segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

GALERIA DE ARTE SACRA (IV)

O Museu de Arte de São Paulo (MASP) apresenta atualmente (até 27/01/2013) a mostra 'Luzes do Norte', compreendendo 61 gravuras e desenhos sobre papel que traduzem a melhor arte do Renascimento alemão. Nas obras, é possível avaliar a evolução da influência da tradição gótica até as inovações de perspectiva herdadas da Renascença italiana. A mostra contém, entre outras, obras de dois artistas geniais deste período: Martin Schongauer (1450? - 1491) que viveu em Colmar, região do Alto Reno, atual Alsácia e Albrecht Dürer (1471 - 1528), filho de um mestre ourives e que viveu em Nuremberg. 

Os dois artistas, embora contemporâneos, não se conheceram. Dürer viajou até Colmar, para encontrar Schongauer, àquela época, já conhecido como um dos maiores gravadores do seu tempo, mas este havia falecido alguns meses antes. Na oficina de Schongauer, então sob o encargo de seus irmãos, Dürer conheceu o trabalho daquele artista. Nas duas gravuras abaixo, a mesma cena da Noite de Natal (não incluídas na mostra do MASP) são reproduzidas pelos artistas, evidenciando o nível de perfeição atingido por ambos no desenvolvimento da arte gótica (imitação da natureza) associada ao extraordinário domínio das técnicas mais elaboradas da arte renascentista italiana.

Schongauer - A Santa Noite (1475)

Dürer - Natividade (1504)

domingo, 13 de janeiro de 2013

O BATISMO DO SENHOR

O Batismo de Cristo - Bartolomé Murillo (1618 - 1682)

No Evangelho do Batismo do Senhor, encerra-se na liturgia o tempo do Natal. João Batista, nas águas do Jordão, realizava um batismo de penitência, de ação meramente simbólica, pois não imprimia ao batizado o caráter sobrenatural e a graça santificante imposta pelo Batismo Sacramental, instituído posteriormente por Nosso Senhor Jesus Cristo: ' Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo' (Lc 3, 16).

O Batismo de Jesus constitui, ao contrário, um ato litúrgico por excelência, pois o Senhor se manifesta publicamente em sua missão salvífica. Chega ao fim o tempo dos Profetas: o Messias tão anunciado torna-se realidade diante o Precursor nas águas do Jordão. E o batismo de Jesus é um ato de extrema humildade e de misericórdia de Deus: assumindo plenamente a condição humana, Jesus quis ser batizado por João não para se purificar pois o Cordeiro sem mácula alguma não necessitava do batismo, mas para purificar a humanidade pecadora sob a herança dos pecados de Adão. Ao santificar as águas do Jordão e nelas submergir os nossos pecados, Jesus santificou todas as águas do Batismo Sacramental de todos os homens assim batizados.

Ao receber o batismo de João, Jesus rezava: 'E, enquanto rezava...' (Lc, 3, 21). E, enquanto Jesus rezava, "o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre Jesus...' (Lc, 3, 21-22). O Espírito Santo manifesta-se diante da oração proferida na intimidade com o Pai, sem anelos de vanglória e clamor. Oração humilde, profunda, de absoluta confiança e louvor ao Pai, que induz a primeira manifestação da Santíssima Trindade, ratificada pela pomba e pela voz que vem do Céu: 'Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer' (Lc, 3, 22). No batismo do Jordão, manifesta-se em plenitude a divindade de Cristo. 

Eis a síntese da nossa fé cristã, expressa nas palavras da primeira Carta de João: 'Deus é amor; quem permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele' (1 Jo 4, 16). No Jordão, o céu se abriu para o Espírito Santo descer sobre a terra. No Jordão, igualmente, manifestou-se por inteiro o perdão e a misericórdia de Deus e a graça da salvação humana por meio do batismo. Com o batismo de Jesus, e a partir do batismo de Jesus, tem início a vida pública do Messias preanunciado por gerações. Esta liturgia marca o início do Tempo Comum, período em que a Igreja acompanha, a cada domingo, a cada semana,  as pregações, ensinamentos e milagres de Jesus sobre a terra, o tempo em que o próprio amor de Deus habitou em nós. 

sábado, 12 de janeiro de 2013

A FÉ EXPLICADA (VIII)

O SACRAMENTO DO BATISMO

Nascemos com a plenitude da natureza humana e com uma alma sobrenaturalmente morta. Herança do pecado original, primeiro pecado da humanidade, pecado primeiro de Adão. E pecado gravíssimo, pois apagou na alma do primeiro homem a graça santificante, ou seja, a presença viva de Deus na alma humana. E como Adão era o todo o gênero humano naquele evento crucial, as consequências do pecado original foram incondicionalmente herdados por todos os seus descendentes, por toda a humanidade, até o último homem sobre a face da terra. 

