos revele a beleza da pureza; que a desordem da ira e da inveja nos faça compreender o alto valor da mansidão e da caridade e que as aberrações da soberba nos ilustrem acerca da elevada sabedoria da humildade.

Peçamos a Deus inspirar-nos um santo aborrecimento do pecado, que nos separa da divina bondade, da qual tantos benefícios recebemos e esperamos para o porvir. Esse santo ódio do pecado não é, de certa forma, senão o outro lado do amor de Deus. É impossível amar profundamente a verdade sem detestar a mentira, amar de coração ao bem, e o soberano Bem que é Deus, sem que por sua vez detestemos o que nos separa de Deus.

A maneira de evitar a soberba é pensar com frequência nas humilhações do Salvador e pedir a Deus a virtude da humildade. Para reprimir a inveja, temos de rogar pelo próximo, desejando-lhe o mesmo bem que para nós desejamos. Aprendamos igualmente a reprimir os movimentos da ira, afastando-nos dos objetos que a provocam, trabalhando e falando com doçura. Esta mortificação é absolutamente indispensável.

Pensemos que temos que salvar nossa alma e que ao nosso redor há muito bem a se fazer, sobretudo na ordem espiritual. Não esqueçamos que devemos trabalhar pelo bem eterno dos demais e empregar, para consegui-lo, os meios que o Salvador nos ensinou: a morte progressiva do pecado, mediante o progresso nas virtudes e, principalmente, no amor de Deus.

(Excertos da obra 'As três idades da vida interior', do Pe. Garrigou-Lagrange)

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

SUMA TEOLÓGICA EM FORMA DE CATECISMO (XXXVII)

TERCEIRA PARTE

JESUS CRISTO

Único caminho para o homem voltar para Deus

I

O MISTÉRIO DE JESUS CRISTO OU DA ENCARNAÇÃO TEM POR FIM CONDUZIR O HOMEM PARA DEUS

Que significa o mistério incompreensível da Encarnação?
Que a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Verbo e Filho único de Deus, unido desde toda a Eternidade ao Pai e ao Espírito Santo na indivisão de Deus, criador e governador soberano do universo, se encarnou e nasceu da Santíssima Virgem Maria, viveu a nossa vida mortal, evangelizou o povo judeu da Palestina ao qual havia sido pessoalmente enviado por seu Pai; foi desprezado, vendido e entregue ao governador romano Pôncio Pilatos, condenado à morte, crucificado e sepultado; desceu aos infernos, e ao terceiro dia ressuscitou dentre os mortos; subiu aos céus quarenta dias depois, e está assentado à direita de Deus Pai, donde governa a Igreja por Ele fundada, à qual enviou o seu Espírito, que é também o do Pai, santificando-a com os sacramentos da graça e dispondo-a para a segunda vinda no fim dos tempos; então julgará os vivos e os mortos, depois de os ressuscitar; e estabelecerá a separação definitiva entre os bons, que com Ele gozarão eternamente as delícias de seu Pai, e os maus, que feridos com a sua maldição, receberão digno castigo nos suplícios do fogo eterno.

II

CONVENIÊNCIA, NECESSIDADE E HARMONIA DA ENCARNAÇÃO

Harmoniza-se bem a Encarnação com o que sabemos a respeito de Deus?
Sim, Senhor; porque sabemos que Deus é o bem por essência; é próprio e característico do bem o comunicar-se e Deus não pode comunicar-se às criaturas de modo mais inefável e sublime que no mistério da Encarnação (1,1)*.

Foi necessária a Encarnação do Filho de Deus?
Considerada em si mesmo, não Senhor; porém, suposto que o gênero humano caiu do primitivo estado de justiça original; se se queria reabilitá-lo e, sobretudo, dar satisfação completa e abundante por aquele pecado, era absolutamente indispensável que um Deus- Homem tomasse a seu cargo a empresa (1, 2).

Logo, o motivo da Encarnação foi remir os homens do pecado?
Sim, Senhor (I, 2, 3).

Nestas condições, por que não se encarnou o Filho de Deus, desde o princípio da queda dos nossos primeiros pais?
Porque era necessário que o homem reconhecesse a sua desdita e a necessidade de um Deus Salvador e para dar tempo aos anúncios e conveniente preparação ou apresto de sua vinda (1, 5, 6).

Em que consiste essencialmente o mistério da Encarnação?
Na união substancial e indissolúvel das naturezas divina e humana em unidade de pessoa divina, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, conservando cada natureza todas as suas propriedades (II, 1,6).

Por que se encarnou a pessoa do Filho com preferência à do Pai e à do Espírito Santo?
Porque, sendo o Filho, Verbo de Deus, e simbolizando o Verbo, por apropriação, a ciência e a sabedoria divinas, pelas quais todas as coisas foram feitas, a Ele parece que pertencia reparar os estragos que na natureza humana havia produzido o pecado; e, além disso, porque, procedendo do Pai, Este podia enviá-Lo e Ele por sua vez enviar o Espírito Santo (III, 8).

III

DO QUE JESUS CRISTO SE APROPRIOU OU TOMOU NO MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO

Que significam as expressões: o Filho de Deus se encarnou, o Verbo se fez carne, se fez homem, etc.?
Que assumiu e se apropriou da nossa natureza humana, concreta, individual, tal como se encontra nos descendentes do primeiro homem depois do pecado, para incorporá-la à pessoa divina (IV, 1-6).

Logo no Verbo Encarnado há indivíduo humano?
De modo algum; há natureza individual, não indivíduo ou pessoa humana, porque esta natureza está individualizada na Pessoa do Verbo, o Filho de Deus (IV, 3).

A natureza humana, que o Filho de Deus assumiu, consta dos dois elementos essenciais que integram a de todos os outros homens?
Sim, Senhor (V, 1-4).

Logo, o Filho de Deus Encarnado tem corpo, carne, ossos, membros, sentidos e órgãos, como nós?
Sim, Senhor (V, 1, 2).

Tem, como nós, alma dotada de inteligência e vontade com as demais faculdades? 
Sim, Senhor; tem alma exatamente igual a que descrevemos no estudo do homem (V, 3, 4).

O Filho de Deus incorporou simultaneamente todos os elementos que integram a natureza humana individual?
Sim, Senhor; porém com certa ordem (VI, 1-6).

Em que consiste esta ordem?
Em que tomou o corpo mediante a alma, e a alma e suas potências mediante o espírito e o corpo, alma e espírito mediante a natureza humana por eles formada (VI, 1-5).

