terça-feira, 20 de abril de 2021

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'Amarás o Senhor teu Deus'. 'Teu Deus', está dito, e esta é uma razão para amar mais; gostamos mais do que nos pertence do que daquilo que nos é estranho. É certo, o Senhor teu Deus merece ser amado; Ele tornou-se teu servo, para que tu lhe pertenças e não te envergonhes de o servir. Durante trinta anos, o teu Deus tornou-se teu servo por causa dos teus pecados, para te arrancar da escravidão do diabo... Portanto, amarás o Senhor teu Deus 'com todo o teu coração'. 'Todo coração': não podes guardar nenhuma parte para ti. Ele quer a oferta total de ti próprio; comprou-te por inteiro, para te ter para si por inteiro. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração...  Portanto, ama totalmente e não em parte. Porque Deus não tem partes, está inteiramente em toda a parte...  Portanto, queres possuir tudo? Dá-lhe o que és, e Ele te dará o que é. E não mais terás nada de teu; mas então o terás inteiramente contigo.
(Santo Antônio de Lisboa)

segunda-feira, 19 de abril de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (IV)


Capítulo IV

Lugar do Purgatório - Doutrina dos Teólogos - Catecismo do Concílio de Trento - São Tomás

Embora a fé nada nos diga de definitivo sobre a localização do Purgatório, a opinião mais comum, aquela que mais está de acordo com a linguagem das Escrituras e que é mais geralmente aceita entre os teólogos, é aquela que o situa nas entranhas da terra e não muito longe do Inferno dos réprobos. Os teólogos são quase unânimes, diz São Belarmino, em ensinar que o Purgatório, pelo menos o lugar de expiação por excelência, está situado no interior da terra e tanto as almas do Purgatório como as dos condenados encontram-se no mesmo espaço subterrâneo do abismo profundo que as Escrituras chamam de Inferno (De purgat. lib. 2. cap. 6).

Quando repetimos no Credo dos Apóstolos que, depois de sua morte, Jesus Cristo desceu ao Inferno - o nome Inferno, diz o Catecismo do Concílio de Trento (Catech. Rom., Cap. 6, § 1), compreende todos aqueles lugares secretos onde se encontram as almas que ainda não alcançaram a beatitude eterna. Mas essas prisões são de tipos diferentes. Uma delas é uma masmorra escura e sombria, onde os condenados são continuamente atormentados por espíritos malignos e por um fogo que nunca se apaga. Este lugar, que é o inferno propriamente dito, também é chamado de geena e abismo. Existe um outro Inferno, que retém o fogo do Purgatório. Ali as almas dos justos sofrem por um determinado tempo, para que possam ser inteiramente purificadas de suas faltas, para então ser acolhidas na pátria celestial, onde contaminação alguma pelo pecado pode entrar.

Um terceiro Inferno foi aquele no qual foram acolhidas as almas dos santos que morreram antes da vinda de Jesus Cristo, no qual desfrutaram de um repouso tranquilo e isento de dores, consolados e sustentados pela esperança de sua redenção. Elas eram aquelas almas santificadas que aguardavam Jesus Cristo no seio de Abraão, e que foram resgatadas quando Cristo desceu ao Inferno. Nosso Salvador infundiu de repente sobre elas uma luz muito brilhante, que os encheu de alegria infinita e deu-lhes a bem-aventurança beatífica, que é a visão de Deus. Cumpriu-se então a promessa de Jesus revelada ao bom ladrão: 'Hoje estarás comigo no Paraíso'.

'Uma opinião muito provável' - diz São Tomás - 'e que, aliás, é ratificada pelas palavras dos santos em revelações particulares, é que o Purgatório apresenta um duplo espaço de expiação. O primeiro está destinado às almas em geral e situa-se em profundezas maiores, próximo ao Inferno; o segundo abrange casos particulares, dos quais provêm as tantas aparições' (Suplemento, part iii, ques. ult.). O santo Doutor admite, portanto, como tantos outros que compartilham de suas opiniões que, às vezes, a Justiça Divina atribui um lugar especial de purificação a certas almas, e permite inclusive que elas apareçam para instruir os vivos ou para obter para as almas sofredoras os sufrágios de que precisam e, em outros casos, por outros desígnios da sabedoria e da misericórdia de Deus.

