quarta-feira, 2 de junho de 2021

VERSUS: TRANSUBSTANCIAÇÃO X CONSUBSTANCIAÇÃO

Pelo Cân. 1376, o Concílio de Trento resumiu o dogma da  presença de Cristo sob as espécies eucarísticas, declarando: 'Porque Cristo, nosso Redentor, disse que o que Ele oferecia sob a espécie do pão era verdadeiramente o seu corpo, sempre na Igreja se teve esta convicção que o sagrado Concílio de novo declara: pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta mudança, a Igreja católica chama, de modo conveniente e apropriado, de transubstanciação'.

Pelo dogma da transubstanciação, o pão muda torna-se a substância do Corpo de Cristo, mediante uma conversão real do pão ordinário (enquanto pão) para a extraordinária Presença de Cristo. Analogamente, a substância do sangue é convertida na substância do Sangue de Cristo. Tal como na eternidade de Deus, o corpo e o sangue estão unidos entre si e com a alma e a de divindade de Cristo, assim também o corpo, sangue, alma e divindade de Cristo estão presentes por inteiro em cada espécie eucarística e em todas as suas partes.


Contra o dogma da transubstanciação da Igreja, foram interpostas duas grandes heresias, a aniquilação e a consubstanciação. Na primeira, a substância do pão seria totalmente aniquilada para se impor a substância do Corpo de Cristo (similarmente, a substância do vinho seria aniquilada para se estabelecer a substância do Sangue de Cristo). No contexto dessa heresia, pão e vinho não mudam e nem são convertidos, mas simplesmente desaparecem enquanto substâncias originais.

Pela heresia da consubstanciação, as substâncias persistem em igualdade de condições: o pão continua pão e, ao mesmo tempo, seria o Corpo de Cristo; o vinho permanece vinho e, ao mesmo tempo, constituiria o Sangue de Cristo. Novamente, não haveria alteração ou conversão de substâncias, mas uma associação de duas espécies de substâncias distintas em uma única substância material.

Pela transubstanciação, mistério da graça divina, somos chamados a viver em plenitude uma vida cristã cotidiana: por fora, podemos até parecer pão ou vinho (como o sacramento eucarístico parece permanecer pão e vinho) mas já não somos pão e nem vinho dos homens, porque a graça infundida nos transformou em filhos de Deus.  Não há aniquilamento da nossa herança comum: somos pecadores e sensíveis às limitações da natureza humana. Não há consubstanciação possível, entretanto, entre o que somos pelo mundo e o que devemos ser como criaturas escolhidas pelo Pai: a herança eterna pressupõe uma mudança profunda de transformação interior e de conversão: 'eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim' (Gl 2, 20).

terça-feira, 1 de junho de 2021

INDULGÊNCIAS DO DIA DA SOLENIDADE DE CORPUS CHRISTI


Nesta próxima quinta-feira, dia da solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, o católico pode ser contemplado com as seguintes indulgências:

(i) Indulgência parcial: rezar, com piedosa devoção, a oração 'Alma de Cristo':

Alma de Cristo, santificai-me.
Corpo de Cristo, salvai-me.
Sangue de Cristo, inebriai-me.
Água do lado de Cristo, lavai-me.
Paixão de Cristo, confortai-me.
Ó bom Jesus, ouvi-me.
Dentro de vossa chagas, escondei-me.
Não permitais que eu me separe de vós.
Do espírito maligno, defendei-me.
Na hora da morte chamai-me e
mandai-me ir para vós,
para que com vossos Santos vos louve
por todos os séculos dos séculos.
Amém. 

(ii) Indulgência plenária: rezar, com piedosa devoção, a oração 'Tantum Ergo' ou 'Tão sublime Sacramento':

Tão sublime sacramento
vamos todos adorar,
pois um Novo testamento
vem o antigo suplantar!
Seja a fé nosso argumento
se o sentido nos faltar.
Ao eterno Pai cantemos
e a Jesus, o Salvador,
igual honra tributemos,
ao Espírito de amor.
Nossos hinos cantaremos,
chegue aos céus nosso louvor.
Amém.

Do céu lhes deste o pão,
Que contém todo o sabor.