Esta herança perdida no primeiro homem, pode ser restaurada por completo em qualquer outro ser humano por meio do sacramento do batismo instituído por Jesus. O batismo concede-nos a primeira graça santificante, perdoa-nos o pecado original (e todos os demais pecados porventura existentes), redime toda a pena associada a todos os pecados existentes e cometidos, torna-nos cristãos, membros da Igreja, herdeiros do céu e passíveis de receber todos os demais sacramentos. Com o batismo, não somos mais peregrinos da terra a caminho do céu; somos bem mais do que isso: somos do céu e ainda estamos cristãos no mundo.

O batismo nos reveste de Cristo, ou seja, torna-nos co-participantes com Cristo de toda as graças divinas e, somente pelo batismo, podemos ser herdeiros com Cristo na vida eterna. Nas palavras de Jesus: 'Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura. Aquele que crer e for batizado será salvo. Aquele, porém, que não crer, será condenado' (Mc 16, 15-16). Portanto, o batismo não apenas nos inclui, de forma definitiva e absoluta, na vida espiritual, mas nos contempla com contínuas e incessantes graças e privilégios espirituais para a consumação plena de nossa santificação. O batismo é a forja que nos torna filhos de Deus.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O CALVÁRIO E A MISSA

Que estas extraordinárias reflexões sobre o calvário e a santa missa, do arcebispo americano Fulton Sheen (1895 - 1979), possam trazer-nos à realidade profunda desse santo mistério que constitui o maior acontecimento da história da humanidade.


Há certas coisas na vida que são demasiado belas para serem esquecidas como, por exemplo, o amor de mãe. O retrato daquela que nos deu o ser é para cada um de nós uma espécie de tesouro.

O amor dos soldados que sacrificaram as suas vidas pelo seu país é também demasiadamente belo para que o deixemos cair no olvido e, por isso, prestamos homenagem à sua memória. 

A maior bênção, porém, de quantos vieram ao mundo, foi, certamente, a visita do Filho de Deus, sob a forma humana. À Sua vida, superior a todas as vidas, é demasiadamente bela para ser esquecida, e é por isso que exaltamos a divindade das Suas palavras na Sagrada Escritura, e a caridade dos Seus feitos nas nossas ações de cada dia.

Infelizmente, algumas almas limitam-se apenas a estas lembranças quando, na verdade, por muito importantes que sejam essas palavras e ações, não são a maior característica do Divino Salvador.

O ato mais sublime da história de Cristo foi a Sua Morte. A morte é sempre importante porque sela um destino. Qualquer homem moribundo representa um cenáculo, e este é sempre um lugar sagrado. A literatura do passado deu especial relevo às emoções que rodeiam a morte, e é essa a razão pela qual ela nunca passou de moda. De todas as mortes registradas no mundo dos homens, nenhuma, no entanto, foi tão importante como a morte de Cristo.

Todo aquele que nasceu veio ao mundo para morrer. A morte foi um triste ponto final para a vida de Sócrates, mas foi uma coroa para a vida de Cristo. Ele próprio nos disse que veio 'para dar a Sua vida pela redenção de muitos'. Ninguém poderia tirar-Lha, mas Ele podia dá-la voluntariamente.

Se, portanto, a morte foi o principal momento para o qual Cristo viveu, ela foi também a única coisa pela qual Ele quis ser lembrado. Jesus não pediu aos homens que registrassem as Suas palavras numa Escritura, nem tão pouco que a Sua bondade para com os pobres ficasse gravada na história; mas pediu que os homens recordassem a Sua morte. Para que essa memória não fosse entregue ao acaso das narrativas humanas, Ele próprio instituiu a maneira como devia ser lembrada.

