sexta-feira, 2 de abril de 2021

SEMANA SANTA MAIOR: SEXTA-FEIRA SANTA

 CELEBRAÇÃO DA PAIXÃO E MORTE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO


Nós Vos adoramos, Nosso Senhor Jesus Cristo, e Vos bendizemos,
porque pela Vossa Santa Cruz remistes o mundo.

Penitência, jejum, abstinência, silêncio, oração. Jesus agonizante acabou de pronunciar suas últimas palavras, entregando o Espírito ao Pai. E morre sobre a cruz. José e Nicodemos O descem do lenho das flagelações para os braços da Mãe Dolorosa. E, então, O conduzem para o Santo Sepulcro.


Transportemo-nos em espírito ao Calvário; adoremos ali a Jesus cravado na Cruz por nós e, à vista do seu Corpo transformado em uma única chaga, deixemos transbordar a compaixão dos nossos corações, em ato de agradecimento, contrição, amor e devoção.

I - SEXTA-FEIRA SANTA, DIA DE AMOR 

Contemplemos amorosamente o divino Crucificado desde os pés até à cabeça, desde o menor movimento de seu Coração até às suas mais vivas emoções; tudo nos conduz a amá-lO; todo Ele nos diz: 'Meu Filho, dá-me o teu coração'. Seus braços estendidos nos revelam que Ele nos abraça a todos sem distinção; sua cabeça, que não pode repousar a não ser sobre os espinhos que a mantém suspensa, inclina-se para nos dar o beijo da paz e da reconciliação; seu peito, retalhado pelos golpes, ergue-se sob a cadência de um coração cheio de amor; suas mãos e os seus pés, perfurados pelos cravos; sua visão esmaecida, suas veias exangues, sua boca seca pela sede, todas as chagas, enfim, que cobrem o seu corpo, formam um concerto de vozes a nos dizer: 'Vede o quanto Ele nos ama!' 

AH! SE PENETRÁSSEMOS NESTE CORAÇÃO, O VERÍAMOS TODO OCUPADO EM NOS AMAR A TODOS, PEDINDO MISERICÓRDIA POR NOSSAS INGRATIDÕES, NOSSA FRIEZA E NOSSOS PECADOS; PEDINDO POR NÓS TODOS OS SOCORROS DAS GRAÇAS QUE TEMOS RECEBIDO E RECEBEREMOS; OFERECENDO AO PAI A SUA VIDA POR NÓS, O SEU SANGUE, TODAS AS SUAS DORES INTERNAS E EXTERNAS; ENFIM, CONSUMINDO-SE EM ARDORES INDESCRITÍVEIS DE AMOR, SEM QUE NADA POSSA DISTRAÍ-LO.

Ó amor! Seria demasiado morrer de amor por tanto amor? 'Ó Bom Jesus', direi como São Bernardo, 'nada me enternece tanto, nada me abrasa e incendeia meu coração de vosso amor do que a Vossa Paixão'. É ela que me atrai mais a Vós, é ela que me une a Vós mais estreitamente, é ela que, com mais firmeza, me comove. Ó quanta razão tinha São Francisco de Sales ao afirmar que o Monte Calvário é um monte de amor; que ali, nas chagas de Jesus, as almas fieis encontram o mais puro amor e, no próprio Céu, depois da bondade divina, é a Vossa Paixão o motivo da maior alegria, o mais doce e o mais poderoso instrumento para sublimar de amor os bem aventurados! E eu, Jesus, diante disso, ó Jesus Crucificado, poderia ter outra vida que não Vos amar?

II - SEXTA-FEIRA SANTA, DIA DE CONVERSÃO 

PARA PROVAR A JESUS CRUCIFICADO QUE EU O AMO VERDADEIRAMENTE, É PRECISO QUE EU ME CONVERTA, QUE EU DEIXE MORRER, AOS PÉS DA CRUZ, TUDO QUE AINDA EXISTE DO MUNDO EM MIM, todas as minhas negligências e todas as minhas tibiezas, todo o meu amor próprio e meu orgulho; todas as minhas futilidades, desejos de gozos e prazeres, tão grandes inimigos do despojamento e da mortificação; a sensibilidade que, de tudo, se ressente; o espírito de crítica e de maledicência, que de tudo murmura; a tibieza, a dissipação e o espírito errante, que não quer refletir em recolhimento; a intemperança da língua, que fala de tudo que está no nosso interior; enfim, de tudo aquilo que é incompatível com o amor que nos pede Jesus Crucificado. 