Oremos: Senhor Jesus Cristo, neste admirável Sacramento, nos deixastes o memorial da vossa Paixão. Dai-nos venerar com tão grande amor o mistério do vosso corpo e do vosso sangue, que possamos colher continuamente os frutos da vossa redenção. Vós que viveis e reinais para sempre. Amém.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

VERSUS: CONFISSÃO FREQUENTE X ATUAL

Mas, dirás, de nada me aproveita a confissão. Estou sempre na mesma, recaio constantemente nos mesmos pecados! A tua objeção esconde um sofisma dos mais sutis. Se vives escravizado a qual­quer mau hábito, nem por isso hás de per­der a coragem. Extingue-se o incêndio e fica o braseiro do rescaldo. Para o apagar, é preciso ainda muita água. As labaredas do pecado, uma confissão as apagou; mas fica o braseiro do mau hábito, e esse só a abundante chuva de graças que dá a con­fissão frequente, o extinguirá.

Confessa-te, pois, com frequência. Aban­donar-te ao desespero seria crime enorme, pois levar-te-ia à perdição eterna. Coragem! E quando os maus hábitos apertarem contigo, diz: 'Não, agora não hei de pecar'. E sempre que a tentação volte; lhe hás de responder com o mesmo falar. E se, apesar disso, te acontecer à desgraça de recair, vai logo a confessar-te. A primeira queda arrastar-te-ia a uma se­gunda, terceira, e a muitas outras, se ime­diatamente te não levantasses amparado à graça do Sacramento.

E se a força do mau hábito outra vez te fizer cair, não desanimes por isso. Ora, torna a orar, e teima em ir buscar a força e o vigor que te faltam, na frequência da Confissão e na recepção da Sagrada Euca­ristia. Ao fim, hás de ver, serás tu o ven­cedor. E como o sacramento da Penitência além de nos perdoar os pecados, nos fortifica con­tra o mal, devemos recebê-lo com frequência, quer tenhamos cometido pecados graves, quer não. Se Deus, com tanto amor e generosi­dade, põe ao nosso alcance tantos meios de obter a graça, justo é saibamos aproveitá-los e corresponder assim às suas misericórdias.

'E podes ter a certeza de que serás salvo, se resolveres confessar-te com frequência, digna, ordenada e regularmente. Adota como regra de vida: cometeste um pecado? Não deixes pôr-se o sol, sem te reconciliares com Deus. Se assim fizeres, andarás preve­nido contra a morte repentina, e nunca em teu coração enraizará qualquer hábito pecaminoso' [P. Dosz – S.J].

(Excertos da obra 'O Cristão no Tribunal da Penitência', de Frei Frutuoso Hockenmaier)


Como proceder em relação ao sacramento da confissão nestes tristes tempos de pandemia face à enorme dificuldade de acesso frequente (ou mesmo periódico) aos sacerdotes em confinamento em suas casas paroquiais? Muitas dúvidas têm sido expostas em relação à concessão do sacramento da confissão nas atuais circunstâncias, comumente sem as devidas respostas que, basicamente, implica as seguintes proposições:

(i) absolvição individual: manutenção da celebração individual da reconciliação sacramental, mediante a adoção de medidas sanitárias que preservem e assegurem a saúde do sacerdote e do penitente, tais como a utilização de máscaras, o distanciamento adequado entre as partes e uma adequada ventilação do ambiente, sem prejuízo da atenção absoluta à salvaguarda do selo sacramental e à necessária descrição do momento (prescrições que devem ser estabelecidas pelo bispo diocesano).

(ii) absolvição coletiva: a absolvição simultânea a vários penitentes, sem confissão individual prévia, constitui uma prática de caráter absolutamente excepcional, nas seguintes condições (Cân. 961):

§1 - 1.° esteja iminente o perigo de morte, e não haja tempo para um ou mais sacerdotes poderem ouvir a confissão de cada um dos penitentes; 

2.° haja necessidade grave, isto é, quando, dado o número de penitentes, não houver sacerdotes suficientes para, dentro de tempo razoável, ouvirem devidamente as confissões de cada um, de tal modo que os penitentes, sem culpa própria, fossem obrigados a permanecer durante muito tempo privados da graça sacramental ou da sagrada comunhão; não se considera existir necessidade suficiente quando não possam estar presentes confessores bastantes somente por motivo de grande afluência de penitentes, como pode suceder em alguma grande festividade ou peregrinação. 

