quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

DO ABANDONO À DIVINA PROVIDÊNCIA (III)

A ordem de Deus, o beneplácito de Deus, a vontade de Deus, a ação de Deus, a graça, tudo isto, é uma e a mesma coisa nesta vida. É Deus traba­lhando para tornar a alma semelhante a Si mesmo. A perfeição não é outra coisa senão a cooperação fiel da alma a um trabalho de Deus. A graça produz-se em nossas almas, cresce, aumenta e tem a sua consumação em segredo e sem que a alma se dê conta.

A teologia está cheia de conceitos e expressões que explicam as maravilhas da graça, em cada alma, em toda a sua extensão. Pode conhecer-se tudo o que esta especulação ensina, falar dela admiravelmente, escrever, instruir, dirigir as almas: porém quem não tiver no espí­rito senão este conhecimento teórico, é para as almas que recebem o termo da ordem de Deus e da Sua divina vontade como se não soubesse toda a teoria com todas as suas partes e não pudesse falar dela.

A ordem de Deus, a Sua divina von­tade, recebida com simplicidade por uma alma fiel, realiza nela esse efeito divino, sem que ela o conheça; como um re­médio tomado com submissão opera a saúde num doente que não sabe nem tem que se preocupar de saber medi­cina. Assim como o fogo é que produz o calor e não a filosofia nem o conhecimento deste elemento e dos seus efei­tos, assim também é a ordem de Deus, é a Sua santíssima vontade que opera a santidade nas nossas almas, e não a especulação curiosa deste princípio e deste objetivo.

Quando temos sede, para nos dessedentarmos o que devemos fazer é deixar os livros que explicam estas coisas, e be­ber. A curiosidade de saber não é capaz de nos dessedentar. Assim quando a alma tem sede de santidade, a curiosidade de saber não é capaz senão de a afastar. Deve-se deixar de lado a especulação, e beber com simplicidade tudo o que a ordem de Deus nos apresenta de ações e sofrimentos. O que nos sucede em cada momento, por ordem de Deus, é o que há de mais santo, de melhor, e de mais divino para nós.

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Toda a nossa ciência consiste em co­nhecer esta ordem do momento pre­sente. Toda a leitura que se faz sem ser pela ordem de Deus, é prejudicial; é a vontade de Deus e a Sua ordem que é graça e opera no fundo dos nossos cora­ções, pelas nossas leituras como por to­das as nossas obras boas. Sem ela, as leituras são apenas espécies ou aparências vãs que, destituídas a nosso respeito da virtude vivificante da ordem, de Deus, não servem senão para deixar vazio o coração, precisamente pela ple­nitude que causam ao espírito.

Esta divina vontade penetrando na alma de uma rapariga ignorante, por meio de alguns sofrimentos ou de quaisquer outras ações vulgares, opera no mais íntimo do seu coração esse termo mis­terioso do ser sobrenatural, sem, contudo encher o seu espírito de qualquer ideia capaz de ensoberbecê-la; ao passo que o homem orgulhoso que estuda os livros es­pirituais levado somente da curiosidade, sem a vontade de Deus estar unida à sua leitura, não recebe senão a letra morta, sem o espírito que a vivifica, e vai se tornando cada vez mais árido e seco.

A ordem de Deus, a Sua divina vontade é a vida da alma, de qualquer modo que a alma a receba ou aplique a si mesma. Qualquer que seja a relação que esta divina vontade tenha para com o espírito, alimenta a alma e fá-la crescer continuamente, dando-lhe o que há de melhor em cada momento. O que produz tão divinos efeitos não é isto nem aquilo, mas o que pertence à ordem de Deus no momento atual. O que era o melhor no momento passado, já não o é, por não estar informado pela vontade de Deus, a qual se nos vai apre­sentando sob outras aparências, para fa­zer nascer a obrigação do momento pre­sente; e esta obrigação, qualquer que seja a aparência que ela tome, é o que presentemente há de mais santificante para as nossas almas.

Se neste momento a divina vontade nos manda ler, a leitura realiza no fundo da alma esse efeito misterioso. Se a divina vontade nos manda deixar a leitura por um dever de contempla­ção atual, este dever opera no fundo do coração o homem novo, e a leitura seria então prejudicial e inútil. Se a divina vontade retira a alma da con­templação atual, para aplicá-la a uma ocupação exterior mesmo durante consi­deráveis espaços de tempo, o novo dever forma Jesus Cristo no fundo do coração, e toda a doçura da contemplação ser­viria apenas para destruí-lo.

A ordem de Deus é a plenitude de todos os nossos momentos. Vai reves­tindo mil aparências diferentes, as quais, tornando-se sucessivamente o nosso dever atual, formam, fazem crescer e consumam em nós o homem novo, até à plenitude que a divina sabedoria nos destinou. Este misterioso crescimento da idade de Jesus Cristo nos nossos cora­ções é o termo produzido pela ordem de Deus: é o fruto da Sua graça e da Sua divina vontade.

Este fruto, como dissemos, produz-se, cresce e alimenta-se pela sucessão dos nossos deveres presentes, que a própria vontade de Deus preenche. Cumprindo estes deveres, estamos sempre seguros de possuir a melhor parte; porque esta vontade santa é precisamente a melhor parte. Não há senão que deixá-la agir e abandonar-se cegamente, com uma con­fiança perfeita, à sua ação. Ela é infini­tamente sábia, infinitamente poderosa, infinitamente benéfica para todas as almas que nela esperam totalmente e sem reserva, que só a ela amam e bus­cam, e crêem com uma fé e com uma confiança inabalável que o melhor é o que ela faz em cada momento, sem bus­car em outra parte o mais ou o menos, e sem se deter a considerar as relações que tudo o que é material tem com a ordem de Deus: o que não é senão um verdadeiro amor próprio buscando se a si mesmo.

A vontade de Deus é o essencial, o real e a virtude de todas as coisas, ela é que as ajusta e as acomoda à alma; sem ela tudo é vão, tudo é nada, mentira, vaidade, letra, aparência exterior e morte. A vontade de Deus é a salva­ção da alma, qualquer que seja a aparência sob que se apresente o assunto a que se aplica. Portanto, não se deve olhar para as relações que as coisas têm com o espí­rito e com o corpo, para julgar da sua virtude, pois essas relações são de redu­zida importância. A vontade de Deus é que dá às coisas, sejam elas quais fo­rem, a eficácia para formar Jesus Cristo no fundo dos nossos corações. Portanto não se devem dar leis nem traçar limites a esta vontade, pois ela é onipotente.

Tenha o espírito às ideias que lhe aprouver, sinta o corpo aquilo que puder, mesmo que para o espírito não fossem senão distrações e perturbações e para o corpo doenças e mortes, sem embargo, esta divina vontade é sempre, para o momento presente, a vida do corpo e da alma; porque enfim, um e a outra, em qualquer estado que este­jam, são por ela sempre sustentados e conservados. Sem ela, o pão é veneno; por ela, o veneno é remédio salutar. Os livros sem ela não fazem senão cegar, e por ela a perturbação torna-se luz. Ela é, para todas as coisas, tudo o que nelas há de bondade e de verdade. Ela dá-nos Deus em tudo, e Deus é o ser infinito que tem o lugar de tudo na alma que o possui.

(Excertos da obra 'O Abandono à Divina Providência', de P.J.P de Caussade)

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