segunda-feira, 12 de outubro de 2015

GLÓRIAS DE MARIA: NOSSA SENHORA APARECIDA

A história é bem conhecida: em 1717, Dom Pedro de Almeida Portugal e Vasconcelos (Conde de Assumar), efetivado como governador das Capitanias de São Paulo e Minas Gerais, viajou de navio de Portugal a Santos, com grande comitiva. Tomando posse do governo em São Paulo, seguiu rumo às minas de ouro em Minas Gerais, fazendo uma longa parada em Guaratinguetá, no período de 17 a 30 de outubro. Para a recepção do ilustre viajante, foram-lhe servidos os melhores pratos da culinária local, incluindo os saborosos pescados do Rio Paraíba do Sul.

Para a nobre tarefa de pescar uma grande quantidade de peixes, foram convocados os pescadores Domingos Alves Garcia, seu filho João Alves e Felipe Pedroso, cunhado de Domingos, entre outros. Entretanto, mesmo com o conhecimento enorme que tinham dos melhores pontos de pesca, não conseguiam nada. Mas algo extraordinário estava para ocorrer. Na rede lançada, surgiu primeiro uma pequena imagem em terracota de Nossa Senhora da Conceição, sem a cabeça, que foi recolhida e guardada com zelo pelos pescadores no fundo do barco. E eis que, numa nova investida, mais abaixo no rio, sem nada de peixe, veio a cabeça da imagem. Um objeto de dimensões tão reduzidas coletado do leito largo e vigoroso do Paraíba do Sul! E, surpresa ainda maior, novas investidas da rede trouxeram agora cardumes de peixes, em tão grande quantidade, repetindo-se, no largo do Porto de Itaguaçu, o milagre de Cristo no Mar da Galileia.


Cientes dos fatos extraordinários ocorridos, os pescadores locais recuperaram a imagem e passaram a venerá-la em suas casas, como imagem peregrina, até que a mesma foi colocada em pequeno oratório na casa de Atanásio Pedroso, filho de Felipe, e depois, com o culto já generalizado na ‘Nossa Senhora Aparecida’, erigiu-se uma pequena capela de sua devoção em Itaguaçu, com o apoio do Padre José Alves Vilela, pároco da Igreja de Santo Antônio de Guaratinguetá. Sob a sua coordenação, a devoção recebeu a aprovação episcopal e foi construída, então, a Igreja de Nossa Senhora Aparecida, no chamado Morro dos Coqueiros, inaugurada em 1745, apenas 28 anos após o achado da imagem. Em torno da igreja, implantou-se rapidamente uma comunidade que constitui hoje a cidade de Aparecida. A igreja tornou-se de imediato centro de romarias e de devoções marianas de toda a natureza.


Com a intensa participação popular e, pela ausência de sacerdotes no Brasil, optou-se pela solicitação de auxílio junto a comunidades religiosas europeias. Em 1894, com a chegada dos padres redendoristas alemães, as atividades religiosas, os cultos e as romarias tornaram-se muito mais organizados, favorecendo muito a rápida difusão da evangelização e a consolidação da igreja como santuário de frequente peregrinação. Tais eventos culminaram com a solene coroação da imagem de Nossa Senhora Aparecida em 8 de setembro de 1904 (com manto azul e coroa de ouro cravejada de diamantes e rubis, ofertados pela Princesa Isabel em visita ao santuário em 6 de novembro de 1888) e com a elevação do santuário à condição de Basílica Menor em 29 de abril de 1908. Em 16 de julho de 1930, o Papa Pio XI outorgou o título de Nossa Senhora Aparecida como Padroeira do BrasilEm 1967, ano da comemoração do jubileu dos 250 anos da aparição da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, o Papa Paulo VI ofertou ao Santuário Nacional da Padroeira do Brasil uma Rosa de Ouro, ato repetido pelo Papa Bento XVI em 2007. O dia da Padroeira do Brasil é celebrado em 12 de outubro, feriado nacional. 

As enormes e crescentes manifestações populares exigiram a construção de uma nova basílica, com dimensões e infraestrutura compatíveis com o maior centro de peregrinação espiritual do Brasil que se tornou Aparecida. Desta forma, entre 1955 e 1980, foi construída a atual Basílica, inaugurada a 04 de julho de 1980 pelo Papa João Paulo II e elevada a Santuário Nacional em 1984. Que continua a receber milhares de peregrinos, infindáveis romarias, em agradecimento, louvor e veneração à Virgem Padroeira do Brasil. Na Sala das Promessas, em meio a milhares de ex-votos, tem-se uma ideia da admirável senda de prodígios e milagres alcançados por tantos romeiros e fieis, pela intercessão de Nossa Senhora Aparecida.