§2 - Emitir juízo acerca da existência das condições requeridas no §1 - (ii) compete ao bispo diocesano, o qual, atendendo aos critérios fixados por acordo com os restantes membros da conferência episcopal, pode determinar os casos em que se verifique tal necessidade.

A caracterização dessas condições de excepcionalidade é de atribuição do bispo diocesano (é inválida, portanto, sem essa concessão específica e local). Mas, ainda assim, tal concessão excepcional, que incorre nas mesmas exigências formais das confissões particulares, implica ainda a proposição explícita da confissão individual posterior, no devido tempo e previamente a uma nova absolvição geral, a não ser por causa justa.

(iii) confissão por telefone ou via online: expressamente proibida, pelos gravíssimos riscos associados à inviolabilidade do sigilo sacramental.

(iv) ato de contrição perfeita: que o ato de contrição perfeita possui o mérito de nos alcançar o perdão dos nossos pecados, antes mesmo da confissão, é doutrina do catecismo da Igreja firmado no Concílio de Trento (14ª sessão, cap. 4). Para ser perfeito, o ato de contrição deve ser essencialmente um ato de amor a Deus e expressar sinceramente o nosso arrependimento de ter ofendido a Deus, infinitamente bom e digno de ser amado sobre todas as coisas. Pode ser expresso meramente por uma jaculatória simples, tal como: 'Senhor, dai-me a graça do perfeito arrependimento e da perfeita contrição dos meus pecados'.

Conforme a prescrição do próprio Catecismo da Igreja, o ato de contrição perfeita não dispensa o pecador da necessidade de acusar-se de todos os seus pecados mortais no Sacramento da Confissão e de receber a absolvição diretamente de um ministro de Deus. Deste modo, o próprio ato de contrição perfeita deve inclui implicitamente o firme propósito da confissão individual posterior, em tempo oportuno (e o mais breve possível).

domingo, 30 de maio de 2021

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Feliz o povo que o Senhor escolheu por sua herança' (Sl 32)

 30/05/2021 - Solenidade da Santíssima Trindade

27. GLÓRIA AO PAI, AO FILHO E AO ESPÍRITO SANTO


O mistério da Santíssima Trindade é um mistério de conhecimento e de amor. Pois, desde toda a eternidade, o Pai, conhecendo-se a Si mesmo com conhecimento infinito de sua essência divina, por amor gera o Filho, Segunda Pessoa da Trindade Santa. E esse elo de amor infinito que une Pai e Filho num mistério insondável à natureza humana se manifesta pela ação do Espírito Santo, que é o amor de Deus por si mesmo. Trindade Una, Três Pessoas em um só Deus.

Mistério dado ao homem pelas revelações do próprio Jesus, posto que não seria capaz de percepção e compreensão apenas pela razão natural, uma vez inacessível à inteligência humana: 'Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei! Eis que eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo' (Mt 28, 18 - 20). Mistério também revelado em sua extraordinária natureza, em outras palavras de Cristo nos Evangelhos: 'Em verdade, em verdade vos digo: O Filho não pode de si mesmo fazer coisa alguma, mas somente o que vir fazer o Pai; porque tudo o que fizer o Pai, o faz igualmente o Filho. Porque o Pai ama o Filho, e mostra-lhe tudo o que ele faz' (Jo 5, 19-20) ou ainda 'Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai; nem alguém conhece o Pai senão o Filho' (Mt 11, 27).

Nosso Senhor Jesus Cristo é o Verbo de Deus feito homem, sob duas naturezas: a natureza divina e a natureza humana: 'Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele' (Jo 3, 16 - 17). Enquanto homem, Jesus teve as três potências da alma humana: inteligência, vontade e sensibilidade; enquanto Deus, Jesus foi consubstancial ao Pai, possuindo inteligência e vontade divinas.

'Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo'. Glórias sejam dadas à Santíssima Trindade: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Neste domingo da Santíssima Trindade, a Igreja exalta e ratifica aos cristãos o maior dos mistérios de Deus, proclamado e revelado aos homens: O Pai está todo inteiro no Filho, todo inteiro no Espírito Santo; o Filho está todo inteiro no Pai, todo inteiro no Espírito Santo; o Espírito Santo está todo inteiro no Pai, todo inteiro no Filho (Conselho de Florença, 1442).

sábado, 29 de maio de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (VIII)

Capítulo VIII

Localização do Purgatório - São Gregório Magno:  o Diácono Paschasius e o Sacerdote de Centumcelle - O Beato Estêvão e o Religioso na Capela - Teóphile Renaud e a paciente de Dôle

Segundo Santo Tomás e outros doutores da Igreja, como visto previamente, em alguns casos particulares a justiça divina atribui um lugar especial na terra para a purificação de certas almas. Esse sentimento é confirmado por vários fatos; entre os quais citaremos em primeiro lugar dois deles relatados por São Gregório Magno em seus Diálogos: 'Quando eu era jovem e ainda leigo' - escreve o santo Papa - 'ouvi de anciãos bem informados como o diácono Paschasius havia aparecido a Germain, bispo de Cápua'. 