Essa memória foi instituída na noite anterior à Sua morte e, desde então, se chamou 'A Última Ceia'. Tomando o pão nas Suas mãos, Jesus disse: 'este é o Meu Corpo que se dá por vós; fazei isto em memória de Mim'. Tomou também depois, da mesma maneira, o cálice, dizendo: 'Este é o cálice do Novo Testamento em Meu Sangue que será derramado por vós' (S. Lucas, 22,19-20).

E, assim, num símbolo incruento da separação do Sangue e do Corpo, pela consagração do Pão e do Vinho, Cristo oferece-Se à vista de Deus e dos homens, e representou a Sua morte que devia ocorrer às três horas da tarde do dia seguinte. Ele oferecia-Se para ser imolado como vítima, e para que os homens nunca esquecessem que jamais homem algum dera maior prova de amor do que Aquele que renunciava à vida, em favor dos Seus amigos, e deu à Igreja esta ordem divina: 'Fazei isto em memória de Mim'.

No dia seguinte, Jesus realizou em toda a plenitude a cerimônia simbólica da véspera, pois foi crucificado entre dois ladrões; e o Seu sangue foi derramado pela redenção do mundo.

A Igreja que Cristo fundou, não só preservou a palavra que Ele proferiu como ainda o ato que praticou, no qual nós recordamos a Sua morte na Cruz, e que é o Sacrifício da Missa – memória da Última Ceia e prefiguração da Paixão de Jesus. Por esta razão, a Missa é, para nós, o ato culminante da amizade cristã.

O púlpito, onde as palavras de Jesus são repetidas, não nos une a Ele; o coro, no qual os suaves sentimentos são cantados, não nos aproxima tanto da Sua Cruz. Um templo sem altar de sacrifício não existiu entre os próprios povos primitivos, e nada significa entre os cristãos. Na Igreja Católica é, pois, o altar, e não o púlpito, ou o coro, ou o órgão, que representa o centro de amizade, pois é ali que se renova a memória da Paixão. O valor do ato não depende daquele que o celebra, mas sim e apenas do Sumo Sacerdote e Vítima, Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ali estamos unidos com Ele, a despeito da nossa insignificância; de certa maneira, perdemos a nossa individualidade, durante aquele espaço de tempo; unimos o nosso espírito, a nossa vontade, o nosso corpo, a nossa alma e o nosso coração tão intimamente com Jesus que o Pai Celeste não é a nossa imperfeição que vê, pois contempla-nos através de Aquele que é o Seu Filho Bem-Amado, no qual Ele pôs toda a Sua complacência.

A Missa é o maior acontecimento da história da humanidade: o único Ato sagrado que afasta a ira de Deus de um mundo pecador, porque eleva a Cruz entre a terra e o Céu, renovando assim aquele decisivo momento em que a nossa triste e trágica humanidade viu desenrolar-se na sua frente o caminho para a plenitude da vida sobrenatural.

O que é importante acentuar é a atitude mental que cada um de nós deve adotar perante a Missa, não encarando o Santo Sacrifício da Cruz como um acontecimento ocorrido há mil e novecentos anos, mas sim 
como um fato acontecido em todas e cada uma das ocasiões em que a ele assistimos. Esse acontecimento não pertence ao passado, tal como a Declaração do Dia da Independência, pois é um drama permanente, sobre o qual o pano ainda não desceu. Não, não pensemos que o fato ocorreu há muito e não nos diz, portanto, mais respeito do que qualquer outro fato ocorrido no passado.

O CALVÁRIO PERTENCE A TODOS OS TEMPOS E A TODOS OS LUGARES.

E foi por isso que Jesus, quando subiu ao alto do Calvário, estava praticamente despojado das Suas vestes. Ele poderia ter salvo o mundo sem ter revestido os atavios de um mundo transitório. A Sua túnica pertencia ao tempo, e localizava, fixava Jesus como um habitante da Galileia.

Agora, porém, despojado das Suas vestes e completamente desapossado das coisas terrenas, Ele não pertencia à Galiléia, nem a qualquer província romana, mas sim ao mundo. Jesus transformara-Se no pobre homem universal, que não pertencia a qualquer povo, mas sim a todos os povos. Para exprimir com maior amplitude a universalidade da Redenção, a cruz foi erguida nas encruzilhadas da civilização, num ponto central, entre três grandes culturas – Jerusalém, Roma e Atenas, em nome das quais Ele fora crucificado. 