Em Aparecida, ao contrário de tantos outros centros de peregrinação mariana, a Virgem fez-se aparecer apenas sob a forma de uma pobre e pequena imagem de terracota de 38cm de altura, sem quaisquer visões, mensagens ou prodígios sobrenaturais, para falar aos simples, aos humildes, aos fracos, aos desvalidos, que as almas simples, despojadas de valores intrinsecamente humanos e entregues somente à confiança e à misericórdia de Deus por Maria, são as glórias dos Céus.


ORAÇÃO A NOSSA SENHORA APARECIDA

Ó Senhora da Conceição Aparecida, que fizestes tantos milagres que comprovam vossa poderosa intercessão junto ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, obtende para nossas famílias as graças de que tanto necessitam. Defendei-nos da violência, das doenças, do desemprego e, sobretudo, do pecado, que nos afasta de Vós. Protegei nossos filhos de tantos fatores de deformação da juventude. E concedei a todos os membros de nossas famílias a graça de poderem trilhar o caminho de perfeição e de paz ensinado por Vosso Divino Filho, que afirmou: "Disse-vos estas coisas para que tenhais paz em Mim. Haveis de ter aflições no mundo; mas tende confiança, Eu venci o mundo!" Amém.

domingo, 11 de outubro de 2015

O JOVEM RICO E AS CONTINGÊNCIAS DA GRAÇA

Páginas do Evangelho - Vigésimo Oitavo Domingo do Tempo Comum


'Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?' (Mc 10, 17). Eis a pergunta do jovem rico, ao correr ao encontro de Jesus e lhe atirar aos pés, cheio da iniciativa da graça. Eivado das riquezas do mundo, encontrara tempo e discernimento para buscar valores mais altos e definitivos, que pavimentam caminhos de heranças eternas. Tal santa predisposição, ainda que bela, entretanto, é movida apenas pela natureza humana. 

O jovem rico vê em Jesus um santo, um sábio, um mestre, mas não como Deus. Ciente dessa visão, ao vislumbrar o coração do moço cheio de bons propósitos, Jesus vai questioná-lo sobre ser chamado por ele de 'bom', sob uma mera conduta da concessão humana da admiração, quando Ele, por ser Deus, é a própria Bondade Infinita. Em seguida, Jesus o conclama a ir muito mais longe nos mistérios da graça, ciente de suas virtudes em praticar os mandamentos que acabara de enumerar. Consumado de amor, Jesus o invoca aos cumes da vida espiritual: 'Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!' Ao ouvir isso, porém, o jovem 'ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico' (Mc 10, 22).

'Vem e segue-me!' Jesus convidou aquele jovem rico para ser um outro Apóstolo, para herdar desde já a sua herança eterna nos caminhos poeirentos da terra, para tomar posse da verdadeira riqueza, aquela que se guarda no próprio Coração de Deus. E recebeu um não como resposta, cujo eco de insensatez e de vicissitude há de perpassar por todos os tempos e gerações. Um não nascido da tibieza e do orgulho, das mazelas de uma alma enriquecida apenas dos valores humanos na prática dos mandamentos, mas pobre na sabedoria da graça, daquela sabedoria em relação à qual 'todo o ouro do mundo é um punhado de areia e, diante dela, a prata será como a lama' (Sb 7, 9).

A verdadeira riqueza está em Deus. Os valores do mundo, todos os valores do mundo, incluindo a posse de mais ou de menos bens materiais, são efêmeros e incertos. O Reino de Deus é um tesouro impossível de ser encontrado por aqueles que, como o jovem rico, são apegados aos bens e dons desta vida e uma porta aberta, quando trilhado por aqueles que se fazem pobres de espírito para compartilharem as suas misérias com a infinita misericórdia de Deus. Dispor o que se recebe, repartir o que se tem, abandonar todos os apegos terrenos por causa do Evangelho: eis a regra de ouro para se almejar as heranças eternas e acumular tesouros sem limites nos Céus: 'Em verdade vos digo, quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campos, por causa de mim e do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, durante esta vida — casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições — e, no mundo futuro, a vida eterna' (Mc 10, 29 - 30).