'Paschasius, diácono desta sé apostólica, de quem ainda temos excelentes livros sobre o Espírito Santo, era um homem de eminente santidade, devotado às obras de caridade, zeloso pela ajuda aos pobres e muito esquecido de si mesmo. Certa ocasião, teve início uma acirrada disputa envolvendo uma eleição de um pontífice. Paschasius, isolando-se da posição dos bispos, apoiou uma escolha diversa da aprovada pelo episcopado. Mas ele morreu em seguida, com fama de santidade, que Deus confirmou por um milagre: uma cura instantânea ocorreu no próprio dia do seu funeral, ao simples toque de sua dalmática'.

'Muito tempo depois, Germain, bispo de Cápua, foi enviado pelos médicos para se banhar nas termas de Sant-Angelo, em Abruzzo. Qual não foi o seu espanto em encontrar ali, empregado nos últimos serviços dos banhos, o mesmo diácono Paschasius! 'Estou expiando aqui', disse-lhe a aparição, 'pela culpa que tive em me aliar ao partido errado'. Peço-lhe, ore ao Senhor por mim: saberá que tem sido ouvido assim que deixar de me ver nestes lugares. Germain começou a orar pelo falecido e, depois de alguns dias, ao retornar, procurou em vão por Paschasius, que havia desaparecido. Ele teve que sofrer, acrescenta São Gregório, apenas um castigo temporário depois desta vida, porque pecou por ignorância e não por maldade'. 

O mesmo santo papa relata também sobre um sacerdote de Centumcelle, atual Cività-Vecchia, que também foi-se servir das águas termais. Um homem atendeu-o nas funções mais servis e humildes daquele ofício, por vários dias, sempre com extrema complacência e disposição. O bom sacerdote, pensando que deveria recompensar tanta consideração, levou dois pães abençoados e, depois do serviço do dia, ofereceu-os ao servo prestativo. Este último, com uma expressão triste, respondeu-lhe: 'Por que, padre, oferece-me estes pães? Eu não os posso comer. Eu, que me vês, fui o senhor deste lugar e, depois da minha morte, fui mandado de volta para cá para a expiação das minhas faltas, nesta condição em que me encontro. Se você me quer bem, ó oferece a mim o Pão da Eucaristia!'.

Com essas palavras, desapareceu repentinamente e aquele que o sacerdote pensava tratar-se de um servidor prestativo mostrou-se, ao desaparecer assim, ser tão somente um espírito. Durante uma semana inteira, o sacerdote entregou-se a exercícios de penitência e ofereceu todos os dias a Sagrada Hóstia nas intenções do falecido; retornando posteriormente às termas, já não mais o encontrou ali, concluindo, então, que ele havia sido libertado.

Parece que a justiça divina, às vezes, condena as almas a padecer os seus castigos no mesmo lugar onde cometeram as suas faltas. Lemos nas crônicas dos Frades Menores que o Beato Estêvão, religioso deste instituto, tinha uma devoção singular ao Santíssimo Sacramento, o que o fazia passar parte de suas noites em adoração. Em uma dessas circunstâncias, estando sozinho na capela em meio a escuridão, quebrada pela única luz de uma pequena lamparina, ele viu de repente um religioso num dos assentos, profundamente recolhido e com a cabeça totalmente encoberta pelo capuz. 

