quarta-feira, 8 de agosto de 2012

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR... (I)

‘Seu Bento’ era isso: ‘Seu Bento’. Figura conhecida, mais que conhecida, figura carimbada de toda aquela região. Pau para toda obra, ‘Seu Bento’ arrumava todo tipo de problema: de pane mecânica no trator da fazenda até a instalação elétrica que pifava de repente, passando pela carpintaria, tornearia, funilaria e o que mais houvesse. Era um homem que nascera com mil e uma habilidades manuais.

E era um homem religioso. E, líder natural que era nas prendas humanas, tornara-se também o líder local da religiosidade popular. Na ruína da pequena capela que um dia ali existiu e na ausência dos padres que pouco apareciam naquelas paragens perdidas no espaço e no tempo, tornara-se aprendiz de pastor, e depois pastor, de alguma igreja dos últimos dias ou coisa parecida. E, ferramenta numa mão, bíblia na outra, vendia serviços e crenças do mesmo jeito. Foi nessa lida e desse jeito que ‘Seu Bento’ encontrou o menino, pouco depois do serviço religioso de atender ‘Seu Inácio’, que perdera a mulher há pouco.

O menino estava sentado numa espécie de banco feito de toras de madeira, ao lado da curva forçada do ribeirão que passava nas terras do ‘Seu Inácio’.  E lançava farelo de qualquer coisa nas águas turvas do ribeirão. ‘Comida pra peixe, aqui, nesse ribeirão?’, pensou o bom homem , ‘que desperdício!’
- Eh menino, tem peixe aí não! Nessas águas, não tem nem filhote de lambari... não perca seu tempo jogando farelo na água!
- Não, moço, isso não é farelo e nem eu estou querendo alimentar peixes que não existem.
- Não é farelo? O que é, então?
- Ouro, pó de ouro – respondeu o menino.

'E essa, agora? Pó de ouro? Mas de onde esse menino estava tirando uma besteira dessas?’. Pensando isso e mais coisas, ‘Seu Bento’ viu, de fato, um saco de tecido grosso cheinho de alguma coisa, sobre o banco e atrás do menino. Ele buscou ser condescendente:
- Pó de ouro? E quem lhe deu ouro pra você jogar fora? –  perguntou ‘Seu Bento’, enquanto se encaminhava em direção ao  menino.
-  Foi o meu pai que morava na capelinha. E, dizendo isso, enchendo a mão, lançou o pó espalhando-o sobre as águas frias e barrentas do ribeirão.

‘Seu Bento’ teve o pressentimento claro de que algo estava errado. Ou fora da sintonia estreita da sua lida diária. Não era apenas pela situação estranha, pelo diálogo absurdo, pela voz serena do menino. Era algo que ele não conseguia captar ainda. ‘Certamente era uma daquelas crianças ali da redondeza, mas quem era ele? O pai tinha morado na capelinha?’ E, pasmo, mais do que pasmo, estupefato, constatou meio zonzo que o saco de farelo era mesmo ouro em pó e isso foi mais óbvio para ele do que o fato do saco já estar pelo meio.
­ - Santo Deus! É ouro mesmo, e você está jogando todo este ouro fora!! Você não sabe o valor dessa riqueza, meu filho!
- Meu bom homem! Você se espanta em ver uma criança jogando ouro fora nas águas frias e barrentas de um ribeirão qualquer. E, vocês, o que fazem com o Corpo e o Sangue de Cristo na Sagrada Eucaristia, que vale mais que todo o ouro que o mundo pode ter? Jogam fora, em troca do farelo de rituais que não valem nada e que roubam a divindade de Cristo. São as águas barrentas e turvas de suas almas que desprezam as riquezas de Deus!

‘Seu Bento’ só teve a compreensão de que estava completamente sozinho algum tempo depois. Sentou-se no banco agora vazio e ficou extático olhando as águas turvas do rio. Mais do que ninguém, ele tinha que acreditar em recomeços e em milagres. No seu caso e de toda aquela gente, o recomeço teria que ser pela capelinha, com muitas ferramentas nas mãos. Os milagres seriam muitos lá, embora o primeiro milagre já ocorrera, e de uma só vez, naquela curva forçada do ribeirão.