A cruz foi, assim, erguida perante os olhos dos homens para chamar a atenção do negligente, fazer apelo ao desleixado, e despertar as consciências adormecidas. Foi o único fato irrefutável ao quais as culturas e civilizações do Seu tempo não puderam resistir, e é também nos nossos tempos o único fato irrefutável que não podemos deixar de aceitar.

Os personagens que tomaram parte do drama da cruz foram os símbolos de todos aqueles que crucificaram. Nós estivemos lá, nas pessoas dos nossos representantes. Os que atualmente fazemos ao Cristo Místico fizeram-no eles ao Cristo histórico, em nosso nome. Se temos inveja dos bons, fomos representados pelos Escribas e Fariseus. Se hesitamos em abraçar a Verdade e o Amor divino, receando perder algumas vantagens temporais, estivemos lá, na pessoa de Pilatos. Se a nossa confiança é baseada na força material e procuramos conquistar o mundo por meio dela, em vez de o fazermos através da força espiritual, fomos representados por Herodes. 

E, assim, a história continua, e implica em si todos os pecados característicos do mundo, pecados que nos cegam para o fato de que Jesus é Deus. Havia portanto, uma irrefutável certeza na crucifixão. Os homens que tinham a liberdade para pecar, também a tinham para crucificar. Enquanto o pecado existir no mundo, a crucifixão é uma realidade. Assim o comentou o poeta:

'Eu vi passar o Filho de Deus.
Coroado de espinhos...
E perguntei: Pois não está tudo consumado?
Senhor, as amarguras não estão esgotadas?
Jesus volveu para mim um olhar terrível
E disse-me: Pois não compreendeste?
Toda a minha alma é um calvário,
Todo o pecado é uma cruz.'

Nós tivemos lá durante a crucifixão. O drama estava já completo, em tudo quanto dizia respeito a Cristo, mas não estava ainda patenteado, em relação a todos os homens, a todos os lugares e a todos os tempos. Se a bobina em volta da qual está enrolado o filme tivesse consciência própria, ela conheceria o argumento de um drama, do princípio até ao fim, ao passo que o espetáculo não poderia, de fato, conhecê-lo, senão depois de o ver completamente reproduzido na tela. 

Da mesma maneira, Nosso Senhor, pregado na Cruz, viu a Sua eterna vontade, todo o drama da história, a história de cada alma e a hora em que cada uma delas reagiria perante a Sua crucifixão; embora, porém, Ele visse tudo, nós não poderíamos saber como reagiríamos perante a Cruz, antes que as nossas vidas tivessem sido projetadas sobre a tela do tempo. Nós não tínhamos a consciência de havermos estado presentes no Calvário, naquele dia, mas Jesus tinha a consciência da nossa presença. 

Hoje, todavia, sabemos qual o papel que desempenhamos no cenário do Calvário, pela maneira como vivemos e agimos no cenário do Século Vinte. E é nisto que reside a atualidade do Calvário, a razão pela qual a cruz é a crise, e o motivo pelo qual, de certa maneira, as chagas ainda estão abertas, a dor divinizada, e as gotas de sangue, à maneira de estrelas, caem ainda sobre as nossas almas.

Não é possível fugirmos à cruz, a não ser que façamos o que fizeram os Fariseus ou vendendo Cristo, como o fez Judas, ou crucificando-O, tal como fizeram os seus carrascos. Todos nós vemos a Cruz, quer para abraçá-la, para nos salvarmos, quer fugindo dela, para nos perdermos.

Como é, porém, que a cruz se torne visível? Como se perpetuou e renovou o cenário do Calvário? No Santo Sacrifício da Missa, porque, quer no Calvário, quer durante o Santo Sacrifício, o Sacerdote e a Vítima são os mesmos. As sete palavras derradeiras são idênticas às sete partes da Missa. Assim como as sete notas musicais comportam uma infinita variedade de harmonias e combinações, também na Cruz há sete notas divinas que o Cristo moribundo fez soar através dos séculos e que, no seu conjunto, constituem a sublime melodia da Redenção do mundo.