ANJOS E DEMÔNIOS (I): SANTA GEMMA GALGANI


Para purificar os seus escolhidos e fazer deles vítimas de expiação, Deus se serve muitas vezes de satanás que, com o seu ódio ao homem, é em suas mãos o instrumento mais ativo. A Santa Escritura e sobretudo os registros da hagiografia oferecem-nos exemplos numerosos desta conduta da Providência Divina.

Quando o Senhor quis elevar São Paulo da Cruz a um grau mais eminente de santidade, disse-lhe no íntimo da sua alma: 'Fazer-te-ei calcar aos pés pelos demônios'. Gemma ouviu também um dia palavras semelhantes: 'Prepara-te, minha filha; por minha ordem o demônio vai declarar-te guerra e dar, por esta forma, o último retoque à obra que realizei em ti'. Podemos dizer que esta guerra foi geral, isto é, dirigida contra cada uma das virtudes e práticas por meio das quais a jovem virgem se esforçava em caminhar para Deus. Todas desagradavam ao anjo do mal, que as atacou com ódio feroz. Dir-se-ia que, no exercício do seu tenebroso império, não tinha outra preocupação senão perseguir esta pobre menina e procurar meios de a assaltar com tentações.

A oração é o alimento vital da santidade, o supremo caminho que conduz ao Soberano Bem. Desde há muito que Gemma a amava e praticava com todo o ardor da sua alma e devia-lhe bens inapreciáveis. O que não fez satanás por afastar a donzela da oração! Nada podendo conseguir com as suas inspirações perversas, provocava-lhe violentas dores de cabeça que teriam levado uma alma menos enérgica antes à indolência e ao repouso que à oração; experimentava mil outros meios para a desviar deste exercício divino. 'Oh!' dizia-me ela, 'que tormento para mim o não poder orar! Que fadiga eu sofro! E que esforços faz esse velhaco (assim chamava ao demônio) para me tornar a oração impossível! Ontem à noite queria matar-me, e tê-lo-ia feito se não fosse a rápida intervenção de Jesus. Eu estava desfalecida, tinha bem gravado na minha alma o Nome de Jesus, mas não me era possível proferi-lo com a língua'.

Algumas vezes o infernal inimigo tentava triunfar de um só ímpeto por meio de sugestões ímpias. 'Que fazes tu, lhe dizia, és louca de orar a um malfeitor? Vê como ele te atormenta e te conserva consigo sobre a cruz. Porventura podes amar quem não conheces e quem trata tão duramente os seus melhores amigos'? Estas blasfêmias não eram mais que poeira lançada ao vento, mas afligiam profundamente a alma terna e amante, obrigada a ouvir ultrajar assim o seu adorável Jesus.

No meio de tantos sofrimentos, a pobre menina procurava algum conforto no seu pai espiritual, apresentava-lhe as suas dificuldades, implorava conselho e direção. Este humilde e filial recurso não agradava ao espírito das trevas, que via assim diminuir as suas já tão pequenas probabilidades de êxito. Usou de mil artifícios para isolar na luta a Serva de Deus, afastando-a do diretor espiritual. Descreveu-o com as mais desprezíveis cores: como ignorante, um fanático, um iludido. ‘Nos últimos dias, escrevia-me ela, o maldito fez-me ‘boas’ [peças]. Este monstro queria privar-me do meu guia e conselheiro para me perder; não tenho, porém, receio de que o consiga.’

Parece que esta confiança em Deus deveria desarmar satanás, mas não desarmou. Perante a inutilidade de suas pérfidas insinuações, recorreu à violência física. Logo que Gemma tomava a pena para me escrever, tirava-a das mãos dela e rasgava o papel; algumas vezes, agarrando-a pelos cabelos, arrancava-a de junto da mesa com tal raiva que lhe ficavam nas mãos brutais madeixas inteiras; e ao mesmo tempo uivava com voz furiosa: ‘Guerra, guerra ao teu pai espiritual, guerra enquanto ele estiver no mundo!’ Seja-me lícito dizer, aqui só entre nós, que nunca passou das palavras. ‘Acreditai-me, Padre', dizia Gemma, 'ao ouvi-lo, vê-se que este velhaco odeia muito mais a vós do que a mim'.