Estêvão se aproxima dele e pergunta se ele tem permissão para estar fora da cela naquele momento. 'Sou um religioso falecido' - o homem responde. 'É aqui que devo cumprir meu purgatório, de acordo com um julgamento da justiça de Deus, porque é aqui que pequei por mornidão e negligência no ofício divino. O Senhor permite que você conheça a minha condição, para que possa me ajudar com as suas orações'. Comovido diante estas palavras, o beato se ajoelhou imediatamente e começou a o hino De Profundis e outras orações, percebendo que, enquanto orava, o rosto do falecido expressava alegria. Várias vezes mais, nas noites seguintes, a aparição mostrou-se da mesma forma, cada vez mais feliz, à medida que se aproximava a sua libertação. Finalmente, depois de uma última oração do Beato Estêvão, o espírito levantou-se do seu assento, imerso em luz radiante, expressou sua gratidão ao beato e desapareceu na luz da glória.

O relato seguinte tem algo tão maravilhoso que ter-se-ia hesitação em reproduzi-lo, como disse o Cônego Postel, se não tivesse sido registrado em muitas obras, segundo o Pe. Théophile Renaud, teólogo e polemista do Século XVII, que o relata como um acontecimento ocorrido na sua época e quase sob os seus olhos. Padre Louvet acrescenta que o Vigário Geral do Arcebispado de Besançon, depois de examinar todos os detalhes, reconheceu a sua plena veracidade. 

No ano de 1629, em Dôle, região de Franche-Compté, Huguette Roy, uma mulher de meia-idade, ficou confinada de cama por causa de uma inflamação dos pulmões, que a fez temer por sua vida. O médico que a atendeu, optando por induzir uma sangria na paciente, cortou involuntariamente uma artéria do seu braço esquerdo, comprometendo o fluxo de sangue até às extremidades do seu membro. No dia seguinte, logo pela manhã, uma jovem toda vestida de branco adentra no seu quarto e pergunta à paciente, com uma atitude muito modesta, se ela aceita ser cuidada por ela. 

A paciente, feliz com a oferta, aceita de imediato e com grande prazer. Imediatamente a seguir, a estranha pôs-se a acender o fogo, conduziu gentilmente Huguette a deitar-se na cama e assim continuou a atendê-la e a servi-la como a enfermeira mais prestativa e devotada possível.. Coisa maravilhosa! O simples toque das mãos dessa estranha havia sido tão benéfico que a paciente ficara tão aliviada que até sentia estar já completamente curada. Ela queria saber detalhes daquela pessoa tão amável e quis interrogá-la, mas a estranha disse que precisava ir embora e que voltaria à noite.

Quando a visitante desconhecida retornou à noite, ela disse a Huguette Roy, sem maiores rodeios: 'Saiba, minha querida sobrinha, que eu sou a sua tia, Léonarde Collin, que morreu há dezessete anos, deixando para você uma pequena propriedade como herança. Graças à bondade divina, estou salva, e foi graças à bem aventurada Virgem Maria, por quem tive sempre grande devoção, que obteve para mim esta felicidade. Sem ela, eu estaria perdida. Quando a morte me atingiu de repente, eu estava em pecado mortal; mas a misericordiosa Virgem obteve para mim naquele momento um ato de contrição perfeita, salvando-me assim da condenação eterna. Desde então, estou no purgatório, e o Senhor permite que eu venha até aqui e complemente a minha expiação, ficando ao seu serviço por quarenta dias. No final deste tempo, estarei liberada dos meus sofrimentos e, por sua vez, você deverá ter a caridade de fazer três peregrinações em minha intenção a três santuários da Santíssima Virgem'. 

Huguette ficou atônita, sem saber o que pensar dessa linguagem, não podendo acreditar na realidade dessa aparição e, temendo alguma armadilha do espírito maligno, consultou o seu confessor, o padre Antoine Rolland, um jesuíta, que a aconselhou a ameaçar a desconhecida com os exorcismos da Igreja. Essa ameaça, entretanto, não a perturbou; ela disse calmamente que não temia as orações da Igreja: 'Eles não têm força' - acrescentou ela - 'exceto contra os demônios e os condenados, de forma alguma contra as almas predestinadas e a favor de Deus, como a minha'.

Huguette não se convenceu: 'Como' - disse ela à jovem - 'você pode ser minha tia Léonarde? Ela era velha e alquebrada, além de desagradável e um tanto caprichosa, enquanto você é jovem, gentil e atenciosa'. 'Ah! minha sobrinha' - respondeu a aparição - 'meu verdadeiro corpo está no túmulo, onde permanecerá até a ressurreição; aquele pelo qual você me vê é outro corpo, milagrosamente formado do ar, para me permitir falar com você, servi-la e obter os seus votos. Quanto ao meu caráter difícil e raivoso, dezessete anos de terrível sofrimento me ensinaram paciência e gentileza. Saiba além do mais que, no Purgatório, a pessoa é confirmada na graça, marcada com o selo dos eleitos e, portanto, isenta de todos os vícios'. 