Há que se substituir todas estas más inclinações pelas sólidas virtudes que a Cruz nos ensina: a humildade, a mansidão, a caridade, a paciência, o despojamento. Jesus nos pede tudo isso, por todas as suas chagas, por tantos outros modos. Podemos recusar? Poderia eu conservar meus apegos, quando O vejo desnudo na Cruz? Desta nudez não poderia eu me vestir, fazer minha veste dos seus opróbrios, minha riqueza de sua pobreza, minha glória de sua vertigem, minha alegria dos seus sofrimentos?

(Excertos da obra 'Meditações para todos os dias do ano para uso do clero e dos fieis', de Pe. Andrés Hamon, Tomo II).

PORQUE HOJE É A PRIMEIRA SEXTA-FEIRA DO MÊS

   

quinta-feira, 1 de abril de 2021

SEMANA SANTA MAIOR: QUINTA-FEIRA SANTA

 CELEBRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA E DO SACERDÓCIO

Nesta Quinta-Feira Santa, a Igreja recorda a Última Ceia de Jesus e a instituição da Eucaristia, sacramento do Seu Corpo e do Seu Sangue: 'Fazei isto em memória de Mim'; a instauração do novo Mandamento: 'Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei' e a suprema lição de humildade de Jesus, quando o Senhor lava os pés dos seus discípulos.


Transportemo-nos em espírito à última Ceia, na qual, Jesus Cristo, às vésperas de sua morte, reúne os seus Apóstolos como o pai de família, próximo ao seu fim, reúne os seus filhos em torno do leito de morte para dar-lhes as suas últimas vontades e legar-lhes a herança do seu amor em comum. Sobretudo, então, lhes atesta o quanto os ama. Assistamos, com recolhimento e amor, a este espetáculo amoroso e meditemos nos grandes mistérios deste dia: a instituição da Eucaristia e a instituição do sacerdócio.

I - A INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA 

Admiremos de princípio Jesus ajoelhado diante dos seus Apóstolos, lavando-lhes os pés para ensinar a todos os dons da humildade profunda; da caridade perfeita, da pureza sem mancha, que pede o Sacramento que Ele vai instituir e que eles vão receber. Sentando-se em seguida à mesa, toma o pão, o abençoa, o parte e o distribui aos seus discípulos, dizendo: 'Tomai e bebei; ESTE É O MEU SANGUE, O SANGUE DA NOVA ALIANÇA QUE QUE SERÁ DERRAMADA POR VÓS EM REMISSÃO AOS VOSSOS PECADOS'

Ó como se conhece bem o amor de Jesus! O Divino Salvador, próximo a deixar-nos, não pode se separar de nós. 'Não os deixarei órfãos', Ele havia dito,' meu Pai me chama; porém, ao ir ao Pai não me separarei de vós; minha morte está determinada por decretos eternos; mas, morrendo, permanecerei vivo para ficar convosco. Minha sabedoria idealizou como obter isso e o meu amor como fazê-lo'.

Na sequência, transforma o pão em seu Corpo e o vinho em seu Sangue, em face da união indissolúvel entre a Pessoa Divina e a natureza humana, e o que pouco antes era apenas pão e apenas vinho é agora a Pessoa Adorável de Jesus Cristo por inteiro, sua Pessoa Divina, tão grande, tão poderosa, como está diante do Pai, governando todos os mundos e adorado por todos os anjos que se estremecem na Sua Presença.

A este milagre sucede outro: 'O que acabo de vos dizer', disse Jesus, 'vós, meus Apóstolos, o fareis; dou-vos este poder não somente a vós, mas a todos os seus sucessores até o fim dos tempos, uma vez que a Eucaristia será a alma de toda a Religião e a essência do seu culto, e deve perdurar tanto quanto ela mesma'. Esta é a rica herança que o amor de Jesus transmitiu aos seus filhos pelo longo dos séculos; este é o testamento que este bom Pai de Família fez, no momento de sua partida, em favor de seus filhos; suas mãos moribundas o escreveram e, em seguida, o selou com o seu Sangue; esta é a bênção que o bom Jacó deu a seus filhos reunidos em torno de Si antes de deixá-los. Ó preciosa herança, ó bendito e amado testamento, ó tão rica bênção! Como podemos agradecer tanto amor?