Essa é a visão geral sobre a localização do Purgatório. Visto que não estamos escrevendo um tratado contencioso, não adicionamos nem provas nem refutações; estas podem ser acessadas nas obras de autores como Suarez e Belarmino. Vamos nos atentar aqui à opinião sobre um inferno subterrâneo que nada tem a temer da ciência moderna pois uma ciência puramente natural é incompetente para resolver questões que pertencem, como esta, à ordem sobrenatural. Além disso, sabemos que os espíritos podem estar em um lugar ocupado por corpos, como se esses corpos não existissem. Qualquer que seja, então, o interior da terra, seja inteiramente de fogo como os geólogos defendem ser, seja em qualquer outro estado, não há nada que tal lugar não possa servir de permanência de espíritos, mesmo de espíritos revestidos com um corpo ressuscitado. O apóstolo São Paulo ensina-nos que o ar está repleto de uma multidão de espíritos malignos: 'temos de lutar ... contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares' (Ef 6,12). Por outro lado, sabemos que os anjos bons que nos protegem não são menos numerosos no mundo. Assim, se anjos e outros espíritos podem habitar a nossa atmosfera, sem que o mundo físico experimente qualquer variação, por que as almas dos mortos não poderiam habitar o seio da terra?

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

domingo, 18 de abril de 2021

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Sobre nós fazei brilhar o esplendor de vossa face' (Sl 4)

 18/04/2021 - Terceiro Domingo da Páscoa

21. TESTEMUNHAS DA RESSURREIÇÃO DO SENHOR 


Neste Terceiro Domingo da Páscoa, os Evangelhos evocam mais uma das muitas manifestações de Jesus Ressuscitado aos discípulos reunidos no Cenáculo. Mesmo depois dos relatos das aparições de Jesus às santas mulheres, à Maria Madalena, ao próprio Pedro, e aos dois discípulos de Emaús, muitos ainda permaneciam incrédulos e continuavam a negar a ressurreição de Jesus. E o dogma da ressurreição, essência da fé cristã, não poderia conviver com tais dúvidas e não poderia prescindir da solidez confiante do testemunho de muitos e de todos.

Por isso, mais uma vez, Jesus se apresenta aos seus discípulos e os saúda com a paz de Cristo. Homens incrédulos responderam à saudação de Jesus como homens incrédulos: 'Eles ficaram assustados e cheios de medo, pensando que estavam vendo um fantasma' (Lc 24, 37). Turbados pela presença de Jesus, julgaram ver um espírito, um fantasma que atravessava paredes e portas fechadas. O temor e a desconfiança deles era tão grande que foram capazes, mais uma vez, de confundirem o mistério da graça com uma reação baseada na lógica simples da natureza humana. Jesus surgira do nada, e as portas estavam fechadas; tratava-se, pois, da aparição de um fantasma...

Jesus os conclama a compreender o mistério da graça: 'Por que estais preocupados, e por que tendes dúvidas no coração? Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e vede! Um fantasma não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho. E, dizendo isso, Jesus mostrou-lhes as mãos e os pés' (Lc 24, 38 - 40). E, agora, movidos por uma incredulidade mais afeta à alegria pela confirmação da ressurreição de Cristo do que a descrença pelo sobrenatural, os discípulos oferecem a Jesus, a pedido dele, um pedaço de peixe assado: 'Ele o tomou e comeu diante deles' (Jo 24, 43). Não podia existir prova mais definitiva da real presença de Jesus Ressuscitado; em seu corpo glorioso, embora não precisasse de alimento algum, Aquele que antes comia e bebia com eles, estava de novo comendo com eles. Era o mesmo Jesus, Jesus Ressuscitado, não um espírito, não um fantasma.

Em seguida, após confirmar a sua missão salvífica, Jesus exorta os seus discípulos a serem, mais que as testemunhas singulares da Ressurreição, os continuadores de sua missão, constituindo-os sacerdotes da Igreja e herdeiros do seu sumo e eterno sacerdócio. Missão destinada a ser cumprida pelo ministério sacerdotal até o fim dos tempos, na busca da confirmação da obra universal da redenção e para a salvação e a santificação das almas: 'e no seu nome serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sereis testemunhas de tudo isso' (Lc 24, 47 - 48).

sábado, 17 de abril de 2021

GALERIA DE ARTE SACRA (XXIX)