Após tais explicações, a incredulidade não era mais possível. Huguette, ao mesmo tempo maravilhada e grata, recebeu com alegria os serviços que lhe foram prestados, durante os quarenta dias assinalados. Só ela podia ver e ouvir a falecida, que lhe aparecia em determinados momentos e depois desaparecia. Assim que as suas forças o permitiram, ela realizou piedosamente as peregrinações que lhe haviam sido solicitadas.

No final dos quarenta dias, as aparições cessaram. Léonarde apareceu uma última vez para anunciar sua libertação: ela estava então em um estado de glória incomparável, cintilando como uma estrela e trazendo no rosto a expressão da mais perfeita bem aventurança. Ela, por sua vez, expressou sua gratidão à sobrinha, prometeu rezar por ela e por toda a sua família, e se comprometeu a sempre lembrar a ela, em meio às dores da vida, a meta suprema de nossa existência, que é a salvação da nossa alma.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

sexta-feira, 28 de maio de 2021

PARA VIVER A DIVINA MISERICÓRDIA UM DIA POR SEMANA³

 

Ó Sangue e Água que jorrastes do Coração de Jesus como fonte de misericórdia para nós,
eu confio em Vós!

'Fala ao mundo da Minha Misericórdia, que toda a humanidade conheça a Minha insondável misericórdia. Este é o sinal para os últimos tempos; depois dele virá o dia da justiça. Enquanto é tempo, recorram à fonte da Minha Misericórdia'

Intenção do Dia - Terceira Semana

dedicar-me ao silêncio interior, buscando uma maior intimidade com Deus

apaguem-se os ruídos de toda lida / para que não me revolvam as vertigens de fora / que o Meu Deus recline a sua face / no mais íntimo da minha alma

quinta-feira, 27 de maio de 2021

SOBRE O PECADO DO ESCÂNDALO

A palavra escândalo, em sentido próprio, significa obstáculo. Em linguagem teológica, significa a palavra, ação ou omissão, que é para o próximo ocasião de pecado. O escândalo diz-se direto, quando premeditada e deliberadamente se intenta o pecado do próximo; indireto, quando embora não se intente o pecado do próximo, suficientemente se prevê que as nossas palavras, ações ou omissões o induzirão a pecar.

Há escândalo direto quando se induz o próximo ao mal, aconselhando, ajudando, mandando, aprovando ou aplaudindo. Quem deliberadamente induz o próximo a pecado grave, peca gravemente contra a caridade e contra o preceito ou virtude a cuja violação o induz. Quem aconselhar outro a cometer um furto, deve na confissão declarar 'induzi o meu próximo a furtar', e acrescentar logo a qualidade e a quantidade do furto.

O proprietário que, sem justo motivo, induz os criados ou operários a trabalhar ao domingo e dias de festa, peca, e deve dizer na confissão que obrigou os seus servos ou empregados a trabalhar em dia de festa de preceito. É evidente que uma coisa é induzir o próximo a roubar e outra a jurar falso; uma coisa é levá-lo a trabalhar ao domingo; outra violar a castidade; e, por isso, na confissão deve-se declarar qual a espécie de pecado que se induziu alguém a cometer.

Há escândalo indireto quando, não havendo intenção de induzir o próximo a pecar, faz-se ou se omite, sem justo motivo e causa suficiente, qualquer coisa que se prevê irá servir de ocasião de pecado ao nosso semelhante. É escândalo indireto falar mal dos superiores eclesiásticos e civis; porque de tais palavras decorre, nos que as ouvem, o desprezo da autoridade e, com o desprezo, a perda de influência da mesma autoridade e o desprestígio da religião.

Dá ocasião ao pecado, e por isso escandaliza, quem distribui maus livros ou imagens indecentes. Este escândalo será direto ou indireto, segundo houve ou não intenção de induzir os outros a pecar ou apostatar da fé. Se houve tal intenção, além do pecado de escândalo, também se pecou contra a caridade num caso e, no outro, contra a fé.