A união da natureza humana com a pessoa do Verbo realizou-se direta e imediatamente, sem intervenção, nem interposição de alguma coisa criada?
Sim, Senhor; porque o fim da união é a comunicação do ser divino à natureza humana (VI, 6).

referências aos artigos da obra original

('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

28 DE AGOSTO: SANTO AGOSTINHO DE HIPONA


'...Inquieto está o nosso coração enquanto não repousar em Ti'

Dia 28 de agosto é a festa de um dos grandes santos da Igreja, um dos fundadores da chamada Patrística (a fase inicial da formação da Teologia Cristã e seus dogmas). Santo Agostinho nasceu a 13 de novembro de 354, na pequena cidade de Tagaste, perto de Hipona, na Numídia (atual Argélia), filho de Patrício e Mônica (santa da Igreja Católica, cuja festa é celebrada em 27 de agosto). Da vida promíscua ao desvario da sua inclusão em seitas maniqueístas, Santo Agostinho experimentou desde a indiferença até a descrença completa nas coisas de Deus. A resposta da sua mãe, profundamente dolorosa diante a perspectiva da perda eterna da alma do filho amado, foi sempre a mesma: oração, oração, oração!

E a conversão de Agostinho foi lenta e profunda: no ano de 382, em Milão, então com 32 anos de idade, o santo foi finalmente batizado, junto com um amigo e o seu filho Adeodato (que morreria pouco tempo depois) por Santo Ambrósio. E que conversão! Sobre o tapete dos pecados passados, da vida desregrada da juventude (que descreveria com imenso desgosto em sua obra máxima ‘Confissões’), nasceria um santo dedicado por inteiro à glória de Deus, pregando como sacerdote e, mais tarde, como bispo de Hipona, que a verdadeira fonte da santidade nasce, renasce e se fortalece na humildade. Combateu com tal veemência as diversas frentes de heresias do seu tempo, incluindo o arianismo e o maniqueísmo, que foi alcunhado de Escudo da Fé e Martelo dos Hereges. Santo Agostinho, Doutor da Igreja e Defensor da Graça, morreu em 28 de agosto de 430, aos 76 anos de idade.

Excertos da Obra: 'Confissões', de Santo Agostinho:

'Amo-te, Senhor, com uma consciência não vacilante, mas firme. Feriste o meu coração com a tua palavra, e eu amei-te. Mas eis que o céu, e a terra, e todas as coisas que neles existem me dizem a mim, por toda a parte, que te ame, e não cessam de o dizer a todos os homens, de tal modo que eles não têm desculpa. Tu, porém, compadecer-te-ás mais profundamente de quem te compadeceres,e concederás a tua misericórdia àquele para quem fores misericordioso: de outra forma, é para surdos que o céu e a terra entoam os teus louvores. Mas que amo eu, quando te amo? Não a beleza do corpo, nem a glória do tempo, nem esta claridade da luz, tão amável a meus olhos, não as doces melodias de todo o gênero de canções, não a fragrância das flores, e dos perfumes, e dos aromas, não o maná e o mel, não os membros agradáveis aos abraços da carne. Não é isto o que eu amo, quando amo o meu Deus, E, no entanto, amo uma certa luz, e uma certa voz, e um certo perfume, e um certo alimento, e um certo abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume, alimento, abraço do homem interior que há em mim, onde brilha para a minha alma o que não ocupa lugar, e onde ressoa o que o tempo não rouba, e onde exala perfume o que o vento não dissipa, e onde dá sabor o que a sofreguidão não diminui, e onde se une o que o que a saciedade não separa. Isto é o que eu amo, quando amo o meu Deus'.

'Aterrorizado com os meus pecados e com o peso da minha miséria, tinha considerado e meditado no meu coração fugir para a solidão, mas tu proibiste-me e encorajaste-me, dizendo: Cristo morreu por todos, a fim de que os que vivem já não vivam para si, mas para aquele que morreu por eles. Eis, Senhor, que eu lanço em ti a minha inquietação, a fim de que viva, e considerarei as maravilhas da tua Lei. Tu conheces a minha incapacidade e a minha fragilidade: ensina-me e cura-me. O teu Unigênito, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência, redimiu-me com o seu sangue. Não me caluniem os soberbos, porque penso no preço da minha redenção, e como, e bebo, e distribuo, e, pobre, desejo saciar-me dele entre aqueles que dele se alimentam e saciam: e louvam o Senhor aqueles que o procuram'.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

FOTO DA SEMANA

'Uma mulher virtuosa, quem pode encontrá-la? Superior ao das pérolas é o seu valor. Confia nela o coração de seu marido, e jamais lhe faltará coisa alguma. Ela lhe proporciona o bem, nunca o mal, em todos os dias de sua vida' (Pv 31, 10-12)

COMPÊNDIO DE SÃO JOSÉ (XIX)


91. Se São José é cultuado nas igrejas, o que dizer de sua presença na Basílica de São Pedro no Vaticano? 

Se São José foi proclamado por Pio IX, em 1870, Patrono da Igreja Universal com o Decreto Quemadmodum Deus e se o mesmo Papa, em 1847, tinha estendido a Festa do Patrocínio para toda a Igreja Universal com o Decreto Inclytus Patriarcha Joseph, quis também o Papa João XXIII, em 19 de março de 1963, que no maior templo do cristianismo houvesse um altar com sua imagem para acender ainda mais a devoção a São José, Protetor da Santa Igreja e também do Concílio Vaticano II. Além desta presença central na basílica vaticana, encontramos um mosaico de 1647 representando o 'sonho de São José', onde o Anjo revela a José a prodigiosa concepção de Maria por obra do Espírito Santo. Também na chamada 'Capela do Crucifixo', foi colocado em 19 de março de 1851 uma tela que representa São José com o Menino Jesus nos braços. Encontramos também na parte esquerda do Colonnato del Bernini, quase no início da praça de São Pedro, uma belíssima estátua de São José representando um homem vigoroso, com os olhos voltados para os céus, com a mão direita sobre o peito e tendo na esquerda um bastão florido. Uma outra representação no átrio da basílica apresenta a 'morte de São José'. Tudo isto mostra a necessidade de dar a São José um lugar de destaque, correspondente à sua dignidade. Digno de consideração é o fato que no altar de São José, 'Patrono da Igreja Universal', é celebrada diariamente uma missa para a paz. 

