quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O QUE PODE SER MAIS ODIOSO QUE O RESPEITO HUMANO?

Não há nada, meus irmãos, de mais glorioso e de mais honrável para um cristão do que carregar o nome sublime de filho de Deus, de irmão de Jesus Cristo. Da mesma forma, não há nada de mais infame do que ter vergonha de manifestar isso todas as vezes que surge a ocasião. Não, meus irmãos, não nos admiremos ao ver os hipócritas demonstrarem o quanto podem um exterior de piedade para atrair sobre si a estima e os louvores do homem, enquanto que seus pobres corações são devorados pelo pecado mais infame.

Estes cegos gostariam de gozar das honras que estão inseparáveis da virtude, sem ter o trabalho de praticá-las. Além do mais, não nos admiremos ainda menos ao ver bons cristãos esconder o tanto quanto podem suas boas obras aos olhos do mundo, temendo que a glória inútil se insinue em seu coração e que os vãos aplausos dos homens lhes façam perder o mérito e a recompensa delas.

Entretanto, meus irmãos, onde encontraremos uma covardia mais criminosa e uma abominação mais detestável que, professando crer em Jesus Cristo, na primeira ocasião violamos as promessas que lhe fizemos sobre as fontes sagradas do batismo? Ah! infelizmente, o que nos tornamos? Quem é Aquele que renegamos? Aí de mim! Abandonamos nosso Deus, nosso Salvador, para nos dispor entre os escravos do demônio, que nos engana e que busca apenas nossa perda e nossa infelicidade eterna. Ó! maldito respeito humano! Como tu arrastas almas para o inferno!

Com efeito, em que acabou toda a fúria dos perseguidores da Igreja, dos Neros, dos Maximianos, dos Dioclecianos, e de tantos outros que acreditaram que, pela força de suas armas, eles conseguiriam fazê-la desaparecer da terra? Ocorreu totalmente o contrário, o sangue de tantos mártires serviu, como diz Tertuliano, apenas para fazer florescer a religião mais do que nunca, e seu sangue parecia uma semente que produzia o cêntuplo.

Infelizmente! Que lhes fizestes esta bela e santa religião para eles a perseguirem tanto, visto que somente ela pode tornar o homem feliz sobre a terra? Infeliz deles! Quantas lágrimas e quantos gritos eles lançam agora nos infernos, aonde eles reconheceram tão claramente que esta religião, contra a qual eles se lançaram, tê-los-ia conduzido ao céu. Entretanto, lamentos inúteis e supérfluos!

Vejam ainda estes outros ímpios que fizeram tudo o que podiam para destruir nossa santa religião por seus escritos, tais como Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, Diderot, d’Alembert, Volney e tantos outros, que passaram suas vidas apenas a vomitar por seus escritos tudo o que o demônio podia lhes inspirar. Ai deles! Eles fizeram muito mal, é verdade; eles perderam almas, arrastaram muitas delas com eles para os infernos; mas eles não puderam destruir a religião como eles acreditavam; eles se chocaram contra esta pedra sobre a qual Jesus Cristo edificou sua Igreja e que deverá durar até o fim do mundo.

Onde estão agora estes pobres ímpios? Infelizmente, no inferno, aonde eles choram sua desgraça e a de todos aqueles que eles arrastaram com eles. Não falemos nada ainda, meus irmãos, destes últimos ímpios, que, sem se mostrar abertamente como inimigos da religião, visto que eles praticam ainda alguns pontos exteriores dela, mas que, apesar disso, vocês ouvem de tempos em tempos fazerem pequenas chacotas sobre a virtude ou a piedade daqueles que eles não têm a coragem de imitar.

Digam-me, meu amigo, que lhe fez esta religião que você recebeu de seus ancestrais, que a praticaram tão fielmente diante de seus olhos, que lhe disseram tantas vezes que somente ela poderia gerar a felicidade do homem sobre a terra, e que, a abandonando, poderíamos ser somente como desgraçados? E onde você pensa, meu amigo, que sua pequena impiedade o conduzirá? Infelizmente, meu amigo, para o inferno, para fazer você chorar tua cegueira.

Não falemos nada ainda destes cristãos que são cristãos apenas de nome, que cumprem seu dever de cristãos de um modo tão miserável que eles lhes fariam morrer de compaixão. Vejamos um deles, durante sua oração feita com aborrecimento, dissipação, desrespeito. Vejamo-los na igreja, sem devoção; o ofício começa sempre mais cedo, e acaba sempre tarde demais; o padre ainda não desceu do altar, e eles já estão do lado de fora.