(pintura do 'Aleijadinho', considerada como provável 'retrato' do artista)

Antônio Francisco Lisboa, o 'Aleijadinho', nasceu por volta de 1730 em Ouro Preto, em Minas Gerais. Escultor, entalhador, carpinteiro e arquiteto, é considerado o maior representante do barroco mineiro, sendo conhecido por suas esculturas em pedra-sabão, entalhes em madeira e pelos projetos arquitetônicos de altares e de igrejas. Toda a sua obra foi realizada em Minas Gerais, especialmente nas cidades de Ouro Preto, Sabará, São João del-Rei e Congonhas. Os principais monumentos que contêm as suas obras são a Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto e o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas. Apresentam-se a seguir as principais e mais conhecidas obras deste grande artista, portador de uma doença lenta, deformante e generalizada, que o fez inclusive perder os dedos das mãos e dos pés (daí a alcunha de 'Aleijadinho') e que o levou à morte em 1814.

(Igreja de São Francisco de Assis - Ouro Preto/MG, projetada pelo Aleijadinho, século XVIII)

(frontispício da Igreja de São Francisco de Assis - Ouro Preto/MG, esculpido pelo Aleijadinho)

(detalhe do frontispício da Igreja de São Francisco de Assis - Ouro Preto/MG)

(interior da Igreja de São Francisco de Assis - Ouro Preto/MG, projetado pelo Aleijadinho)

(imagem do altar-mor da Igreja de São Francisco de Assis, esculpida pelo Aleijadinho)

(cena do carregamento da cruz, Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas/MG)

(detalhe da cena do carregamento da cruz, Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas/MG)

(Cristo no Horto das Oliveiras, Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas/MG)

(Cristo Flagelado, Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas/MG)

(Nossa Senhora das Dores, Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas/MG)

(12 Profetas,  adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas/MG)

(Profeta Oseias, adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas/MG)

sexta-feira, 16 de abril de 2021

TESOURO DE EXEMPLOS (64/66)

  

64. UM PECADOR SE CONVERTE

Diz Santa Brígida que 'assim como o magneto atrai o ferro, assim também Maria Santíssima atrai os corações a Deus'. É um fato. Um dia foi São Francisco Regis chamado para um enfermo que não queria de modo algum preparar-se para a morte. O infeliz negava-se a aceitar os socorros da religião, sabendo embora que o seu fim era iminente. 

Convencendo-se São Francisco de que os meios humanos eram inúteis, tirou de seu breviário uma imagem de Nossa Senhora e, mostrando-a ao enfermo, disse:
➖ Olha! Maria te ama.
➖ Como? - replicou o pecador - como se acordasse de um sonho - pois que ela não me conhece.
➖ Mas eu sei que ela te ama! - tornou o santo.
➖ Então ela não sabe que reneguei a minha fé e desprezei a minha religião?
➖ Sabe.
➖ Que insultei ao seu Filho e calquei aos pés o seu sangue?
➖ Sabe.
➖ Que estas mãos estão manchadas de sangue inocente?
➖ Sabe.
➖ Padre, o senhor fala a verdade?
➖ Sim; passarão os céus e a terra, mas a palavra de Deus não passará. Sabe, pois, que Deus disse outrora e te diz hoje ainda: 'Filho, eis aí tua Mãe!'
➖ Uma mãe, que me ama!... murmurava o pecador enternecido; minha mãe, minha... 

E copiosas lágrimas brotavam de seus olhos. Eram lágrimas de sincero arrependimento, verdadeira dor. Fez imediatamente uma confissão dolorosa e contrita de toda a vida. Recebeu com visível fervor a sagrada comunhão. Alguns dias depois, feliz e cheio de confiança, expirou no amor de Deus a quem fôra atraído por Maria.

65. ESCAPARAM DA GUILHOTINA

Foi em Paris, na época mais triste da Revolução Francesa. Para alguém ser preso e condenado à morte, bastava que o acusassem de monarquista ou católico intransigente. Também os pais de Júlia Janau, uma criança de 11 anos, foram presos por causa de sua religião. Júlia, que ficara só com uma velha criada, chorava dia e noite, temendo pela sorte de seus pais.

