quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

AMOR DE PERFEIÇÃO

1. O amor de Deus, o amor desmedido de si mesmo, eis os dois adversários que disputam teu coração. Se conseguisses eliminar tudo que não satisfaz a Jesus e tudo fazer para lhe ser agradável, serias perfeito. Será difícil? Começa tranquilamente esse trabalho de eliminação.

2. Talvez que te apegues demasiadamente a um objeto, a uma ocupação, a um emprego, a uma dignidade, a uma pessoa, a uma amizade, a certas relações de sociedade, a atenções, respeitos de que és alvo. Talvez que estejas por demais preso a certos projetos, ao sucesso de tuas empresas, ao reconhecimento, à reputação, a certas opiniões, a tuas convicções, tuas comodidades, à tua saúde? Quem se julgará isento de apegos, quando lança um olhar ao abismo do coração, onde se entrechocam tantos desejos, afeições, temores, alegrias, tristezas e esperanças?

3. Não te perturbes diante desta multidão de imperfeições, nem percas teu tempo examinando-te com ânsia para descobrir teus defeitos. À medida que te adiantares na humildade, Deus fará brilhar sua luz nas tuas trevas e então verás tuas faltas.

4. E que tática adotarás para suprimir todas as coisas ilícitas, e conservar teu amor na esfera das afeições legítimas? Perseguir um a um esses inumeráveis inimigos em seus redutos, seria desperdiçar um tempo precioso, e perder a paz do coração, para não chegar, aliás, a um resultado satisfatório. Importa, pois, apegar-se simplesmente ao soberano bem por um ato de vontade.

5. Sem se preocupar com um apego em particular, a alma conserva-se atenta desde o levantar. Ela repete frequentemente atos de amor de Deus, atos de complacência e preferência, principalmente quando um objeto, uma criatura qualquer a solicita, quando se sente estimulada a buscar uma satisfação pessoal, perseguir uma vã questão de honra, descuidar-se de um dever imposto. Cada uma dessas ocasiões faz brotar em seu coração um ato de amor: 'Jesus, eu vos amo, é a vós que eu busco; longe de vós tudo é vaidade, mentira e decepção'. Assim, a alma não dispersa sua atenção sobre muitos objetos ao mesmo tempo. Ela simplifica sua vida espiritual, conservando a paz do coração, e concentra a cada instante toda a sua energia no amor de Deus. Desse modo, no princípio sobretudo, muitas ocasiões lhe escapam. Não raro ela escolhe de boa fé o que lhe apraz, o que a eleva a seus próprios olhos e a lisonjeia. Que isso não a aflija. À medida que ela se adianta, sua atenção será despertada e Jesus mesmo lhe fará notar o que ainda esteja por fazer. E se ela visse de chofre toda a extensão do trabalho, assustar-se-ia de sua fraqueza e cairia por certo na pusilanimidade. Assim a alma avança sossegadamente cada dia e cada momento. Ela esforça-se por viver para Deus em Jesus Cristo. Considera-se como morta ao pecado. Cada vitória do amor de Deus é uma derrota do egoísmo.

6. Entre os apegos que mancham a vontade há um que prejudica mais que todos os outros o remo do perfeito amor. Este apego é a afeição sensível desordenada. A amizade é desordenada quando é contrária ao amor de Deus ou lhe é paralela sem lhe ser subordinada. O sinal de que uma amizade não é absolutamente pura é que, pelo menos em certos momentos, ela gera uma·inquietação, uma preocupação. Esta regra é universal e infalível. Toda desordem, por mínima que seja, tanto na ordem física como moral, é uma falta de equilíbrio e, por conseguinte, perturba a harmonia, o repouso e a paz. Quanto mais delicada é a alma e já possuída pela divina caridade, tanto mais é suscetível de sentir essa inquietação. E' uma advertência de Jesus. Ele é um Deus ciumento. Não permite que uma alma fervorosa se apegue a qualquer criatura, seja ela pura e santa.

7. A alma que se apercebeu dessa discreta advertência deve obedecer incontinenti, romper esse laço não obstante a angústia que causará essa ruptura, evitar de alimentar esta amizade por pensamentos, entretenimentos ou outras relações não necessárias. Ela deve multiplicar seus atos de preferência para Jesus e esperar pacientemente que cicatrize a ferida, enquanto o coração, abalado pelo choque, volte de novo ao seu estado normal. A paixão não descuidará em achar pretextos para legitimar este apego. Esta afeição é pura, ela inclina-me à piedade e sustenta-me; minha natureza sensível exige intimidade; o reconhecimento obriga-me a manter essas relações; os santos tiveram suas amizades. Todas essas razões são sem fundamento, como verás mais tarde, quando for livre o teu coração. Enquanto isso, faz calar teu coração e sacrifica essa amizade. Encontrá-la-ás um dia, porém purificada. Sem este ato enérgico, arrastando-te penosamente na vida espiritual, não possuirás jamais inteiramente o coração de Jesus.

8. Todavia, ninguém se pode gabar de conquistar a liberdade perfeita do coração, sem Deus mesmo por mãos à obra. E' preciso pedir-lhe sempre para desligar-nos de tudo e derramar a amargura sobre tudo a que nos apegamos! Quando Jesus quer possuir plenamente um coração e desgostá-lo de todo o criado, Ele o torna tão amplo e tão profundo que nada é capaz de saciá-lo. E cria nele exigências tais que somente Ele pode satisfazê-las. Revela à alma as fraquezas e incapacidade das pessoas mais queridas; despoja de seus encantos a beleza sedutora das criaturas; permite decepções acerbas e desilusões amargas e, de repente, Ele mesmo se apresenta, por uma súbita iluminação, com sua ternura de amigo, sua paciente bondade, sua condescendência infinita.

9. Quanto mais um coração é naturalmente amante, delicado e nobre nas suas aspirações, tanto mais Jesus acha o terreno preparado para lançar a semente do puro amor. Uma tal alma pode se desviar algum tempo em busca de seu objetivo; pode prodigalizar às vezes seu amor a criaturas indignas dela, mas a indigência, que ela encontra de todos os lados, reconduzi-la-á, cedo ou tarde, a Jesus. Toma desde hoje a resolução de conservar intacto teu coração ou de reconquistar a todo custo tua liberdade.
Foste feito para a santidade, teu coração pertence exclusivamente àquele que o formou, àquele que morreu para que somente a Ele te apegasses.

(Excertos da obra 'O Divino Amigo', do Pe. José Scrijvers, 1961)