Cada palavra é uma parte da Missa. A primeira, 'Perdoai-lhes', representa o Confiteor; a segunda, 'Hoje estarás comigo no paraíso', é o Ofertório; a terceira, 'Mulher, eis aqui o teu filho', é o Sanctus; a quarta, 'Por que me abandonaste?', é a Consagração; a quinta. 'Tenho Sede', é a Santa Comunhão; a sexta, 'Tudo está consumado', é o 'Ite missa est'; a sétima, 'Pai, nas Vossas mãos entrego o Meu espírito', é o Último Evangelho.

Representai, pois, na vossa idéia, o Sumo Sacerdote, Cristo, saindo da sacristia do Céu para o altar do Calvário. Ele já se revestiu da nossa natureza humana, colocou no braço o manípulo do nosso sofrimento, a estola do sacerdote, a casula da Cruz. O Calvário é a Sua Catedral; a rocha do Calvário é a pedra do altar; o rubor do sol poente a lâmpada do Santuário; Maria e João são as imagens vivas dos altares laterais; a Hóstia é o Corpo de Jesus; o vinho o Seu sangue. Ele está de pé, como sacerdote, e prostrado, como vítima.

A Sua Missa vai começar.

ABERRAÇÕES LITÚRGICAS (I)

Catedral de Liverpool, seis de janeiro de 2013. Missa 'solene' em honra às relíquias de São João Bosco, celebrada pelo Monsenhor Tom Williams, bispo auxiliar daquela diocese. Missa solene? Durante o ofertório e após a Santa Comunhão, grupos de jovens fazem uma espécie de contorcionismo coreográfico, capaz de ensejar uma ovação final sob a forma de palmas. São João Bosco não merecia isso, nem a Santa Igreja. 

Os católicos de hoje, tão ignorantes de sua fé, não sabem sequer o valor e a sacralidade intrínseca ao ritual da Santa Missa e profanam a Deus de forma conjunta, como cúmplices de um sacrilégio desta natureza, consumado num teatro litúrgico do mais puro paganismo. Filhos e filhas de Deus de infinita misericórdia, numa missa, estais todo o tempo diante o Calvário de Nosso Senhor Jesus Cristo!

(o início do vídeo cita equivocadamente a data como sendo 06 de janeiro de 2012)

Ao final do vídeo, aparece a seguinte frase do Papa Bento XVI, extraída de sua obra 'Introdução ao Espírito da Liturgia': 'Onde quer que o aplauso se irrompa à liturgia por causa de alguma manifestação humana,  tem-se um sinal seguro de que se perdeu toda a essência da liturgia, que foi substituída por uma espécie de mero entretenimento religioso'.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

DA VIDA ESPIRITUAL (39)




Algumas vezes, sentes profunda decepção porque não colocas na prática cotidiana com teus irmãos os anseios e valores espirituais de tua alma e coração... Faças o propósito de melhorar neste sentido: a forma mais fácil é ver, em cada um, Jesus passando a todo instante pela tua vida...

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (VI)

O velho Nicolau virou o corpo um centésimo de volta buscando uma posição mais confortável na velha cama do hospital. O rangido de molas pressionadas varou a escuridão do pequeno quarto. Devia ter sido a décima vez nos últimos cinco minutos e, como sempre, ele buscava divisar alguma movimentação no vulto adormecido na outra cama, junto a única janela do quarto. Nada. O velho Simeão parecia morto, dormindo profundamente, virado para a parede. Naquela escuridão, por mais estranho que fosse, ele conseguia enxergar melhor. As bolhas espalhadas pelo seu corpo também comprimiam as suas pálpebras mas, na ausência de luz direta, ele as podia abrir sem dor e sem distorção visual e fixar um objeto por algum tempo. De dia, as coisas e as formas tingiam-se de todos os reflexos na redoma das bolhas opacas dos cantos dos olhos; ainda que se mirasse com um mínimo de acuidade visual, as imagens eram borrões assimétricos feito vertigens no fundo de suas retinas.