92. Dentre as várias representações que a arte fez sobre São José, quais são as que chamam mais atenção? 

Há algumas raras iconografias sobre São José, não tanto pela beleza da arte, mas pelo motivo representado, como aquela que enfoca José ensinando a Torá ou a Lei a Jesus, fato raro, porém em perfeita harmonia com a tarefa que a Sagrada Escritura e a tradição hebraica asseguram ao pai, ou seja, de ensinar ao filho as leis divinas. É fácil encontrar José representado entre as suas ferramentas na carpintaria, porém é raro vê-lo como um 'instruído', um conhecedor das Escrituras. Esta nova visão pela arte começou no Renascimento (1450-1600), onde ele é representado com um lírio na mão ou lendo. Desta forma, o bastão com o qual se identificava o nosso santo não foi a única forma que os artistas encontraram para representá-lo.

93. Ao representar São José lendo um livro, os artistas abandonaram as características onde ele é representado com o bastão florido, o lírio ou no trabalho da carpintaria? 

Não. Encontramos diversas obras onde São José é reconhecido pelo lírio na mão direita e tendo um livro na mão esquerda, ou ainda representado sentado ao lado de sua mesa de carpinteiro cheia de ferramentas e concentrado, à luz de uma vela, na leitura de um livro. Um outro afresco de 1524 representa a Virgem com o Menino à esquerda de José com uma auréola, tendo um ramo florido na mão direita e de novo um livro fechado na mão esquerda. Por fim, encontra-se na National Gallery de Londres uma obra atribuída a João Batista Moroni, morto em 1578, onde José é representado como jovem com um turbante no lugar da auréola, segurando na mão direita um ramo florido e na esquerda um livro fechado. Tudo isso indica que, embora os artistas quiseram exprimir outros particulares da vida de José, não esqueceram de realçar conjuntamente aqueles que lhes foram mais característicos. 

94. Podemos afirmar que a arte sacra evolui em relação a São José na medida em que a Teologia e a devoção josefina também evoluíram? 

Em certo sentido sim, pois nos séculos em que a teologia de São José estava ainda em germe, a figura do nosso santo é enfocada no conjunto das cenas evangélicas da infância de Jesus; depois, na medida em que as reflexões teológicas se concentram sobre ele, a arte lentamente começa a representá-lo intimamente ligado à Sagrada Família, onde vem reconhecida a sua missão de esposo e chefe e em atitudes paternas para com Jesus. Um bom exemplo disto é o quadro de Gabriel Wüger de 1892 onde São José é representado com um rosto jovem, com uma farta barba e cabelo, olhar sereno e voltado para o Menino, o qual é sustentado sem dificuldades no seu braço esquerdo, enquanto Jesus tem a mão apoiada no peito de José e com a outra acaricia o seu rosto num gesto de delicadeza, confiança, respeito, amor e admiração. Portanto, evidencia fortemente a paternidade de José. Por outro lado, sua cabeça é ornada com uma auréola assinalando o prêmio que recebeu de Deus pelas suas virtudes e também para realçar sua realeza humana, descendente de Davi, de estirpe real, a qual José transmitiu a Jesus dando-lhe o título de 'Filho de Davi'. José é ilustrado ainda neste quadro com o bastão na mão direita, símbolo de sua eleição divina e de sua autoridade: o bastão florido com um ramo de amendoeira indicam a sua vigilância sobre a Sagrada Família. O lírio encontra-se aos pés de São José, perto das ferramentas de trabalho, para indicar que a virtude de sua castidade e a fadiga diária foram os instrumentos com os quais ele exerceu sua paternidade. 

95. A arte moderna continua acompanhando a evolução da teologia josefina? 

Podemos dizer que sim e um exemplo significativo disso encontra-se no grandioso afresco que ocupa a parte central da capela da Casa Geral dos Oblatos de São José em Roma, executado pelo pintor romano Pagliardini no ano de 1960, no clima de preparação do Concilio Vaticano II, cujo tema é expresso no afresco com a frase: quasi arcus refulget Joseph - José resplandece como um arco-íris, uma expressão acomodada do livro do Eclesiástico (Eclo 50,8), num elogio ao sumo sacerdote Simeão II. O arco-íris é um símbolo conhecido na Bíblia como sinal de aliança de Deus com o povo depois do dilúvio. A presença de São José na história da salvação dá-se no momento em que Deus faz pessoalmente a sua aliança com os homens através do dom de seu Filho; por isso, José ocupa o centro da cena sustentando o Filho de Deus com seu braço vigoroso, tendo na mão esquerda o lírio, símbolo de sua castidade. O Menino se agarra confiante em José que manifesta uma expressão de tranquila segurança. Dois Anjos seguram uma faixa com a frase: Te Joseph celebrent agmina coelitum - 'te celebrem, ó José, as cortes celestes', um convite às potestades celestes para festejarem José, o arco-íris da paz. À esquerda uma outra frase: Protector Sanctae Ecclesiae - Protetor da Santa Igreja e o espaço é ocupado por João XXIII, apresentando a São José a Igreja representada pela Basílica de São Pedro, ele que o declararia, depois, em 19 de março de 1961, o Protetor do Concílio Vaticano II. O quadro apresenta ainda outras representações referentes ao patrocínio de São José sobre a Congregação dos Oblatos de São José. Esta obra de notável valor artístico indica a consonância da arte com a atual teologia josefina.

('100 Questões sobre a Teologia de São José', do Pe. José Antonio Bertolin, adaptado)

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

SOBRE O ANIQUILAMENTO INTERIOR

Quando nos falam de renunciarmos a nós mesmos, de aniquilar-nos; quando nos dizem ser esse o fundo da moral cristã, consistir nisso a adoração em espírito e verdade, tal palavra nos parece dura e até injusta: não queremos ouvi-la e repelimos quem no-lo prega da parte de Deus. Convençamo-nos, uma vez por todas, de que esse preceito nada de injusto encerra e na prática é mais suave do que pensamos. Em seguida, humilhemo-nos se nos faltar coragem para pô-lo em prática e, ao invés de condená-lo, condenemos a nós mesmos.

Que nos pede o Senhor, ordenando que nos aniquilemos? Pede fazermos justiça a nós mesmos, colocarmo-nos em nosso lugar e reconhecermo-nos tais quais somos... Tudo quanto possuo, tudo quanto sou, não pertence propriamente a mim; que só tenho de meu o nada e a quem nada se pode tirar. Se assim encarássemos, sempre do lado de Deus e jamais do nosso, tudo que nos acontece, não seríamos tão melindrosos, tão sensíveis, tão sujeitos a nos queixarmos e irritarmos. Toda a desordem vem sempre de supormos que somos alguma coisa, de nos arrogarmos direitos que nos falecem, de em tudo começarmos sempre por nos considerarmos diretamente e não prestarmos atenção aos direitos e aos interesses de Deus, os únicos lesados no que nos concerne.