II PONTO - A INSTITUIÇÃO DO SACERDÓCIO 

Parece, Senhor, que havia se esgotado para nós todas as riquezas do vosso amor e eis, então, que surgem novas maravilhas: NÃO É SOMENTE A EUCARISTIA QUE NOS LEGAIS NESTE SANTO DIA, MAS TAMBÉM O SACERDÓCIO, COM TODOS OS SEUS SACRAMENTOS, COM A SANTA IGREJA, COM A SUA AUTORIDADE INFALÍVEL PARA ENSINAR, O PODER DE GOVERNAR, A GRAÇA DE ABENÇOAR E A SABEDORIA PARA DIRIGIR. Porque tudo isso está ligado essencialmente com a Eucaristia, como preparação da alma para recebê-la, como consequência para conservá-la e para multiplicar os seus frutos. Assim, Jesus Cristo, como Pontífice soberano, quis estabelecer e estabeleceu realmente todos estes poderes de uma só vez e numa só ordem: 'Fazei isso!' 

Ó sacerdócio que esclareceis, purificais e engrandeceis as almas, que dispensais sobre a terra os mistérios de Deus e, em socorro das almas caídas e das almas dos justos, as riquezas da graça; sacerdócio que, em socorro das almas caídas e das almas dos justos, fazeis nascer o arrependimento e abris as portas do Céu, acolhendo os pecadores e fazendo-os volver à inocência; sacerdócio pelo qual sustentais a alma vacilante e a fazeis avançar na virtude, que protegeis o mundo contra si mesmo e à corrupção, contra a ira santa de Deus; sacerdócio, bem inefável, eu o bendigo e bendigo a Deus por tê-lo herdado à terra! 

Que seria do mundo sem vós? Sem vós, o que seria o sol, sua luz, seu calor, seu consolo, sua força e seu apoio! Ó Quinta - Feira Santa, mil vezes bendita, porque trouxestes tanta felicidade para os filhos de Adão! Jamais poderemos celebrar por completo esta graça com a devida piedade, recolhimento e amor.

(Excertos da obra 'Meditações para todos os dias do ano para uso do clero e dos fieis', de Pe. Andrés Hamon, Tomo II).

INDULGÊNCIAS PLENÁRIAS DA SEMANA SANTA MAIOR

 

No riquíssimo acervo das indulgências concedidas pela Santa Igreja, concessões diversas são dadas aos fieis por ocasião do Tríduo Pascal (Quinta-feira Santa, Sexta-feira Santa e Vigília Pascal) para a obtenção de indulgências plenárias, desde que atendidas as demais condições habituais*:

Quinta-Feira Santa

· Recitação ou canto do hino eucarístico 'Tantum Ergo' durante a solene adoração ao Santíssimo Sacramento que se segue à Missa da Ceia do Senhor;

· Visita e adoração ao Santíssimo Sacramento pelo prazo de meia hora.

Sexta-Feira Santa

· Participação piedosa da Veneração da Cruz na solene celebração da Paixão do Senhor.

Sábado Santo  

· Recitação do Santo Rosário.

· Participação piedosa da celebração da Vigília Pascal, com renovação sincera das promessas do Batismo.

Domingo de Páscoa

· Participação devota e piedosa à benção dada pelo Sumo Pontífice a Roma e ao mundo (bênção Urbi et Orbi), ainda que por rádio ou televisão.

* estas condições (e as complementares listadas abaixo) para a obtenção das indulgências plenárias, deverão ser convenientemente adaptadas para a situação atual (orações e devoções particulares e não públicas):

1. Exclusão de todo afeto a qualquer pecado, inclusive venial.

2. Confissão Sacramental, Comunhão Eucarística e Oração pelas Intenções do Sumo Pontífice. 

(i) estas condições podem ser cumpridas uns dias antes ou depois da execução da obra enriquecida com a Indulgência Plenária, mas é da maior conveniência que a comunhão e a oração pelas intenções do Sumo Pontífice se realizem no mesmo dia em que se cumpre a obra.

