quarta-feira, 9 de novembro de 2016

DA EXPLICAÇÃO DO MAGNIFICAT (VII)


Manifestou o poder do seu braço; desconcertou o coração dos soberbos

Tendo a bem-aventurada Virgem louvado e glorificado, no versículo precedente, os efeitos da Divina Misericórdia, que se originam da Encarnação do Salvador, e se estendem de geração em geração sobre aqueles que temem a Deus, glorifica e exalta no presente versículo os prodígios do Divino Poder, que refulgem de maneira admirável no mesmo mistério.

O grande Deus, diz ela, manifestou o poder de seu braço. Qual é este braço? Santo Agostinho, São Fulgêncio e São Boaventura dizem que é o Verbo Encarnado, pois, assim como é pelo braço que o homem faz as suas ações, é também pelo seu Filho que Deus faz todas as coisas. Assim como o braço do homem, diz São Alberto Magno, origina-se do corpo, e a mão do corpo e do braço, o Filho de Deus origina-se do Pai, e o Espírito Santo procede do Pai e do Filho.

Mas que significam as palavras: manifestou o poder de seu braço? Significam que Deus operou poderosamente e produziu efeitos admiráveis de seu poder, por seu Filho único e seu Verbo Encarnado, que é o seu braço. É por Ele que seu Pai criou todas as coisas; por Ele que remiu o mundo inteiro; por Ele que venceu o demônio; por Ele que triunfou do inferno; por Ele que nos ofereceu o céu; por Ele que fez uma infinidade de outros milagres. Nada faço de Mim mesmo, diz o Filho de Deus, mas é o meu Pai que, permanecendo em Mim, faz tudo quanto Eu faço. Quantas maravilhas opera a Divina Providência nesse mistério da Encarnação! Que milagre ver o Verbo Encarnado sair das sagradas entranhas de uma Virgem, sem afetar-lhe a integridade! Quantos milagres na instituição do Santíssimo Sacramento do Altar! Que milagre, enfim, do Divino Poder, ter elevado uma neta de Adão à dignidade infinita de Mãe de Deus, e havê-la estabelecido Rainha de todos os anjos e de todo o universo!

Eis ainda duas coisas extremamente consideráveis. A primeira é nada haver em que o Divino Poder mais apareça do que na remissão e destruição do pecado, segundo as palavras da Santa Igreja: Ó Deus, que manifestais a Vossa onipotência em perdoar-nos os pecados e em fazer-nos misericórdia, mais que em qualquer outra coisa. A razão é que a injúria feita a Deus pelo pecado é tão grande que só o poder infinito de uma imensa bondade a pode perdoar; e que o pecado é um monstro tão horrendo que só o braço do Onipotente o pode esmagar.

A segunda coisa na qual refulge maravilhosamente esse adorável poder é a virtude e a força que dá aos santos mártires e a todas pessoas que sofrem penas extraordinárias, a fim de suportá-las generosa e cristãmente pelo amor dAquele que sofreu os tormentos e a morte da cruz. Eis um pequeno resumo dos inúmeros milagres que o braço onipotente do Verbo encarnado operou e opera para glória de seu Divino Pai, para honra de sua Mãe Sacratíssima, para salvação e santificação dos homens e para os animar a servi-lO e amá-lO de todo o coração, assim como Ele os ama de todo o seu coração.

Mas quais são os soberbos de que fala a Virgem Maria, ao dizer: Dispersou aqueles que se orgulhavam nos pensamentos de seu coração? Os Santos Padres dão diversas explicações. Dizem alguns que esses soberbos são os anjos rebeldes que Deus expulsou do céu e precipitou no inferno por causa de seu orgulho. Santo Agostinho escreve que, por esses soberbos, podem entender-se os judeus que desprezaram o humilde advento de nosso Salvador, motivo pelo qual foram condenados.

Mas, segundo o pensamento de vários autores, isso significa que não só Deus dissipa e aniquila os pensamentos malignos e perniciosos desígnios que os maus maquinam contra Ele e contra os seus amigos; mas age também de tal modo que todas as suas pretensões redundam em confusão própria, para glória de sua Divina Majestade e para acréscimo da santidade e felicidade eterna daqueles que O servem.

E o que é mais ainda é que os derrota com as suas próprias armas. Pois Ele faz com que as flechas despedidas por sua malícia contra Ele e os seus filhos, voltem-se contra eles próprios. Faz com que os desígnios deles sirvam para realização dos seus; faz com que as invenções malignas de sua impiedade redundem em perdição própria e proveito dos seus servos. Transforma os obstáculos que eles opõem às obras de sua glória em meios poderosíssimos de que se serve para dar-­lhes maior firmeza, maior perfeição e maior brilho. 

Não se voltou a malícia de Satanás contra o primeiro homem, contra ele mesmo para sua confusão, e para proveito não só daquele homem mas de toda a sua posteridade? Pois Deus tirou tantos e tão grandes bens do mal em que a tentação do demônio fez cair o primeiro homem, que a Igreja canta na noite de Páscoa: Ó feliz culpa, ó feliz culpa que conheceu tão grande Redentor. Não serviu a maldita inveja e a má vontade dos irmãos de José, como um meio da Divina Providência para elevá-lo até à participação no trono real do Egito, e para dar-lhe o glorioso título de deus do faraó?