Confesso que isso é de prática muito difícil e para consegui-lo faz-se mister renunciarmos, absoluta e completamente, a nós mesmos. Mas, em suma, é justo e a razão coisa alguma pode opor. Deus, portanto, nada exige de nós que não seja razoável, quando a seu respeito e a respeito do próximo quer que nos portemos como nada sendo, nada tendo, nada pretendendo... Acrescento que semelhante forma de aniquilamento, contra a qual a natureza tanto se insurge e clama, ao invés de tão penosa como imaginamos, é até suave, porque antes de tudo Jesus Cristo a declarou tal: 'Tomai sobre vós o meu jugo', disse Ele; 'que é doce e leve'. Por mais pesado que seja esse jugo, Deus o suaviza para os que o tomam de boa vontade e consentem em carregá-lo por seu amor. O amor não nos impede de sofrer, mas faz como que amemos o sofrimento e torna-o preferível e a todos os prazeres.

A recompensa presente do aniquilamento é a paz do coração, a calma das paixões, a cessação de todas as agitações do espírito, das murmurações, das revoltas interiores. Vejamos, em pormenores, a prova disto. Qual é o maior mal do sofrimento? Não é a própria dor, é a revolta, a sublevação interior que a acompanha. A alma aniquilada sofreria todos os males imagináveis sem perder o repouso conexo ao seu estado: é fato de experiência. Custa-nos conseguir o nosso aniquilamento, temos que fazer grandes esforços sobre nós mesmos: mas também gozamos da paz na proporção das vitórias alcançadas.

O hábito de renunciarmos a nós mesmos, de não atendermos ao nosso eu, torna-se cada dia mais fácil; admiramo-nos de que não nos faça mais sofrer, no fim de certo tempo, aquilo que nos parecia intolerável, assustava a imaginação, sublevava as paixões e punha a natureza em estado violento. Nos desprezos, nas calúnias e humilhações, o que no-las torna tão duras de suportar é o nosso orgulho; é o nosso desejo de ser estimados, considerados, tratados com certas atenções; é o pavor que temos das zombarias e do desprezo do próximo. Eis o que nos agita e enche de indignação, o que nos torna a vida amarga e insuportável. Trabalhemos com afinco para aniquilar-nos; não demos alimento nenhum ao orgulho, deixemos caírem todos os artifícios de estima e amor próprio, aceitemos interiormente as pequenas mortificações que se apresentarem.

Pouco a pouco chegaremos a não mais nos inquietarmos com o que se pensa e diz de nós, nem com o modo pelo qual nos tratam. Um morto nada sente; para ele não há honra nem reputação; os louvores e as injúrias lhe são indiferentes. A maior parte dos sofrimentos e desgostos por que passamos no serviço de Deus provém de não estarmos bastante aniquilados em sua presença, de conservarmos certa vida própria no meio dos nossos exercícios, de imiscuir-se um secreto orgulho em nossa devoção. E por isso não somos indiferentes às consolações e à sua falta; sofremos quanto Deus parece afastar-se de nós; esgotamo-nos em desejos e esforços tendentes a fazê-lo voltar; ficamos abatidos e desolados, se o afastamento perdura muito. 

Por isso também temos falsos alarmes a respeito do nosso estado. Afigura-se-nos estarmos mal com Deus porque Ele nos priva de algumas doçuras sensíveis. Julgamos más as nossas comunhões, porque as fazemos sem gosto, a mesma coisa acontecendo quanto às nossas leituras, orações e outras práticas. Sirvamos a Deus com espírito de aniquilamento; sirvamo-lo por Ele e não em atenção a nós; sacrifiquemos os nossos interesses à sua glória e ao seu bel-prazer; então, estaremos sempre contentes com o seu modo de tratar-nos, persuadidos de que nada merecemos e de ser imensa a bondade de sua parte, não digo aceitando, porém suportando os nossos serviços.

Nas grandes tentações contra a pureza, a fé e a esperança, o que há de mais penoso para nós não é precisamente o temor de ofender a Deus, senão o medo de perder-nos, ofendendo-o. É o nosso interesse que nos ocupa muito mais do que a sua glória. Eis a razão de ter um confessor tanta dificuldade em tranquilizar-nos e reduzir-nos à obediência. Cremos que ele nos engana, transvia e perde, porque nos obriga a deixar de lado as nossas vãs apreensões. Aniquilemos o nosso conceito; não julguemos por nós mesmos. Encontraremos a paz e paz perfeita, no esquecimento total de nós mesmos. Nada há no céu, na terra, nem do inferno, capaz de perturbar a alma verdadeiramente aniquilada.

(Excertos da obra 'Manual das Almas Interiores', do Pe. Grou, 1932)

domingo, 25 de agosto de 2019

PÁGINAS COMENTADAS DOS EVANGELHOS DOS DOMINGOS

Filho, realiza teus trabalhos com mansidão e serás amado mais do que um homem generoso. Na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade e assim encontrarás graça diante do Senhor (Eclo 3, 19-20)

sábado, 24 de agosto de 2019

IMAGINARIUM

(adaptado de arquivo original publicado no blog Senza Pagare)

28 DE AGOSTO: SANTO AGOSTINHO DE HIPONA


"...Inquieto está o nosso coração enquanto não repousar em Ti."

Dia 28 de agosto é a festa de um dos grandes santos da Igreja, um dos fundadores da chamada Patrística (a fase inicial da formação da Teologia Cristã e seus dogmas). Santo Agostinho nasceu a 13 de novembro de 354, na pequena cidade de Tagaste, perto de Hipona, na Numídia (atual Argélia), filho de Patrício e Mônica (santa da Igreja Católica, cuja festa é celebrada em 27 de agosto). Da vida promíscua ao desvario da sua inclusão em seitas maniqueístas, Santo Agostinho experimentou desde a indiferença até a descrença completa nas coisas de Deus. A resposta da sua mãe, profundamente dolorosa diante a perspectiva da perda eterna da alma do filho amado, foi sempre a mesma: oração, oração, oração!

