sábado, 19 de julho de 2014

O CRUCIFIXO



Ponho nele muitas vezes os meus olhos; beijo-o, de manhã, apenas desperto; beijo-o à noite antes de adormecer, e durante o dia. Quantas vezes... mas Jesus não está todo aqui. Aqui está a figura, um pouco mais longe a realidade; aqui Jesus sem palavra, além com as suas palavras de vida eterna; aqui vejo-O morto, acolá encontro-O vivo; aqui o Calvário, além o Cenáculo.

Olho para o meu crucifixo, mas parece-me que Jesus do Tabernáculo o olha mais do que eu; parece-me que me está convidando para eu fixar toda a minha atenção, para eu aprender a recordar sempre que o Jesus da Hóstia é o mesmo que um dia foi o Jesus da Cruz. Mas, és realmente tu, ó meu sacramentado Senhor, que um dia morreste sobre esta cruz, e duma maneira tão bárbara? Estes cravos atravessaram realmente as tuas mãos? Estes espinhos estiveram realmente em volta da tua fronte? E o teu Coração, aquele coração tão doce, tão belo... Foi realmente alanceado desta maneira? E foi sobre estas carnes que realmente se desencadeou uma furiosa saraivada de flagelos? E, por único conforto, deram-te o fel, a mirra e uma tempestade de blasfêmias? És, pois, tu, mesmo tu, este Jesus que eu vejo aqui cinzelado... O Jesus morto sobre o Calvário? E quem foi esse bárbaro assassino? Meu Deus! Que pergunta! Eu próprio fui o carrasco e Jesus, o próprio Jesus, foi a vítima. O delito foi perpetrado lá; a vítima está aqui, no Tabernáculo. E qual é a vingança? A vingança? Ei-la aqui: a Santa Comunhão!

Depois de tantos maus tratos, Tu me vens ainda a me visitar, a estar comigo, a te dares a mim? Mas onde aprendeste um tal modo de punir os teus crucifixores? Eu coroei-te de espinhos, e tu me dás o direito de cingir o diadema e de reinar contigo? Eu te esbofeteei e tu me fazes certas carícias à minha alma, que me levam ao paraíso? Eu te vesti de louco, e tu me vestes com a tua graça? Eu flagelei horrivelmente as tuas carnes, e tu, depois de as tornares imortais e gloriosas, dás-las a mim como refeição? Eu derramei todo o teu sangue, e tu o ofereces a mim como bebida? Eu alanceei o teu Coração, a parte mais nobre da tua humanidade, e tu o ofereces a mim como o teu dom mais precioso? Mas se eu te tivesse amado como um serafim, tu poderias ser mais liberal para comigo? Ó Santa Eucaristia, tu és realmente um mistério! E o que mais me confunde a razão, é que Jesus tenha amado tanto uma criatura tão má como eu sou.

Este Crucifixo, esta imagem fria e muda do meu Jesus, deve, sem dúvida, fazer ouvir uma linguagem misteriosa e potente. Os santos olhavam-no, choravam, eram arrebatados em êxtases. Ficavam horas inteiras, dias inteiros a contemplá-lo, liam nele coisas sempre novas. E não é senão uma figura. Eu estou diante da Hóstia e, momentos após, sinto-me cansada! Rezo um pouco, e já não posso dizer mais nada! Recebo-a, e uma hora depois já estou esquecida de tê-la recebido. E não é uma figura, mas a realidade, a grande realidade de Jesus! Que distância entre mim e os santos!

Mas, ou santa ou pecadora, hei de querer sempre bem ao meu Crucifixo, e a Hóstia hei de considerá-la sempre como coisa minha. Estudarei o Crucifixo para conhecer sempre melhor a Hóstia, e estudarei a Hóstia para conhecer sempre melhor o Crucifixo. O Crucifixo me recordará sobretudo que eu tenho sido a pior das almas, e a Hóstia me recordará que Jesus me tem amado como se eu tivesse sido sempre uma santa. O Crucifixo me fará arrepender dos pecados, a Hóstia me fará amar a Jesus.

Amar a Jesus, que coisa bela! Mas eu amarei a Jesus também crucificado; somente que, crucificado, o amarei com as lágrimas nos olhos e, na Hóstia, o amarei com o sorriso nos lábios; crucificado o amarei gemendo, na Hóstia o amarei cantando. E continuarei a amá-lo sempre, enquanto tiver um fio de vida. E depois? Depois... O Crucifixo sobre o peito, a Hóstia no coração. Que me restará senão morrer e voar para o Céu?

(Excertos da obra 'Centelhas Eucarísticas', de original italiano, 1906; trad. de Adolfo Tarroso Gomes, 1924)