De que serviu ao sucessor desse mesmo faraó a dureza e crueldade que exerceu contra o povo de Deus, senão para abismá-lo, com todo o seu exército, no fundo do Mar Vermelho, e para melhor manifestar a proteção de Deus sobre os seus? Enfim, pode dizer-se com verdade de todos quantos perseguem e afligem os servos de Deus o que Santo Agostinho disse do ímpio Herodes, quando mandou matar tantos inocentes a fim de matar Aquele que viera para salvar todo o mundo: 'Eis uma coisa maravilhosa, o ódio e crueldade desse ímpio inimigo de Deus e dos homens foram de muito maior proveito a essas bem-aventuradas crianças que toda a amizade que pudesse ter por elas e todos os favores que lhes pudesse ter feito'.

É assim que o braço onipotente do Verbo Encarnado derruba os empreendimentos dos soberbos pelo próprio pensamento de seus corações; e é à Virgem que cabe o papel de esmagar a cabeça da serpente, isto é, esmagar o orgulho e a soberba. Por isto, dela se pode dizer com toda a razão: 'Vós sois a glória de Jerusalém, vós sois a alegria de Israel, vós sois a honra do povo cristão, porque combatestes generosamente e gloriosamente vencestes os inimigos de sua salvação'.

A primeira palavra é a voz dos anjos: Vós sois a glória de Jerusalém cujas ruínas foram reparadas por meio de Maria. A segunda é a voz dos homens: Vós sois a alegria de Israel cuja tristeza se transformou em alegria por seu intermédio. A terceira é a voz das mulheres: Vós sois a honra do povo cristão cuja infâmia foi apagada pelo fruto bendito de suas entranhas. A quarta é a voz das almas santas prisioneiras nos limbos, que foram libertadas do cativeiro pelo seu Filho bem-amado, o Redentor do mundo: Combatestes e gloriosamente vencestes. Chegando o tempo em que aprouve ao Pai das misericórdias cumprir o seu eterno desígnio de salvar o gênero humano, a sua Divina Sabedoria quis empregar, para tal fim, meios aparentemente sem aptidão alguma e em nada conformes à elevação dessa grande obra. 

Quais são? Ei-los: envia seu Filho único a este mundo em um estado passível e mortal, e em tal abjeção e baixeza a que E!e mesmo diz: Sou um verme da terra e não homem; e traz por titulo de honra em suas Escrituras: o último de todos os homens. Esse Pai adorável quer que seu Filho, nascido desde toda a eternidade em seu seio, e que é Deus como Ele, tome nascimento de uma Mãe, santíssima na verdade, mas tão abjeta e pequenina aos próprios olhos e aos olhos do mundo, que se considera como a última de todas as criaturas.

Além disso, esse Pai Divino, querendo dar a seu Filho coadjutores e cooperadores para trabalharem com Ele na grande obra da redenção do universo, dá-lhe doze pobres pescadores sem ciência, sem eloquência e sem qualidades que os exaltem diante dos homens. Envia esses doze pescadores por toda a terra para destruir uma religião inteiramente conforme às inclinações humanas e enraizada desde muitos anos nos corações de todos os homens, e para estabelecer outra completamente nova, oposta à primeira e contrária a todos os sentimentos da natureza.

Os doze pobres pescadores vão por todo o mundo para pregar e estabelecer a nova religião, e para destruir a primeira. Mas como são recebidos? Todo o mundo se ergue contra eles, grandes e pequenos, ricos e pobres, homens e mulheres, sábios e ignorantes, filósofos, sacerdotes dos falsos deuses, reis e príncipes; todos empregam a sua habilidade para opor-se à pregação do Evangelho que os doze pescadores se esforçam por publicar. São capturados, lançados nas prisões, acorrentados de pés e mãos, tratados como celerados e feiticeiros, açoitados, esfolados vivos, queimados, lapidados, crucificados, em uma palavra, submetidos aos mais atrozes suplícios.

E que acontece? Por fim alcançam a vitória, triunfam gloriosamente dos grandes, dos poderosos, dos sábios e de todos os monarcas da terra. Aniquilam a religião, ou antes, a irreligião e a abominável idolatria que o inferno estabelecera por toda a terra, e estabelecem por todo o mundo a fé e a religião cristãs. Enfim, permanecem senhores do universo e Deus lhes dá o principado da terra: constitui-os príncipes sobre toda terra. 

O Senhor derruba os tronos dos reis e as cátedras dos filósofos; dá o primeiro império do mundo a um pobre pescador, elevando-o a tão alto grau de poder e glória, que os reis e os príncipes consideram uma grande honra beijar o pó de seu sepulcro e os pés de seus sucessores. Que é tudo isso, senão a realização da profecia da bem-aventurada Virgem: depôs do trono os poderosos, e elevou os humildes?  Observai que essas palavras, assim como as outras contidas nesse cântico, abrangem o passado, o presente e o futuro, porque são pronunciadas por espírito profético. E com efeito, a realização dessa profecia apareceu manifestamente nos séculos passados e aparecerá cada vez mais nos séculos futuros, até o fim do mundo.

(Da Explicação do Magnificat, de São João Eudes)