O escândalo indireto também pode nascer do mau exemplo. De fato, não poucas vezes o nosso mau exemplo arrasta os outros ao mal e enfraquece ou pelo menos leva a apagar, nas almas débeis e frouxas, todo o temor ao pecado. Essas almas facilmente raciocinam dessa forma: 'Se os outros não fazem caso desse ou daquele pecado, para que hei de eu ser escrupuloso onde os outros não veem motivo de reparo? Não serei eu o primeiro nem o último a fazer isto'. É, pois, inegável a sedução e perniciosa influência do mau exemplo. Essas almas tenras e débeis nunca cometeriam tais pecados, se não fossem os maus exemplos que lhes foram dados.

Trabalhar nos dias de festa sem necessidade e em lugar onde todos podem ver ou transgredir publicamente o preceito da abstinência, é dar ocasião de que outros cometam as mesmas faltas e, por isso, é escândalo. É também escândalo pronunciar más palavras, rogar pragas diante de crianças, porque tomam daí ocasião de as aprender e de contrair o mau costume de as repetir.

Outra coisa será transgredir os citados preceitos ou pronunciar essas más palavras diante de cristãos fervorosos que, com certeza, não se deixarão arrastar pelo mau exemplo; ou de maus cristãos que, sem o mau exemplo, já transgridem esses preceitos e já têm o mau costume de profanar os nomes santos. Nestes casos, o mau exemplo não seria ocasião de pecado e, por isso, não se juntaria o pecado de escândalo aos pecados que foram cometidos.

A vida da alma é muito mais nobre e preciosa do que a do corpo. Se temos obrigação de não danificar a esta, muito mais a temos de não prejudicar aquela. Portanto, falta-se ao amor do próximo se, sem motivo, se lhe dá ocasião de pecar. Dar ocasião a faltas leves dos outros, é pecado venial. Se não se advertiu na malícia de um ato gravemente escandaloso, o pecado será ainda leve. E quem não conhece nem sabe que dá escândalo, não comete pecado algum. É necessário evitar o escândalo a todo o custo, e não dar ao próximo ocasião de pecado, nem mesmo venial. Se, para tanto, fosse preciso omitir uma ação por si mesma indiferente, ou mesmo boa, ou até às vezes prescrita pela Igreja, teríamos obrigação de omiti-la para evitar o escândalo.

Vejamos alguns exemplos: uma pessoa sabe, por experiência, que sua presença num passeio público em determinadas circunstâncias é ocasião de pecado grave para outra. A caridade cristã exige-lhe que durante algum tempo não apareça em tal passeio, se o puder fazer sem grave incômodo. Disse 'por algum tempo', e 'sem grave incômodo', porque ninguém está obrigado a privar-se de um passeio honesto por muito tempo, o que de per si seria incômodo grave e um sacrifício extraordinário que Deus não exige de nós para evitarmos os pecados dos outros.

Animado de sincero e ardente desejo de perfeição, desejarias receber frequentemente os sacramentos, mas prevês que o teu procedimento dará motivo a escárnios contra a religião e a calúnias contra ti ou outras pessoas. Que fazer? Procura, se podes, com prudentes e ajuizadas observações, prevenir o escândalo. Se nada conseguires, podes deixar os sacramentos, se prevês que será este o meio eficaz de evitar o escândalo. Mas isto uma ou duas vezes, e não por muito tempo, porque a caridade bem ordenada começa por nós; e seria loucura, a pretexto de não prejudicar a alma do próximo, causar grave dano espiritual a ti mesmo. Do mesmo modo, para evitar o escândalo e a ocasião certa de alguém cometer pecado grave, por exemplo, contra a castidade, poderás uma vez por outra deixar de assistir à missa de obrigação. E, se para evitar o escândalo se vai até omitir obrigações, com maior razão se deverá ir até omitir certas ações por si mesmas indiferentes ou até mesmo boas.

No caso de haver motivos justos e particulares para fazer qualquer coisa de que o próximo se vai escandalizar, devemos explicar o motivo do nosso procedimento ou, se for possível, esperar melhor ocasião para fazermos o que desejávamos. É dia de abstinência e vais comer carne publicamente porque estás dispensado do preceito; então tens de explicar, aos que estão presentes, os motivos do teu proceder. Impossível seria, mesmo com a melhor boa vontade, evitar ao próximo toda a ocasião de pecado. Nunca faltarão olhos perversos que vejam ou finjam ver ocasião de pecado nas mais santas das nossas ações.