O demônio levou a audácia até ao ponto de tomar as aparências do seu confessor ordinário. Um dia acabava a menina de entrar na igreja e preparava-se, esperando pelo sacerdote, para a recepção do sacramento da Penitência. Mas qual não foi o seu espanto ao vê-lo imediatamente no seu posto, sem que pudesse saber por onde é que tinha entrado! Sentiu uma grande perturbação interior, que era nela indício infalível da presença do espírito maligno. Entretanto aproximou-se e começou a confissão. A voz que ouvia era realmente a do confessor ordinário, mas as palavras eram escandalosamente indecentes e acompanhadas de atos desonestos. ‘Meu Deus', exclamou Gema, 'que é isto e onde estou'? A pura menina, tremendo dos pés à cabeça, permaneceu por um instante estonteada, depois sossegou, levantou-se, saiu do confessionário e verificou então que o pretendido confessor tinha desaparecido, sem que nenhuma das pessoas presentes o visse ir. Não havia dúvida: o demônio procurava, com este artifício grosseiro, surpreender a santa menina ou pelo menos tirar-lhe toda a confiança no ministro de Deus.

Tendo falhado este golpe, tentou outro. Apareceu sob a forma de um belo anjo resplandecente de luz e cheio de solicitude pela sua felicidade. Como com Eva no paraíso terrestre, empregou a mais sutil astúcia para conseguir enganá-la. ‘Olha para mim', dizia ele, 'posso tornar-te feliz; jura somente que me obedecerás'. Gemma, que desta vez não tinha sentido a perturbação reveladora da presença do demônio, ouvia tranquilamente. Mas, logo às primeiras propostas criminosas do espírito perverso, os olhos se lhe abriram e ela se pôs na defensiva. ‘Meu Deus, Maria Imaculada', exclamou a princípio, 'vinde em meu auxílio!’ Depois, avançando resolutamente para o anjo disfarçado, escarrou-lhe na cara. Desapareceu imediatamente sob a forma duma grande chama vermelha, deixando no assoalho do quarto um montão de cinza.

Algum tempo depois, novo assalto. ‘Ouvi, Padre' escrevia-me Gemma, 'ontem entrava eu em casa, depois de ter-me confessado. Aproveitando o momento de solidão, pus-me de joelhos para recitar a Coroa das Cinco Chagas. Ia a chegar à quarta chaga quando vi diante de mim uma pessoa muito parecida com Jesus. Estava flagelado de há pouco e do seu coração aberto corria sangue em abundância. Disse-me: ‘É assim, minha filha, que me correspondes? Considera o estado em que me encontro. Vês como sofro por ti? E não podes continuar a consolar-me com essas penitências? E no entanto era bem pouca coisa; podias muito bem retomá-las' – 'Não, não' respondi, 'quero obedecer e desobedeceria se vos atendesse' – 'Mas enfim, que confessor que as proibiu foi esse... Ora, tu de nenhum modo estás obrigada a obedecer-lhe'. E acrescentou muitas mais coisas. Nestes perniciosos conselhos reconheci satanás, e estava para tomar a disciplina, como das outras vezes em iguais circunstâncias, quando me senti diferentemente inspirada. Levantei-me, lancei-lhe água benta e desapareceu. Recuperei então a paz, não sem ter recebido alguns golpes com que a besta vil me gratifica de tempos a tempos'. Não obtendo outra coisa, o espírito do mal procurava assim levar Gemma, contra a proibição do diretor espiritual, a penitências prejudiciais à saúde.

Para protegê-la contra as visões maléficas, ordenei-lhe que a cada aparição sobrenatural exclamasse: 'Viva Jesus'! Nosso Senhor, sem eu o saber, tinha-lhe dado um conselho quase igual. Gemma devia dizer: 'Benditos sejam Jesus e Maria'. A dócil menina, para obedecer a ambos, juntava as duas exclamações. Os bons espíritos repetiam-nas sempre, mas os maus ou não respondiam ou se limitavam às primeiras palavras: 'Viva, benditos'. Por este sinal eram reconhecidos, e Gemma escarnecia deles.

Com a esperança de lhe inspirar o orgulho, o demônio mostrava-lhe algumas vezes em sonhos, ou mesmo estando acordada, uma procissão de pessoas vestidas de branco que se aproximavam piedosamente do seu leito para a venerar. Descobria-lhe também que as cartas para seu pai espiritual eram religiosamente conservadas com o fim de servirem um dia à sua glória. Vãs tentações, a Serva de Deus era suficientemente humilde para não se deixar levar como Eva pela sedução da vaidade.