Em sua grande aflição, rezava continuamente o rosário à compassiva Mãe do Céu para que salvasse os seus pais. Essa devoção do rosário - ensinara-lhe sua boa mãe, dizendo-lhe que, em todo o perigo e necessidade, recorresse a Maria com muita confiança e seria socorrida. Estava a menina ajoelhada, rezando o seu rosário, quando um representante do partido revolucionário penetrou na casa à procura de mais alguma vítima para a guilhotina.

À vista daquela criança, inocente e tímida, o carrasco sentiu-se inexplicavelmente comovido. Dirigindo-se à pequena, perguntou:
➖ Que estás fazendo?
➖ Estou rezando o rosário por meus pais.
➖ O rosário?...
➖ Sim, para que reconheçam que eles são inocentes.

Ao pronunciar essas palavras, copiosas lágrimas corriam-lhe os olhos. Soluçando, ergueu, suplicante, as mãozinhas ao revolucionário que estava seriamente comovido. Num gesto de mansidão e de bondade, que havia muito não sentia, inclinou-se para a pequena de cabelos louros e, colocando-lhe a mão sobre os ombros, perguntou:
➖ E acreditas que a tua oração ajudará?
➖ Sim, foi a firme resposta - porque minha mãezinha me ensinou e minha mãezinha não mente.

O coração daquele homem rude e mau, enternecido diante de tamanha inocência e confiança, sentia já uma terna compaixão pela criança.
➖ Achas, boa menina, que teus pais são inocentes?
➖ Acho, sim; eles nunca fizeram mau algum.
➖ Pois bem; verei o que se poderá fazer por eles.
➖ Obrigado, senhor, por essa promessa. Ah! salvai meus inocentes pais; restituí pai e mãe a uma pobre criança abandonada.

A grande confiança de Júlia no poder da Rainha do Santo Rosário ficou gravada no coração daquele revolucionário; e como gozava de muita influência no tribunal, conseguiu que os acusados fossem absolvidos e restituídos à sua inocente filhinha, que, pela devoção a Maria, os livrara da morte.

66. OS TRÊS DEGRAUS DA FORCA

Era no tempo da famosa rainha Isabel que governou a Inglaterra de 1558 a 1603. Foi uma rainha cruel e mandou matar fria e injustamente a muitíssimos de seus vassalos simplesmente por serem católicos convictos e fervorosos. Entre as inúmeras vítimas de seu ódio satânico estava João Post, natural de Pereth (Cumberland), grande devoto da Mãe de Deus. Ainda na hora trágica da morte deu prova desta sua devoção.

Foi assim: Ao ser conduzido à forca, em presença de inúmeras espectadores, ajoelhou-se no primeiro degrau da forca e rezou em voz alta: 'O anjo do Senhor anunciou a Maria; e ela concebeu do Espírito Santo'. E rezou logo em seguida uma Ave-Maria. Subiu, depois, ao segundo degrau e rezou com voz forte: 'Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra'. E rezou outra Ave-Maria. Subiu, enfim, ao terceiro degrau, que era o último do cadafalso, ajoelhou-se pela última vez e rezou: 'E o Verbo de Deus se fez homem e habitou entre nós'. Rezou a terceira Ave-Maria, encomendando-se fervorosamente a Nossa Senhora.

Entregou-se então ao carrasco e sofreu heroicamente o martírio, sendo enforcado por causa de sua fé inabalável em Jesus Cristo e na santa Igreja Católica. Meu irmão, também nós estamos condenados à morte. Todos havemos de morrer. Pode-se dizer que nos aproximamos dela, subindo também três degraus: um pela manhã, outro ao meio-dia e o terceiro à tarde. Imitemos o exemplo desse santo mártir, rezando três vezes ao dia, como é costume entre os bons católicos, a oração do 'Anjo do Senhor'.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

ver PÁGINA: TESOURO DE EXEMPLOS

quinta-feira, 15 de abril de 2021

O ÊXTASE DE SANTA TERESA DE ÁVILA

Deus é Amor Infinito que busca almas para incendiá-las com o seu Amor Divino... 'que pretensão a nossa a de querer impor limites Àquele que dá ilimitadamente os seus dons quando quer' (Livro da Vida, v.5, p.39). 