(ii) a condição de orar pelas intenções do Sumo Pontífice é cumprida por meio da oração de um Pai Nosso, Ave-Maria e Glória ou uma outra oração segundo a piedosa devoção de cada um.

quarta-feira, 31 de março de 2021

IMAGEM DA SEMANA SANTA MAIOR

(Sexta Estação/ - Via Dolorosa / Jerusalém)

Pia Veronica faciem christi linteo deterci

 'a piedosa Verônica enxugou o rosto de Cristo com um pano'


VERONICA (em grego): Verus (verdadeira) + nikos (imagem)

A verdade - que é Jesus Cristo - ficou estampada como imagem no pano 
Verônica representa a VERDADEIRA IMAGEM de Jesus Cristo que todos nós devemos ser como Filhos de Deus

terça-feira, 30 de março de 2021

SEMANA SANTA MAIOR: SERMÃO DO DIA DE RAMOS (II)


E a alma, o que há de fazer? O corpo, imitar; a alma, meditar: o corpo com os ramos da palma, a alma com os da oliveira. A alma nestes santos dias há de fazer do coração um Monte Calvário, levantar nele um Cristo crucificado, e pôr-se desta maneira a contemplar suas dores. Oh! quem pudera explicar-se agora com o pensamento, e falar com o silêncio! Quando os amigos de Jó o foram visitar nos seus trabalhos - diz a Escritura Sagrada - ficaram uma semana inteira olhando só para ele, sem falarem palavra. Assim o hão de fazer nossas almas esta semana, se são amigas de Jesus: olhar, calar e pasmar. Oh! que vista! Oh! que silêncio! Oh! que admiração! Oh! que pasmo! Só três coisas dou licença a nossas almas que se possam perguntar a si mesmas no meio desta suspensão: Quem padece? O que padece? Por quem padece? E que meditação esta para uma eternidade!

Quem padece? Deus, aquele ser eterno, infinito, imenso, todo poderoso, aquele que criou o céu e a terra com uma palavra, e o pode aniquilar com outra; aquele, diante de cujo acatamento, os principados, as potestades e as dominações, e todas as hierarquias estão tremendo. Este Deus, cuja grandeza; este Deus, cuja majestade; este Deus, cuja soberania incompreensível só ele conhece inteiramente, e todos os entendimentos criados com infinita distância de nenhum modo podem alcançar, este, este é o que padece. 

Aqui se há de fazer uma pausa, e pasmar. São Bernardo, cheio de pasmo e assombro nesta mesma consideração, rompeu dizendo: Ergo ne credendum est, quod iste sit Deus, qui flagellatur, qui conspuitur, qui crucifigitur? [por que não cremos que é esse Deus que é flagelado, que é cuspido, que é crucificado?] É possível que se há de crer que este, que padece tantas injúrias e afrontas e tal morte é aquele mesmo Deus imortal, impassível, eterno, que não teve princípio, e é o princípio e fonte de todo ser? Este, este é; que nem ele seria Deus, nem a nossa fé seria fé, se assim não fosse, e nós não creríamos o que excede toda a capacidade humana. Por isso Isaías, quando entrou a falar da Paixão, como profeta que entre todos era o mais eloquente, o exórdio por onde começou foi aquela pergunta: Quis credidit auditui nostro? [quem acreditou na nossa pregação?]. Quem haverá que dê crédito ao que há de ouvir de minha boca? Tão alheio é quem padece do que padece, e este é Deus. Vede se há bem de que pasmar aqui.

Depois de considerarmos que é Deus quem padece, então se segue a consideração do que padece. E não só havemos de trazer à memória o que já vimos que padeceu exteriormente em todos os sentidos do corpo, mas muito mais devemos considerar e ponderar o que padeceu no interior da alma e em todas suas potências. Com dois nomes, ou com duas semelhanças nos declarou nosso amorosíssimo Redentor o que padeceu em sua Paixão, com nome e semelhança de cálice, quando disse a São Pedro: Calicem, quem dedit mihi Pater, non vis ut bibam illum? - o cálice que me deu o meu Pai, não queres que o beba? E com nome e semelhança de Batismo, quando disse a todos os discípulos: baptismo habeo baptizari, et quomodo coarctor usque dum perficiatur - Eu hei de ser batizado em um batismo, o qual desejo com grandes ânsias e aperto do coração até que chegue. 