Supondo abalar talvez a sua grande confiança em Deus, o maldito aproveitava as ocasiões tão frequentes de abandono e de cruel aridez espiritual para aumentar em sua alma o horroroso temor da condenação. ‘Não vês', lhe dizia, 'que Jesus não te escuta, que já te não quer conhecer? Para que afadigar-te em correr após ele? Só te resta resignar-te com a tua desgraçada sorte'. Para os santos foi sempre esta tentação a mais angustiosa. Gemma experimentava dele toda a violência; mas, habituada a recorrer ao seu Deus, apesar de tudo e em todas as circunstâncias, com a mais viva fé, como uma criança recorre a seu pai, depressa recuperava a serenidade. Por isso podia dizer-me: ‘Este celerado cansa-se; quereria ... Mas Jesus com suas palavras inspirou-me tal tranquilidade que todos os esforços diabólicos não poderiam tirar-me a confiança por um só momento'.

O anjo da soberba, furioso de ver que toda a sua astúcia se malograva aos pés de uma humilde donzela, num último recurso, tirou definitivamente a máscara, passando a atos de violência. Aparecia-lhe sob as formas horríveis de um monstro ameaçador, de um homem feroz, de um cão raivoso. Depois de ter assim procurado aterrorizá-la, precipitava-se sobre ela, batia-lhe, rasgava-lhe a pele, atirava-a de um lado para outro no quarto como se fôra uma rodilha; arrastava-a pelos cabelos e martirizava de todas as maneiras possíveis os seus inocentes membros. E não julguemos que tudo isso se limitava a impressões puramente imaginárias, porque os efeitos sobre o corpo da vítima persistiam por muito tempo: cabelos arrancados, carnes lívidas, ossos quase esmagados, dores atrozes. Algumas vezes ouvia-se o barulho das pancadas, via-se o leito mudar de lugar e elevar-se da terra para cair bruscamente. Estes vexames duravam sem interrupção horas inteiras e algumas vezes toda a noite.

Deixemos que Gemma fale a este respeito. A simplicidade do seu estilo e a ingênua sinceridade da sua alma dispensam-nos de fazer comentários: ‘Hoje, que me julgava livre desta besta vil, fui muito molestada por ela. Ia para me deitar, esperando poder dormir; não sucedeu, porém, assim. A princípio recebi uma pancada das mais terríveis, de que pensei morrer. O malvado tinha a forma de um grande cão negro, e punha-me as patas sobre os ombros. Tratou-me de tal modo que em um dado momento supus ter os ossos todos quebrados. Pouco depois, como eu tomasse água benta, torceu-me o braço com extrema violência e caí em dor. Os ossos estavam completamente deslocados, Jesus, porém, veio repô-los no seu lugar, tocando-os, e tudo ficou remediado'. Em outra carta, diz: 'Também ontem o demônio me afligiu. Minha tia mandou-me que fosse encher os jarros do quarto. Ao passar com os jarros na mão, diante da imagem do Coração de Jesus, dirigi-lhe com amor uma prece fervorosa; imediatamente senti darem-me sobre os ombros uma bastonada tão forte que cai por terra, sem nada quebrar. Ainda hoje me sinto muito mal e o menor trabalho me causa dor'.

A santa menina escrevia-me ainda: 'Acabo de passar, como de costume, uma noite má. O demônio apresentou-se diante de mim sob a figura de um imenso gigante e bateu-me durante toda a noite, dizendo: 'para ti já não há esperança de salvação, estás em meu poder'. Respondi que nada temia porque Deus é misericordioso. Então, espumando de raiva, deu-me uma grande pancada na cabeça e desapareceu gritando: 'maldita sejas'. Fui para o quarto repousar um pouco, mas tornei a encontrá-lo lá. Começou de novo a bater-me com uma corda toda aos nós. Batia-me por eu me opor a fazer o mal que sugeria. 'Não', lhe dizia eu; e ele redobrava as pancadas, batendo-me violentamente com a cabeça no chão. De repente tive a lembrança de implorar o auxílio do divino Pai de Jesus e exclamei: 'Pai Eterno, livrai-me pelo sangue preciosíssimo de Jesus'. Imediatamente o velhaco deu-me uma pancada formidável, atirou-me abaixo da cama e fez-me bater a cabeça no chão com tanta violência que perdi os sentidos com a dor. Só muito tempo depois os recuperei. Demos graças a Jesus'.