Gianlorenzo Bernini - O Êxtase de Santa Teresa de Ávila (1647-52)
Mármore, Cappella Cornaro, Santa Maria della Vittoria, Roma 

'Nosso Senhor ficou satisfeito por eu ter, por vezes, uma visão desse tipo: vi um anjo perto de mim, do meu lado esquerdo, em forma corpórea. Isso eu não estou acostumada a ver, a menos que muito raramente. Embora eu tenha visões de anjos com frequência, ainda os vejo apenas por uma visão intelectual, como eu já falei antes.

Foi vontade de nosso Senhor que nessa visão eu visse o anjo desta maneira. Ele não era grande, mas de pequena estatura e muito bonito – seu rosto queimava, como se ele fosse um dos anjos mais elevados, que parecem ser todos de fogo: devem ser aqueles a quem chamamos de querubins. Seus nomes eles nunca me dizem, mas vejo muito bem que existe no céu uma diferença tão grande entre um anjo e outro, e entre estes e os outros, que não consigo explicar.

Vi em sua mão uma longa lança de ouro e, na ponta do ferro, parecia haver um pequeno fogo. Ele me pareceu estar empurrando-o às vezes em meu coração e perfurando minhas próprias entranhas; quando ele puxou para fora, ele parecia atraí-los também, e me deixar toda em chamas com um grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fez gemer; e, no entanto, tão extraordinária era a doçura dessa dor excessiva, que eu não podia querer me livrar dela.

A alma está satisfeita agora com nada menos que Deus. A dor não é corporal, mas espiritual; embora o corpo tenha sua parte nele. É uma carícia de amor tão doce que agora acontece entre a alma e Deus, que eu oro a Deus por Sua bondade para fazê-lo experimentar aquilo que pode pensar que estou mentindo. Durante os dias em que isso durou, era como se Ele estivesse ao meu lado. Eu não queria ver ou falar com ninguém, apenas acalentar minha dor, que era para mim uma felicidade maior do que todas as coisas criadas'.

(Excertos da obra 'Livro da Vida', v.5, Santa Teresa de Ávila)

quarta-feira, 14 de abril de 2021

A VIDA OCULTA EM DEUS: DEUS ABRASA A ALMA


O amor de Deus é uma chama ardente. Antes de transformar a alma, Deus a desfaz, queima, consome. Tudo o que é contrário a Ele deve desaparecer. Este período da vida interior é particularmente doloroso. É um momento de purificação: a alma é lançada no cadinho; todas as suas escórias sobem do fundo à superfície e então a alma vê toda a sua fealdade e se ressente do sabor cruel de tanta amargura. Às vezes, fica com a impressão de que essas manchas são inerentes a si mesma e que nunca poderá se ver livre delas. Mas, no fundo, a alma é bela porque é pura, e a percepção desse mal a horroriza.

Para quem simplesmente visse o efeito dessas duras tribulações, pareceria ver apenas a alma calcinada por este fogo misterioso, tenebroso, sem forma e sem beleza, que a desfigura e deforma. Todos os pensamentos que pouco a pouco tomaram conta de sua mente e moldaram sua imagem, todos os afetos que se infiltraram em seu coração e o tornaram semelhante ao seu ser, todas as lembranças que permearam sua memória até então, desaparecem por completo. Durante a provação, tudo foi ceifado, arrancado e queimado. 

A alma não é mais a mesma e, nesse sentido, torna-se irreconhecível. Ficou deformada por uma fealdade que resulta da privação de uma falsa beleza. Mas, na verdade, foi embelezada pela verdadeira beleza, por privar então da própria Beleza de Deus. Apenas o que é substituído foi destruído. E a alma interior, despojada de tudo o que formava a sua aparente riqueza, começou a se revestir da própria Beleza de Deus.

Para unir, o amor de Deus deve, antes de tudo, separar. E aqui não se trata mais de simplesmente afrouxar os laços que uniam a alma ao seu corpo, mas de penetrar no próprio íntimo da alma para libertar o que há de mais perfeito nela: 'o espírito', para que a união com Deus, que é Espírito, possa ser plenamente realizada. Segue-se então uma angústia dolorosa, deliciosa e inexprimível. É uma nova vida que se insinua nas profundezas da alma e que muda tudo nela. A alma não é mais reconhecida e se torna uma outra alma, embora ainda seja a mesma. A impressão da morte é tão vívida que clama por socorro, sabendo, entretanto, que não vai ser ouvida. Precisaria do céu para isso; só que ainda não chegou a sua hora.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte II -  A Ação de Deus; tradução do autor do blog)