E a conversão de Agostinho foi lenta e profunda: no ano de 382, em Milão, então com 32 anos de idade, o santo foi finalmente batizado, junto com um amigo e o seu filho Adeodato (que morreria pouco tempo depois) por Santo Ambrósio. E que conversão! Sobre o tapete dos pecados passados, da vida desregrada da juventude (que descreveria com imenso desgosto em sua obra máxima ‘Confissões’), nasceria um santo dedicado por inteiro à glória de Deus, pregando como sacerdote e, mais tarde, como bispo de Hipona, que a verdadeira fonte da santidade nasce, renasce e se fortalece na humildade. Combateu com tal veemência as diversas frentes de heresias do seu tempo, incluindo o arianismo e o maniqueísmo, que foi alcunhado de Escudo da Fé e Martelo dos Hereges. Santo Agostinho, Doutor da Igreja e Defensor da Graça, morreu em 28 de agosto de 430, aos 76 anos de idade.

Excertos da Obra: 'Confissões', de Santo Agostinho:

'Amo-te, Senhor, com uma consciência não vacilante, mas firme. Feriste o meu coração com a tua palavra, e eu amei-te. Mas eis que o céu, e a terra, e todas as coisas que neles existem me dizem a mim, por toda a parte, que te ame, e não cessam de o dizer a todos os homens, de tal modo que eles não têm desculpa. Tu, porém, compadecer-te-ás mais profundamente de quem te compadeceres,e concederás a tua misericórdia àquele para quem fores misericordioso: de outra forma, é para surdos que o céu e a terra entoam os teus louvores. Mas que amo eu, quando te amo? Não a beleza do corpo, nem a glória do tempo, nem esta claridade da luz, tão amável a meus olhos, não as doces melodias de todo o gênero de canções, não a fragrância das flores, e dos perfumes, e dos aromas, não o maná e o mel, não os membros agradáveis aos abraços da carne. Não é isto o que eu amo, quando amo o meu Deus, E, no entanto, amo uma certa luz, e uma certa voz, e um certo perfume, e um certo alimento, e um certo abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume, alimento, abraço do homem interior que há em mim, onde brilha para a minha alma o que não ocupa lugar, e onde ressoa o que o tempo não rouba, e onde exala perfume o que o vento não dissipa, e onde dá sabor o que a sofreguidão não diminui, e onde se une o que o que a saciedade não separa. Isto é o que eu amo, quando amo o meu Deus'.

'Aterrorizado com os meus pecados e com o peso da minha miséria, tinha considerado e meditado no meu coração fugir para a solidão, mas tu proibiste-me e encorajaste-me, dizendo: Cristo morreu por todos, a fim de que os que vivem já não vivam para si, mas para aquele que morreu por eles. Eis, Senhor, que eu lanço em ti a minha inquietação, a fim de que viva, e considerarei as maravilhas da tua Lei. Tu conheces a minha incapacidade e a minha fragilidade: ensina-me e cura-me. O teu Unigênito, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência, redimiu-me com o seu sangue. Não me caluniem os soberbos, porque penso no preço da minha redenção, e como, e bebo, e distribuo, e, pobre, desejo saciar-me dele entre aqueles que dele se alimentam e saciam: e louvam o Senhor aqueles que o procuram'.

ORAÇÃO: UBI CARITAS

Ubi Caritas é uma oração intimamente associada à Comunhão Eucarística, sendo parte integrante das antífonas comumente cantadas durante as cerimônias de exposição pública do Santíssimo Sacramento e, particularmente, da cerimônia de Lava-Pés na Quinta-feira Santa. A tradição recente alterou a primeira linha da oração original de Ubi caritas est vera ('onde a caridade é verdadeira') para Ubi caritas et amor ('onde a caridade e o amor').


Ubi caritas et amor, Deus ibi est.
Congregavit nos in unum Christi amor.
Exultemus, et in ipso iucundemur.
Timeamus, et amemus Deum vivum.
Et ex corde diligamus nos sincero.

Ubi caritas et amor, Deus ibi est.
Simul ergo cum in unum congregamur:
Ne nos mente dividamur, caveamus.
Cessent iurgia maligna, cessent lites.
Et in medio nostri sit Christus Deus.

Ubi caritas et amor, Deus ibi est.
Simul quoque cum beatis videamus,
Glorianter vultum tuum, Christe Deus:
Gaudium quod est immensum, atque probum,
Saecula per infinita saeculorum. Amen.

***********************

Onde o amor e a caridade, Deus aí está.
Congregou-nos num só corpo, o amor de Cristo.
Exultemos, pois e nele jubilemos.
Ao Deus vivo nós temamos, mas amemos
E sinceros, uns aos outros, nos queiramos.

Onde o amor e a caridade, Deus aí está.
Todos juntos, num só corpo congregados,
pela mente não sejamos separados.
Cessem rixas. cessem lutas, divisões,
E esteja, em nosso meio, Cristo Deus.

Onde o amor e a caridade, Deus aí está.
Junto, um dia, com os eleitos nós vejamos
Tua face gloriosa, Cristo Deus:
Gáudio puro que é imenso e que ainda vem,
Pelos séculos dos séculos. Amém.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

DA PRÁTICA DA CARIDADE PELO EXEMPLO E ORAÇÃO

1. O melhor exercício de caridade é ter zelo pelo bem espiritual do próximo. Quanto a alma é superior ao corpo, tanto a caridade que se exerce com a alma do próximo vale mais diante de Deus do que a que se exerce com o corpo. Esta caridade se exerce em primeiro lugar pela correção daqueles que pecam. Quem converte um pecador, salva não só o seu irmão, senão também a si mesmo porque Deus, por essa caridade, lhe perdoará todos os pecados, como escreve São Tiago. 

Pelo contrário, diz Santo Agostinho, que aquele que vê seu próximo se perder, irando-se contra seu irmão ou maltratando-o com injúrias, e deixa de adverti-lo, com seu silêncio torna-se pior do que o outro com suas afrontas. Não vos escuseis por falta de capacidade. Para corrigir, vos responde São João Crisóstomo, é mais necessária a caridade do que a sabedoria. Fazei a correção no tempo oportuno com caridade e doçura, e vos saireis bem. Se sois superiora [o texto foi dirigido originalmente à orientação espiritual de religiosas], estais obrigada a fazê-la por ofício; se o não sois, estais obrigada por caridade, sempre que houver esperança de bom resultado. Quem visse um cego caminhar para um precipício, não seria cruel, se o não avisasse para livrá-lo da morte temporal? 

Muito mais cruel é quem, podendo livrar sua irmã da morte eterna, por negligência deixa de fazê-lo. Quando pois julgardes prudentemente que a vossa correção será inútil, procurai, ao menos, advertir secretamente a superiora ou outra que possa remediar o caso. Não insteis em dizer: 'Este não é o meu ofício, não quero ser intrometida'. Esta foi a resposta de Caim, que assim dizia: 'Sou eu, pois, guarda de meu irmão?' Cada um está obrigado a impedir a ruína do próximo, quando pode; pois diz o Sábio: Deus encarregou a cada homem de zelar pelo bem de seu próximo (Ecl 17, 12).