Estas cenas repetiam-se muito frequentemente, e, em certas épocas, todos os dias. A pobre padecente estava quase habituada a elas. Excetuando as torturas corporais, podemos dizer que a vista do monstro infernal já não a atemorizava. Olhava-o com a mesma serenidade com que a pomba olha para um animal imundo. Gemma algumas vezes entretinha-se a responder-lhe e a humilhá-lo, quando não estava proibida de o fazer; e, quando à invocação do Santíssimo Nome de Jesus, a hedionda besta se rolava por terra para fugir em seguida a toda pressa, a ingênua menina acompanhava-a com zombarias e francas gargalhadas. 'Se vísseis, Padre, como ele fugia e tropeçava em sua fuga raivosa, ter-vos-íeis rido comigo'.

Assistia eu uma ocasião à piedosa menina, gravemente doente e em perigo de vida. Sentado a um canto do quarto rezava tranquilamente o Breviário, quando um enorme gato muito preto e de aspecto terrificante me saltou impetuosamente para os pés. Deu uma volta pelo quarto, saltou para o leito da doente e colocou-se muito perto do seu rosto, fixando nela um olhar feroz. O sangue gelou-me nas veias; Gemma, porém, permanecia muito serena. 'Então! Que há de novo'? disse-lhe eu, ocultando o melhor possível a minha atrapalhação. 'Não tenhais medo, Padre, é esse velhaco do demônio que quer molestar-me, mas não temais, a vós não fará mal nenhum'. A tremer aproximei-me do leito, tomei água benta e aspergi-o. A visão desapareceu imediatamente, sem ter conseguido alterar por um só momento a paz profunda da doente.

A única coisa que aterrava verdadeiramente Gemma era o receio de ceder às sugestões do inimigo e ofender a Deus. Embora nunca tivesse caído durante o passado, o perigo parecia-lhe iminente e conservava-a aterrorizada. Não esquecia nenhum meio de defesa: Cruz, relíquias dos Santos, escapulários, exorcismos, e, acima de tudo, recurso filial a Deus, a Maria Santíssima, ao Anjo da Guarda e ao diretor de sua alma. Escrevia-me: 'Vinde depressa, Padre, ou ao menos daí fazei exorcismos, porque o demônio persegue-me por todos os modos; ajudai-me a salvar a alma, tenho medo de já estar nas mãos de satanás. Ah! Se soubésseis como sofro! Como ele estava contente esta noite! Agarrou-me pelos cabelos e puxava por eles dizendo: desobediência! desobediência! Quero concluir desta vez, vem, vem comigo! Queria levar-me para o inferno. Atormentou-me durante mais de quatro horas. Foi assim que se passou a noite. Tenho receio de o atender um dia ou outro e vir a desagradar a Jesus'.

Em algumas raríssimas ocasiões o Senhor permitiu ao demônio apoderar-se de todo o seu ser, ligar as potências da sua alma e perturbar-lhe a imaginação a tal ponto que se poderia julgar possessa. Causava dó vê-la neste estado miserável. Ela mesma tinha-lhe um tal horror que, só com lembrar-se dele, empalidecia e começava a tremer. 'Ó Deus', dizia ela, 'estive no inferno sem Jesus, sem a divina Mãe, sem o Anjo! Se saí de lá sem pecado só a Vós o devo, ó Jesus. Apesar de tudo, estou contente, porque sofrendo assim e sofrendo sempre, faço a Vossa santíssima Vontade'.

Se estes assaltos do demônio se tivessem repetido mais vastas vezes ou tivessem sido de mais longa duração, a pobre padecente, apesar de muito resignada, teria com certeza perdido a vida. A estas atribulações juntavam-se as dores de cruéis doenças, provocadas, como temos fortes razões para o crer, pelo próprio espírito infernal. E se refletirmos que Gemma estava ao mesmo tempo miraculosamente associada a todos os tormentos sofridos pelo divino Redentor na Sua Paixão, teremos uma ideia da grandeza do martírio desta virgem heróica, que se tinha oferecido em holocausto ao Senhor. Todavia, declarava-se feliz no meio deste mar de sofrimentos físicos e morais, feliz por se parecer assim com o Homem das Dores, por se elevar sempre mais nas puras regiões do amor divino e expiar, pela sua parte, os pecados do mundo.

Excertos da obra 'Gema Galgani, Virgem de Luca', do Pe. Germano de Santo Estanislau, tradução do Pe. Matos Soares, 1923).