O Divino Salvador foi acusado de escandaloso pelos judeus; e os fariseus até dos seus milagres a favor dos que sofriam, tomavam como motivo de escândalo. Para evitar escândalos assim, seria preciso, como disse São Paulo aos coríntios, andar fora deste mundo. De nenhum modo, por exemplo, estarás obrigado a sujeitar-te às exorbitantes exigências de um artista ou operário, embora prevejas que vai romper em pragas e imprecações. Ao prejuízo que irias sofrer, acresceria ainda dar razão para que, numa vez seguinte, pudessem mais exorbitar. Os pais podem e devem corrigir seus filhos, mesmo quando preveem que se vão zangar ou ficarem amuados. Antes esses seus arrebatamentos ou amuos do que ficarem com o caminho aberto para faltas mais graves.

E para terminar, advertimos que nem sempre o autor do escândalo indireto está obrigado na confissão a declarar expressamente que escandalizou. Acusa-se alguém, por exemplo, de ter dito palavras obscenas diante de crianças. Não precisa de dizer mais nada; já assim vai tudo confessado, pois sempre as crianças se escandalizam quando ouvem conversas desonestas. Também, pela mesma razão, não é obrigado a declarar o pecado de escândalo quem se acusa de ter trabalhado publicamente no domingo.

'O que escandalizar a um destes pequeninos que creem em Mim, melhor lhe fora que se lhe dependurasse ao pescoço uma mó e o lançassem no fundo do mar. Ai do mundo por causa dos escândalos! Ai daquele homem por quem vem o escândalo!' (Mt. 18,6-7) Duras e terríveis estas palavras do Salvador, sempre todo mansidão e doçura! Pensa, porém, no que é o escândalo e nas suas terríveis consequências, e compreenderás a dureza do seu falar.

O escandaloso é um verdadeiro assassino, como diz Santo Agostinho: 'quem dá escândalo é um assassino', porque mata a vida da alma. Por isso a Escritura chama ao demônio 'homicida desde o princípio'. O demônio foi o primeiro sedutor e o pai de todos os sedutores e escandalosos, seus instrumentos e auxiliares em tudo são semelhantes, quando procuram arrastar à perdição as almas puras e inocentes.

Um só pecado de escândalo pode ser causa da ruína espiritual de centenas de pessoas. Escandalizaste a uma pessoa, esta a outra, e assim por diante; e foi o teu pecado a causa remota de todos estes pecados. Sucederá até, que, morto o escandaloso, sepultado de há muito, esquecido pelos homens o seu nome, continue ainda a ser causa da ruína de muitas almas. A semente por ele lançada à terra germinou, cresceu e produziu frutos de morte eterna, entre os homens!

Não te iludas, parecendo-te que o escândalo é coisa de pouca monta; nem o consideres ser coisa leve. Examina com cuidado se tens dado escândalo, onde e de que modo. Suposto mesmo que não tenhas sido absolutamente responsável diante de Deus porque não advertiste no pecado ou nas suas consequências, procura reparar do melhor modo possível, e evitar completamente para o futuro, todo o escândalo: 'Não percas aquele por quem Cristo morreu' (Rm 14,15). Se conheceres que alguém arma ciladas à tua virtude, ou que sua amizade é perigosa para a tua alma, foge com o maior cuidado, porque também Jesus Cristo morreu por ti sobre a Cruz.

Aquele que, sem justo motivo, deu ao próximo ocasião de pecar, está obrigado a reparar, quanto puder, o dano espiritual que lhe causou. Se, por tua culpa, alguém se apartou do caminho do bem, cuida por todas as maneiras de o trazer de novo à virtude, exortando-o, instruindo-o, orando por ele e dando-lhe bom exemplo. Que ele veja, nas tuas palavras e obras, que repudias todo o mal que fizeste e dele estás arrependido de todo o teu coração.

O melhor meio de reparar o mal será a tua conversão de pedra de escândalo que eras, pelo teu mau exemplo, em pregador mudo, mas eloquente da virtude pela tua vida exemplar e verdadeiramente cristã. Nas dúvidas que te ocorrerem sobre qualquer ponto em particular, aconselha-te com o teu confessor.

(Excertos da obra 'O Cristão no Tribunal da Penitência', do Pe. Frutuoso Hockenmaier)