2. São Filipe Nery diz que, quando se trata de socorrer o próximo, principalmente nas suas necessidades espirituais, Deus se compraz de ver-nos, se preciso for, deixar a oração. Um dia, Santa Gertrudes desejava entreter-se em orar, quando tinha que fazer uma obra de caridade; e o Senhor lhe disse: 'Dize-me Gertrudes, que coisa quereis? Quereis que eu te sirva ou queres me servir?' Dizia São Gregório: 'Se quereis ir ter com Deus, não vos apresenteis sós diante dele'. O mesmo dizia Santo Agostinho: 'Se amais a Deus, atrai todos os homens ao seu amor'. 

Se, pois, amais a Nosso Senhor, deveis esforçar-vos para não ser a única a amá-lo, mas procurai arrastar ao seu amor todas as criaturas, os vossos parentes, as pessoas com quem tratais, e sobretudo as vossas irmãs. Ah! uma santa religiosa pode santificar um convento todo, com suas palavras e com seus exemplos, fazendo nesta intenção todos os seus atos de piedade, e induzindo as outras a fazer o mesmo que ela. Com isto, não tenhais escrúpulo de vanglória: essas ações que nada têm de extraordinário, mas convêm a toda religiosa que se aplica à perfeição, como é obrigada, devem fazer-se também no intuito de dar bom exemplo e atrair mais a Deus as irmãs; pois ensinou Jesus Cristo: 'A vossa luz brilhe diante dos homens, para que vejam as vossas boas ações e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus (Mt 5, 16). Assim comungar frequentemente, mostrar-se piedosa, mortificada, exata na observância das regras, aplicada à oração, para dar bom exemplo às outras, não é ato de vaidade mas de caridade muito agradável a Deus. 

3. Procurai, portanto, auxiliar a todos, quanto for possível, com palavras, obras, e sobretudo com as vossas orações. Todas as esposas de Jesus Cristo devem zelar a sua honra, como ele mesmo exigiu de Santa Teresa, quando a constituiu sua esposa. Se uma Esposa de Jesus Cristo não toma a peito os interesses de sua glória, quem o fará? Todos conhecem a promessa feita por Nosso Senhor de ouvir a quem pedir qualquer coisa a seu Eterno Pai em seu nome (Jo 16, 23). Muitos doutores, apoiados na autoridade de São Basílio, ensinam que essa promessa vale também para todas as pessoas por quem se pede, contanto que elas não ponham nenhum óbice positivo ao efeito da oração. Sendo assim nas orações comuns, nas ações de graças depois da comunhão e nas visitas ao Santíssimo Sacramento, nunca deixeis de recomendar a Deus os pobres pecadores, os infiéis, os hereges e todos os outros que vivem afastados de Deus. 

Ó quanto agrada a Jesus Cristo ser rogado por suas esposas pelos pecadores! Ele mesmo disse um dia à venerável Soror Serafina de Capri: 'Ajuda-me, filha, a salvar almas com tuas orações'. De modo semelhante, disse um dia a Santa Maria Madalena de Pazzi: 'Vês, Madalena, como os cristãos estão de braços com o demônio? Se os meus eleitos os não livrassem com suas orações, seriam devorados'.  Pelo que a santa assim falava às suas monjas: 'Irmãs, Deus nos separou do mundo não só para que cuidássemos do nosso bem espiritual, senão também para que trabalhássemos pelos pecadores'. Outra vez, lhes dizia: 'Minhas irmãs, nós temos de dar contas por tantas almas perdidas'. 

4.  Não vos esqueçais de orar também pelas almas do purgatório. A caridade nos aconselha e até nos obriga, como diz um douto autor, a orar por essas almas santas que tanto precisam de nossas orações.  São Tomás ensina que a caridade cristã se estende não só aos vivos, mas também a quantos morreram em estado de graça. Assim como somos obrigados a socorrer o nosso próximo durante a vida, quando tem necessidade do nosso auxílio, assim também devemos socorrer aquelas almas prisioneiras. As penas que elas padecem, acrescenta o doutor angélico, ultrapassam a todas as penas desta vida; e necessitam do nosso adjutório, porque por si mesmas não se podem ajudar. 

Assim o declarou um monge da Ordem de Cister que, aparecendo, depois da morte, ao sacristão do seu mosteiro, lhe disse: 'Socorre-me com tuas orações, porque por mim mesmo nada posso obter'. Ora, se todos os fiéis estão obrigados a orar pelas almas do purgatório, tanto mais devem socorrê-las com suas orações as religiosas recolhidas por Deus aos mosteiros, que todos são casa de oração. Não deixeis, pois, passar nenhum dia, sem recomendar a Deus em todas as vossas orações às benditas almas, esposas de Nosso Senhor que pedem o vosso auxílio. Sede generosas com elas, oferecendo-lhes alguns jejuns e outras mortificações. Sobretudo aplicai-lhes as missas que ouvirdes, pois este é o grande sufrágio por essas santas almas, que não sabem ser ingratas. Ainda que do fundo do seu cárcere, alcançarão a Deus para vós grandes graças e, quando entrarem no paraíso, ainda maiores.

(Excertos da obra 'A Verdadeira Esposa de Jesus Cristo', de Santo Afonso Maria de Ligório)

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

PARA VIVER BEM O TEMPO DE UMA VIDA


Viva um tempo para TRABALHAR. É a sua herança transformada em obras.
Viva um tempo para PENSAR. É a base do equilíbrio interior.
Viva um tempo para BRINCAR. É o segredo da eterna juventude.
Viva um tempo para CONTEMPLAR a natureza. É a via mais fácil de ter em si a presença de Deus.
Viva um tempo para LER. É a fonte da sabedoria.
Viva um tempo para AMARSER AMADO. É o maior privilégio dado por Deus aos homens.
Viva um tempo para RIR. É o seu instrumento para tocar a música da alma.
Viva um tempo para DOAR-SE ao próximo. É o seu caminho para a felicidade.
Viva um tempo para REZAR. É a forma de se falar com Deus.
Viva um tempo para PRATICAR a caridade. É a sua chave para o Céu.