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

ORÁCULO DAS ALMAS DO PURGATÓRIO (VI)

'Em 1870', diz o piedoso prelado [Monsenhor de Segur, narrando uma sua visita ao Convento das Terceiras Regu­lares Franciscanas da cidade italiana de Foligno] 'eu vi e toquei em Foligno, perto de Assis, na Itália, uma destas terríveis provas de fogo pelas quais as almas do purga­tório, por permissão de Deus, às vezes atestam que o fogo do purgatório é um fogo real. Em 1859, mor­reu de uma apoplexia fulminante a boa Irmã Teresa Gesta, que durante longos anos foi mestra das novi­ças. 

Doze dias depois, em 16 de novembro, uma Ir­mã, chamada Ana Felícia, subia à rouparia quando ouviu um angustioso e triste gemido: — 'Jesus! Ma­ria!' 'Que é isto'? exclamou assustada a Irmã. Não havia acabado de falar, quando ouviu uma queixa: 'Ai! Meu Deus! Meu Deus! Quanto sofro'! Irmã Ana reconheceu logo a voz da defunta Irmã Teresa. Um cheiro sufocante de fumaça encheu toda a rouparia e percebeu-se o vulto da Irmã Teresa que se dirigia para a porta e tocava na mesma com a mão direita, dizendo: 'Aqui fica a prova da misericórdia de Deus'. 

E na madeira da porta ficou carbonizada e impressa a mão da defunta, que desapareceu. Irmã Ana pôs-se a gritar numa grande excitação nervosa. A comu­nidade correu para acudi-la e sentia-se um cheiro sufocante de fumaça. A Irmã contou o que se passara e reconhecem todas, na mão pequenina gravada no por­tal, a mão da Irmã Teresa, que se distinguia muito pela sua pequenez e delicadeza. As Irmãs, comovi­das, vão ao coro e oram pela defunta. Passam a noi­te em oração e penitências em sufrágio da saudosa mestra de noviças. No dia seguinte oferecem a Santa Comunhão por aquela alma. Mais um dia se passa e Irmã Ana Felícia ouve e vê depois Irmã Teresa radiante de glória toda bela, que lhe diz com doce voz: 'Vou para a glória! Sede fortes e corajosas na luta, fortes em carregar a cruz' E desapareceu numa luz brilhantíssima.

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Num convento capuchinho, em 1618, um noviço muito fervoroso caiu enfermo e em poucos dias expirou. O Padre Guardião estava ausente e não pode lhe dar a última absolvição, o que muito o penalizou e, por isto, multiplicou as orações e sufrágios pela alma do seu filho espiritual. Rezava pelo noviço de­pois da Matinas, no coro, quando a alma deste lhe aparece cercada de chamas: 'Ai! Meu Padre, não pu­de receber a vossa absolvição e havia cometido uma falta leve e por ela sofro horrorosamente no purgatório. Venho pedir a vossa bênção e uma penitência e ficarei livre'.

— 'Meu filho', responde o Padre Guardião tre­mendo, 'eu te abençoo quanto posso e por penitência ficarás no purgatório até à hora da Prima somente'. Faltavam duas horas para que os frades recitas­sem o Ofício. O Padre julgou uma leve penitência esta espera de duas horas no purgatório. Apenas ou­viu isto, a alma do noviço soltou um gemido doloroso de arrepiar e desapareceu, dizendo: 'Ah! Pai sem co­ração! Pai que não tem dó de um filho que padece tanto! Ó não sabeis o que é sofrer no purgatório'!

O Padre Guardião sentiu arrepiarem-se os ca­belos, e trêmulo e pálido, compreendeu neste momen­to o que é o sofrimento do purgatório, onde cada mi­nuto parece um século. Tocou logo o sino, reuniu a comunidade e mandou que se rezasse o Ofício imedia­tamente pela alma do noviço falecido, contando a ter­rível aparição. Fez a todos um sermão sobre o pur­gatório e a eternidade, repetindo as palavras de San­to Anselmo: 'Depois da morte a menor das penas que nos esperam é maior do que tudo que se possa padecer neste mundo. As menores faltas são punidas seve­ramente'.

(Excertos da obra 'Tenhamos Compaixão das Pobres Almas!' de Monsenhor Ascânio Brandão, 1948)

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

GLÓRIAS DE MARIA: NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO


A palavra Rosário vem do latim Rosarium, que significa 'Coroa de Rosas'. Nossa Senhora é a Rosa das rosas, Rainha das rainhas, sendo chamada, então, Rosa Mística (como é invocada na Ladainha Lauretana), Rainha das Rosas de todas as devoções, Nossa Senhora do Rosário. Se, a cada Ave Maria, adorna-se a Mãe de Deus com uma rosa espiritual, o Rosário adorna Maria com uma Coroa de todas as Rosas.