De sorte que declarou o Senhor o que havia de padecer por nós, já chamando-lhe cálice, já batismo, e por quê? Porque o batismo recebe-se por fora, o cálice bebe-se por dentro, e Cristo, Redentor nosso, em toda sua Paixão não só padeceu por fora os martírios do corpo, senão também, e muito mais, por dentro os tormentos da alma. Por fora padeceu os tormentos dos açoites, dos espinhos, dos cravos, da lança, que o banharam todo em sangue, e por isso lhes chamou Batismo; por dentro, padeceu as tristezas, os tédios, os temores, as angústias e agonias, que, sem ferro, lhe tiraram também sangue no Horto, e lhe penetravam mortalmente a alma: Tristis est anima mea usque ad mortem [Minha alma está triste até a morte (Mc 14, 34].

Oh! quem pudesse entrar profundamente no interior da alma de Jesus, e entender o que naquele consistório sacratíssimo e secretíssimo das suas três potências passava e sofria por tantas horas! A memória, desde o princípio do mundo, representava os pecados de todos os homens, por quem satisfazia a divina justiça; o entendimento ponderava o pouco número dos mesmos homens que se haviam de aproveitar do preço infinito daqueles tormentos, e a vontade se desfazia com dor de ver perder tantas almas por sua culpa, sem achar consolação alguma a tamanha perda; e esta era a tristeza que ocupava toda a alma do Salvador e com três cravos mais agudos e penetrantes a crucificava. Aqui havemos de fazer a segunda pausa, e pasmar tanto daquele infinito amor, como da nossa infinita cegueira. Oh! Senhor, quantos pode ser que vísseis então, dos que agora se acham nesta mesma igreja, que, por que haviam de desprezar e condenar as suas almas, agonizavam a vossa! Considere cada um se porventura, ou eterna desventura, é algum destes, e vejam bem o seu perigo enquanto têm tempo.

Este é o Deus que padece, estas são as penas e dores que padece, e só resta ver por quem padece. Se a fé me não ensinara outra coisa, cuidara eu que padecia Deus pelo céu, porque vejo o sol eclipsado e coberto de luto; cuidara que padecia pela terra, porque a vejo tremer e arrancar-se de seu próprio centro; cuidara que padecia pelas pedras, porque as vejo quebrarem-se umas contra as outras e abrirem-se as sepulturas; cuidara que padecia pelo Templo de Jerusalém, porque vejo rasgar-se de alto a baixo o véu do Sancta Sanctorum; cuidara que padecia por este mundo elementar, porque vejo confusos, perturbados, atônitos e com prodígios de sentimento e assombro todos os elementos. 

Mas não são estas as criaturas por quem padece Deus, posto que todas confessam que padece o seu Criador; e, como seres irracionais e insensíveis, quiseram acabar como Ele quando o veem morrer. Quem são logo aqueles por quem padece o Autor da natureza, e por quem morre o Autor da vida? Sou eu, sois cada um de vós, e somos todos os homens. Por nós, e só por nós Deus padece; por nós, e só por nós padece quanto padece. Por nós que, depois de nos criar, o não respeitamos; por nós que, depois de nos sustentar, o não servimos; por nós que, depois de nos remir, o não obedecemos; por nós que, depois de morrer por nosso amor, o não amamos; por nós que, depois de se pôr em uma cruz por nós, o tornamos a crucificar mil vezes; por nós que, esperando-nos assim, e chamando-nos com os braços abertos, não queremos acudir às suas vozes; por nós, enfim, que, sabendo que nos há de julgar e nos prometeu o céu se o não ofendermos, queremos antes o inferno sem ele, que o céu com ele. Isto é o que faz todo o homem que peca mortalmente, e isto o que continua a fazer enquanto se não se livra do pecado, para que vejais se tem razão, não só de pasmar, mas de perder o juízo.

('Sermão de Dia de Ramos' - Parte II, Pe. Antônio Vieira, pregado na Matriz do Maranhão, no ano de 1656)