(texto de autor desconhecido e adaptado pelo autor do blog)

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

21 DE AGOSTO - SÃO PIO X

Instaurare omnia in Christo

Restaurar todas as coisas em Cristo

Pio X (02/06/1835 - 20/08/1914)

No início do Século XX, inúmeras heresias associadas ao Modernismo (movimento precursor do atual Progressismo Católico) tentavam minar a Igreja. Neste quadro de graves dificuldades, a Providência Divina legou à cristandade um Papa Santo, até muito recentemente o único papa canonizado do Século XX. Em 04 de agosto de 1903, o Cardeal Giusepe Sarto de Veneza foi eleito como Pio X, 259º sucessor de São Pedro, sucedendo a Leão XIII, sendo coroado para o Sumo Pontificado cinco dias depois. No seu pontificado de apenas 11 anos (faleceu em 20/08/1914), Pio X promoveu uma guerra sem tréguas às heresias do Modernismo (que condenou por inteiro na Encíclica Pascendi Dominici Gregis, de 8 de setembro de 1907), coordenou a compilação de um novo Código Canônico, restaurou as bases da música sacra e promulgou várias ações e documentos relacionados a uma melhor e mais perfeita devoção aos sacramentos eucarísticos. Foi canonizado pelo Papa Pio XII em 03/09/1954. Celebra-se a sua festa de santidade em 21 de agosto.

Excertos da Encíclica Pascendi Dominici Gregis - 08/08/1907 (de São Pio X): condenação explícita do Movimento Modernista na Igreja Católica

Não se afastará, portanto, da verdade quem os tiver como os mais perigosos inimigos da Igreja. Estes, em verdade, como dissemos, não já fora, mas dentro da Igreja, tramam seus perniciosos conselhos; e por isto, é por assim dizer nas próprias veias e entranhas dela que se acha o perigo, tanto mais ruinoso quanto mais intimamente eles a conhecem. Além de que, não sobre as ramagens e os brotos, mas sobre as mesmas raízes que são a fé e suas fibras mais vitais, é que  meneiam eles o machado.

Batida pois esta raiz da imortalidade, continuam a derramar o vírus por toda a árvore, de sorte que coisa alguma poupam da verdade católica, nenhuma verdade há que não intentem contaminar. E ainda vão mais longe; pois pondo em obra o sem número de seus maléficos ardis, não há quem os vença em manhas e astúcias: porquanto, fazem promiscuamente o papel ora de racionalistas, ora de católicos, e isto com tal dissimulação que arrastam sem dificuldade ao erro qualquer incauto; e sendo ousados como os que mais o são, não há consequências de que se amedrontem e que não aceitem com obstinação e sem escrúpulos. Acrescente-se-lhes ainda, coisa aptíssima para enganar o ânimo alheio, uma operosidade incansável, uma assídua e vigorosa aplicação a todo o ramo de estudos e, o mais das vezes, a fama de uma vida austera. Finalmente, e é isto o que faz desvanecer toda esperança de cura, pelas suas mesmas doutrinas são formadas numa escola de desprezo a toda autoridade e a todo freio; e, confiados em uma consciência falsa, persuadem-se de que é amor de verdade o que não passa de soberba e obstinação.

Efetivamente, o orgulho fá-los confiar tanto em si que se julgam e dão a si mesmos como regra dos outros. Por orgulho loucamente se gloriam de ser os únicos que possuem o saber e, dizem desvanecidos e inchados: nós cá não somos como os outros homens. E, de fato, para o não serem, abraçam e devaneiam toda a sorte de novidades, até das mais absurdas. Por orgulho repelem toda a sujeição, e afirmam que a autoridade deve aliar-se com a liberdade. Por orgulho, esquecidos de si mesmos, pensam unicamente em reformar os outros, sem respeitarem nisto qualquer posição, nem mesmo a suprema autoridade. Para se chegar ao modernismo não há, com efeito, caminho mais direto do que o orgulho. Se algum leigo ou também algum sacerdote católico esquecer o preceito da vida cristã, que nos manda negarmos a nós mesmos para podermos seguir a Cristo, e se não afastar de seu coração o orgulho, ninguém mais do ele se acha naturalmente disposto a abraçar o modernismo! 

Nada, portanto, Veneráveis Irmãos, se pode dizer estável ou imutável na Igreja, segundo o modo de agir e de pensar dos modernistas. Para o que também não lhes faltaram precursores, esses de quem o nosso predecessor Pio IX escreveu: 'estes inimigos da revelação divina, que exaltam com os maiores louvores o progresso humano desejariam, com temerário e sacrílego atrevimento, introduzi-lo na religião católica, como se a mesma não fosse obra de Deus, mas obra dos homens, ou algum sistema filosófico, que se possa aperfeiçoar por meios humanos' (Encíclica Qui pluribus, de 9 de novembro de 1846). 

terça-feira, 20 de agosto de 2019

A ORAÇÃO DO ROSÁRIO

1. NA ESSÊNCIA DO ROSÁRIO ESTÁ O MISTÉRIO DE CRISTO

O Concílio de Éfeso (431) afirmou: 'Quem não confessar que o Emanuel é verdadeiramente Deus e que, consequentemente, a bem-aventurada Virgem Maria é a Mãe de Deus (Theotokos), porque, segundo a carne, deu à luz o Verbo encarnado que procede de Deus, seja excomungado'. Esta afirmação conciliar, que vincula todas as grandes confissões cristãs, indica o fundamento, o lugar na história da salvação, sobre o qual se ergue todo culto mariano bem ordenado. Como afirma o Magnificat, Deus realizou 'grandes coisas' em Maria. Estas grandes coisas nada mais são senão isso: Maria tornou-se Mãe de Deus.

No centro da oração do rosário, com sua repetição da 'Ave-Maria' (três ciclos, cada um dos quais consta de cinquenta repetições), estão os dois mistérios inseparáveis da fé: 'Jesus – Filho de Deus' e 'Jesus – Filho da Virgem Maria'. A saudação angélica (Lc 1,28) e o louvor pronunciado por Isabel (Lc 1,42), juntamente com as súplicas da Igreja: 'Santa Maria, Mãe de Deus...' envolvem, como que num quadro continuamente reproduzido, a sucessão histórico-salvífica dos mistérios da vida de Jesus. A finalidade última e autêntica da oração é o louvor a Cristo, ao passo que Maria abre o caminho para ele. A contemplação dos mistérios do Redentor – tradicionalmente subdivididos nos três ciclos dos mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos – não permite ao orante guardar uma distância teórica e neutra, mas une-o estreitamente à vida, paixão e glória do Senhor.