Voltou o corpo à centimétrica posição anterior, no anseio vão de dispor um espaço do corpo livre das chagas no colchão macio e puxou o cobertor para cima. E ainda precisava estas madrugadas tão frias! O cobertor pesado ajudava a pressionar as feridas e aumentava o desconforto das bolhas cheias de pus e secreção. O rangido era a certeza de que ainda estava vivo, mas até quando? Para que Deus lhe dava tanto sofrimento, se ele tinha sido um bom homem, um bom cristão? Para que tantas pomadas e remédios, se o único sedativo que valeria realmente a pena seria o de simplesmente não acordar amanhã? A sua única ambição era ser aquela cadeira inanimada e inútil, no canto do quarto, que só servia para ser cabide para o paletó do velho Simeão. Cadeira inútil pois sem valia alguma, já que não havia ninguém, absolutamente ninguém, que pudesse vir visitar dois velhos doentes e cansados. Seus filhos, parentes, família? Cada um seguiu a sua lida e o asilo tinha sido a concessão máxima possível para se livrar de um velho cheio de manias e prestes a caducar de vez. A doença viera a cavalo e sabe-se lá se algum deles sequer soubessem dela. Era melhor assim, a simples rejeição deles tinha agora o ar de fraterna devoção.

Forçou a vista para distinguir o espectro do paletó ancorado no espaldar da cadeira.Virou-se para a parede e forçou a vista para divisar o companheiro de quarto. Era um bom companheiro. Nunca reclamara do fato de a janela ficar sempre fechada para que a claridade não queimasse suas retinas em bolhas. E, mesmo assim, ele era os olhos dos dois, na penumbra, na escuridão daquele quarto, naquele mundo de sombras. Sim, pois todo dia, ao cair da tarde, o velho Simeão colocava o paletó, abria um sopro de janela, sentava-se na cama e contava, com detalhes e riqueza inigualável, as cenas da vida que explodia transbordante na rua em frente do hospital, vista e revista por um pequeno desvão de janela. Era a hora mais bendita do dia, bálsamo maior de todos os sedativos, um pequeno milagre de calmaria no oceano de suas dores. Naquela hora de graça, Nicolau deitava-se de costas, fechava os olhos e sua mente passeava na rua dos sonhos mais belos que já foram sonhados.

O seu amigo de quarto tinha os olhos de um artista e era um mestre na arte de descrever pessoas, eventos, cenas prosaicas, gestos caricatos. Como gostaria de ver, ainda que por um breve instante, a moça 'que tinha o sorriso mais bonito do mundo'; a dona do carrinho de pipoca, o velho artista de circo, as crianças indo para a escola, o rapaz carregando coisas impossíveis sobre uma bicicleta, a senhora gorda tentando correr atrás das filhas, o japonês de cabelo louro, o homem de avental, a confusão para subir no ônibus, os dois velhos sentados no banco da pracinha, o mendigo na porta da padaria, o rapaz da cadeira de rodas, a florista dorminhoca, o zelador do prédio da esquina, a gente das ruas. E, inveja das invejas, se ele, os olhos de Simeão tivesse, olharia mais uma vez, a última vez que fosse, o céu azul, as nuvens de chuva, o sol do meio dia.  

O velho Nicolau acordou assustado com a voz do enfermeiro, trazendo o material para a aplicação de compressas e para drenagem das bolhas. Então, já era manhã avançada! Por alguma razão especial, o sono viera pesado e por muitas horas. Sentia um estranho alívio e uma enorme disposição para se submeter àquela pequena tortura, que se repetia a cada manhã. 

'Seu Nicolau - o enfermeiro parecia mais cuidadoso do que nos outros dias - infelizmente seu colega de quarto faleceu esta noite'.

O velho homem buscou a cama da parede e a cadeira no canto do quarto, quase com os olhos sem bolhas. A cama estava vazia e já arrumada. O paletó não estava mais sobre a cadeira vazia. Mas os olhos do velho homem ficaram petrificados na janela totalmente aberta e na penumbra completa do quarto. 

'Mas como - a voz do velho Nicolau era um arremedo de voz na garganta cheia de feridas - a janela está toda aberta?'

'O senhor quer que ela também fique fechada?' - o enfermeiro o olhou com ar de espanto. 'Seu Simeão não nos deixava abri-la de jeito nenhum, mesmo a gente dizendo que ela dava para uma parede e a luz não iria incomodar o senhor'.

'Parede? Mas ele me contava tantas coisas que via acontecer na rua em frente...' - a voz do velho agora era um sussurro.

'Desculpe-me, seu Nicolau, mas o velho Simeão não podia ver coisa alguma, pois era cego de nascença!'.

Quando a agulha começou a punção da primeira bolha, o velho Nicolau sorriu, fechou os olhos e começou a imaginar as longas histórias que haveria de contar um dia ao velho Simeão.