O Santo Rosário é a oração mais perfeita e o instrumento mais poderoso que nos é concedido pela Divina Providência para vencer o pecado e as tentações diabólicas. Com o rosário, recordamos o memorial da Paixão de Jesus Cristo e meditamos os mistérios de gozo, dor e glória de Jesus e Maria. Pelo Rosário, a terra se une aos céus, e nós a Nossa Senhora, no louvor ao Senhor nosso Deus. Com o Rosário, alcançamos a paz de coração e a salvação eterna da alma. Pelo Rosário, obtemos a remissão pela culpa e pela pena dos nossos pecados, tornamo-nos herdeiros dos méritos infinitos da Paixão de Jesus e invocamos sobre nós e nossas famílias as graças extraordinárias da Misericórdia Divina. 

A origem do Rosário é antiga, mas se formalizou por meio de uma famosa aparição de Nossa Senhora a São Domingos de Gusmão. No seu ferrenho combate e conversão dos seguidores da seita herética dos albigenses, São Domingos defrontou-se com terríveis dificuldades e perseguições, devido à dureza espiritual daquelas almas. Retirou-se, então, em oração, para um lugar ermo situado nos arredores de Toulouse e suplicou a intercessão da Virgem Maria para os bons propósitos de tão dura missão. 

As suas preces extremadas foram atendidas e o santo recebeu uma aparição de Nossa Senhora que lhe entregou o Rosário (também chamado Saltério de Maria, em referência aos 150 salmos de Davi), ensinando-o como rezá-lo e assegurando ser esta a arma mais poderosa para se ganhar as almas para o Céu. Este evento, respaldado por numerosos documentos pontifícios, é narrado na obra 'Da Dignidade do Saltério', do Bem-Aventurado Alain de la Roche (1428 – 1475), célebre pregador da Ordem Dominicana. Com o Rosário em punho, São Domingos pregou incansavelmente na França, Itália e Espanha a devoção que a própria Senhora do Rosário lhe havia ensinado, convertendo os hereges e os tíbios, e erradicando por completo naqueles países a heresia albigense.


Graças, louvores e indulgências sem conta estão associadas à oração devota do Santo Rosário. Rezai-o sempre, rezai-o todos os dias! O maior milagre que o Rosário pode nos proporcionar é nos fazer plenamente dignos das promessas de Cristo e nos elevar de criaturas humanas na terra a herdeiros diretos do Céu ainda nesta vida.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

15 MÁXIMAS DE SANTO AFONSO DE LIGÓRIO


1. Antes perder tudo que perder a Deus.
2. Cada momento vale um tesouro para a eternidade.
3. Vivei como se no mundo só houvesse Deus e vós.
4. A dor, a pobreza e a humilhação foram as companheiras de Jesus Cristo; que sejam também as nossas.
5. Que os santos cuidem de ser ser santos, e não de o apenas parecerem.
6. Quem não amar muito a oração, jamais chegará a um alto grau de perfeição.
7. Todo o apego impede de se ser inteiramente de Deus.
8. Fazei sempre o que gostaríeis de fazer à hora da morte.
9. Nenhum bem de verdade há senão Deus; nenhum mal de verdade senão o pecado.
10. Quem quer o que Deus quer tem tudo o quanto precisa.
11. Perturbar-se com as faltas cometidas não é humildade, mas orgulho.
12. Quem ama a Deus, mais deseja amar do que saber.
13. Quando se pensa no inferno que se mereceu, sofrem-se com resignação todas as penas.
14. Esquecei-vos de vós mesmos, e Deus pensará em vós.
15. Quem busca ser muito estimado, tem pouca estima de Deus.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

DA VIDA ESPIRITUAL (85)

(diante do filho brincando no tapete da sala)

Pai, eu Vos louvo por fazer de mim instrumento vivo do vosso Infinito Amor. Por mim, criaste um novo homem e, através da minha família, semeaste a vinha... Que o meu filho aprenda a contemplar a vossa glória e a viver a vossa santa vontade. Que ele obtenha de Vós a graça de ser semente fecunda, rebento de oliveira e árvore de abundantes frutos. E que um dia, diante de Vós, ele possa ser testemunha de que andei pelos vossos caminhos e que combati o bom combate!