O olho espiritual do orante percorre como um ponteiro do relógio as situações mais importantes da obra salvífica de Cristo e, por isso, podemos falar com razão – tanto o do coração como o do intelecto – capta, por assim dizer, os pontos nodais, o compêndio da vida do Homem-Deus, que se desenvolveu unicamente por nosso amor, apenas 'por nós', assim como nos é narrada nos evangelhos. Quem reza o rosário de maneira devida sente-se chamado pessoalmente, sente-se preso e inserido no destino e no curso da vida do Redentor. A nossa vida feita diariamente de altos e baixos, de desenvolvimento, maturação e entardecer, encontra aqui uma explicação que a eleva, uma interpretação sem igual. Por isso podemos dizer que o rosário é uma oração extremamente importante sob o perfil existencial.

Como a nossa terra, a natureza e a humanidade vivem 'das graças' do sol, assim também a fé cristã ilumina o caminho do homem. A oração do rosário solicita o orante, e a consequência interior que disso deriva, é: 'Segue-me'. Alegria, gratidão, dor, súplica, promessa e esperança constituem as condições fundamentais de toda vida humana. Na oração, nós as revivemos nas sequelas de Cristo. Lançando-nos para além da simples reflexão, captamos quase imperceptivelmente algo do destino daquela vida na qual está encerrada a salvação de todos os homens e de todos os tempos. A 'solidariedade' cheia de fé com aquela pessoa que constitui o centro e o vértice da história de Deus com os homens permanece sempre a mesma na sucessão dos mistérios contemplados, permitindo ao orante deter-se tranquilo neste centro. Por isso e neste sentido, o rosário, apesar de toda a aparência externa, merece o título de oração do Senhor, de oração cristológica e verdadeiramente bíblica.

2. O ROSÁRIO É UMA ORAÇÃO MEDITATIVA E, PORTANTO, ATUAL E FECUNDA PARA O NOSSO TEMPO

O rosário é uma forma excelente de oração para exercitar-se na meditação contemplativa. É uma oração em que as forças do espírito e da alma se reúnem em torno da pessoa do Redentor e a ele aderem para revitalizar o seu fascínio. O que, à primeira vista, pode parecer monotonia mecânica e 'produção em série', aos olhos do orante revela-se um meio apropriado para concentrar todas as energias psíquicas e espirituais, todas as faculdades racionais e irracionais do homem.

As práticas e os métodos de meditação não cristãos dizem-nos que o homem pode ser reconduzido da dispersão e da laceração exterior e interior à reflexão, à interioridade e ao recolhimento com a ajuda da repetição contínua e aparentemente monótona de uma palavra ou de uma frase. Uma única e mesma palavra, uma única e mesma frase continuamente repetidas tornam-se o veículo do recolhimento e da concentração psíquica e espiritual. Ao mesmo tempo, também a oração do rosário, com o seu ritmo bem articulado, possui a capacidade de separar o orante do mundo exterior sensível e guiá-lo para o silêncio, o recolhimento e à 'simplicidade do coração'. 

Que o indivíduo recorra ao esquema orgânico e fixo de uma oração continuamente repetida não é necessariamente uma coisa que deva envergonhar-se. Pelo contrário, agindo desta forma, o orante manifesta significativamente a sua pobreza e impotência na busca do mistério de cuja energia e de cujo centro vive o homem. Portanto, a coisa decisiva é que esta oração, por assim dizer, toma pela mão o orante na sua fraqueza, o sustenta na sua pobreza e, por fim, lhe revela o centro de sua vida de fé. Paulo VI fala muitas vezes da 'riqueza e variedade' da oração do rosário, que devemos descobrir e aproveitar. Oração individual ou oração comunitária, nunca deixa de dar múltiplos frutos.

No curso dos séculos, foram ditas coisas grandes e sublimes, profundas e instrutivas sobre a oração do rosário, mas as palavras não estão em condições para exprimir adequadamente aquilo que no fundo move o orante. Para compreender realmente a natureza desta oração e experimentar a sua benção, existe apenas um caminho: aproximar-se dela e rezá-la.

(Excertos de 'O Culto a Maria Hoje', texto de Hans Urs von Balthasar)

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

SOBRE VIVER NA POBREZA E NA ABUNDÂNCIA

Há muitos anos – mais de vinte e cinco – eu costumava passar por um refeitório de caridade, para mendigos que não comiam em cada dia outro alimento senão o que ali lhes davam. Tratava-se de um local grande, entregue aos cuidados de um grupo de senhoras bondosas. Depois da primeira distribuição, acudiam outros mendigos, para recolher as sobras. Entre os deste segundo grupo houve um que me chamou a atenção: era proprietário de uma colher de lata! Tirava-a cuidadosamente do bolso, com avareza, olhava-a com satisfação e, quando acabava de saborear a sua ração, voltava a olhar para a colher com uns olhos que gritavam: é minha! Dava-lhe duas lambedelas para a limpar e guardava-a de novo, satisfeito, nas pregas dos seus andrajos. Efectiva mente era sua! Um pobre miserável que, entre aquela gente, companheira de desventura, se considerava rico.

Por essa altura, conhecia também uma senhora com título nobiliárquico, grande de Espanha. Isto não conta nada diante de Deus: somos todos iguais, todos filhos de Adão e Eva, criaturas débeis, com virtudes e com defeitos, capazes dos piores crimes, se o senhor nos abandona. Desde que Cristo nos redimiu, não há diferença de raça, nem de língua, nem de cor, nem de estirpe, nem de riquezas... Somos todos filhos de Deus. Essa pessoa de que vos falo agora residia numa casa solarenga, mas não gastava consigo mesma nem duas pesetas por dia. Por outro lado, pagava muito bem aos seus empregados e o resto destinava-o a ajudar os necessitados, passando ela própria privações de todo o gênero. A esta mulher não lhe faltavam muitos desses bens que tantos ambicionam, mas ela era pessoalmente pobre, muito mortificada, completamente desprendida de tudo. Compreendestes bem? Aliás, basta escutar as palavras do Senhor: bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus.

Se desejas alcançar esse espírito, aconselho-te a que sejas sóbrio contigo e muito generoso com os outros. Evita os gastos supérfluos por luxo, por capricho, por vaidade, por comodidade... não cries necessidades. Numa palavra, aprende com São Paulo a viver na pobreza e a viver na abundância, a ter fartura e a passar fome, a ter de sobra e a padecer necessidade. Tudo posso naquele que me conforta. E, como o Apóstolo, também sairemos vencedores da luta espiritual, se mantivermos o coração desapegado, livre de ataduras.

(São Josemaria Escrivá)