Quanto à frequência aos sacramentos, não temos que falar sobre isso: se eles se aproximam deles por vezes, é com certa indiferença que anuncia que eles não conhecem de forma alguma o que eles estão fazendo. Tudo o que tem relação com o serviço de Deus é feito com um desgosto assustador. Meu Deus! Quantas almas perdidas para sempre! Ó meu Deus! Como o número daqueles que entrarão no reino dos céus é pequeno, visto que há tão poucos que fazem o que devem para merecê-lo.

Entretanto, vocês me dirão agora: Quem são, portanto, aqueles que se tornam culpáveis de respeito humano? Meus irmãos, escutem-me um instante, e ireis saber. Inicialmente, dir-lhes-ei com São Bernardo, que de qualquer lado que consideramos o respeito humano, que é a vergonha de cumprir seus deveres de religião por causa do mundo, todos nos mostram o desprezo e a cegueira.

Digo, meus irmãos, que a vergonha de fazer o bem, o medo de ser desprezado ou de ser repreendido por alguns ímpios infelizes, ou alguns ignorantes, é um desprezo terrível que fazemos da presença do bom Deus, diante do qual estamos e que poderia no mesmo instante nos lançar no inferno. Por que é, meus irmãos, que estes maus cristãos ficam bravos com vocês e fazem de vossa devoção algo ridículo? Infelizmente, meus irmãos, eis a verdadeira razão: é porque não tendo a força de fazer o que vocês fazem, vocês incitam o remorso de suas consciências; entretanto, estejam certos de que no coração, eles não vos desprezam, ao contrário, eles vos estimam muito.

Quando eles precisam de um bom conselho ou de pedir uma graça junto do bom Deus, não é àqueles que agem como eles que eles irão recorrer, mas àqueles que eles repreenderam, ao menos em palavras. Você tem vergonha, meu amigo, de servir ao bom Deus temendo ser desprezado? Contudo, meu amigo, olhe então Aquele que morreu sobre esta cruz, pergunte-lhe então se Ele teve vergonha de ser desprezado, e de morrer do modo mais vergonhoso sobre esta cruz infame.

Ah! Como somos ingratos com Deus. Ó, meu Deus! Como o homem é cego e desprezível ao temer um miserável, o que dirão disso, e não temer ofender um Deus tão bom. Em segundo lugar: digo que o respeito humano nos faz desprezar todas as graças que o bom Deus nos mereceu por sua morte e sua paixão. Sim, meus irmãos, pelo respeito humano, aniquilamos todas as graças que o bom Deus nos tinha destinado para nos salvar. Ó maldito respeito humano, como arrastas almas para o inferno! Em terceiro lugar: digo que o respeito humano contém a cegueira mais desprezível. Infelizmente, não prestamos atenção ao que perdemos.

Ah! meus irmãos, que infelicidade para nós; nós perdemos nosso Deus, que ninguém nunca poderá substituir. Nós perdemos o céu com todos os seus bens e seus prazeres! Mas há outra desgraça: é que tomamos o demônio como nosso pai, e o inferno com todos os seus tormentos como nossa herança e nossa recompensa. Trocamos nossas doçuras e nossas alegrias eternas por sofrimentos e lágrimas. Meu Deus, ainda podemos continuar a pensar e viver como escravos do mundo?

(Dos Sermões de São João Maria Vianney, o Cura D'Ars)

terça-feira, 16 de novembro de 2021

ORAÇÃO: QUEM TERRA, PONTUS, AETHERA

Este hino devocional a Nossa Senhora é atribuído a Venantius Fortunatus (530-609), bispo de Poitiers, sendo comumente utilizado nas leituras da Liturgia das Horas e na prática diária no Pequeno Ofício da Bem Aventurada Virgem Maria, em geral sem a terceira estrofe. A sequência final do hino original - conhecida como O Gloriosa Domina - é comumente considerada atualmente como um hino adicional.

Quem terra, pontus, aethera¹
colunt, adorant, praedicant,
trinam regentem machinam
claustrum Mariae baiulat.

O Deus a quem terra, céu e mar
adoram, louvam e glorificam,
como regente dessa tripla trama,
vem habitar o ventre de Maria.

Cui Luna, Sol, et omnia
deserviunt per tempora,
perfusa caeli gratia,
gestant Puellae viscera.

Aquele a quem a lua, o sol, e todas as coisas
foram feitas pelos tempos,
incensado em divinas graças, 
semeia o ventre da Virgem.

[Mirantur ergo saecula,
quod angelus fert semina,
quod aure virgo concipit
et corde credens parturit].

[E os séculos se prostram extasiados
diante um anjo a portar sementes
e que uma virgem possa conceber 
e dar a luz por crer de todo o coração].

 Beata Mater, munere,
cuius supernus Artifex,
mundum pugillo continens,
ventris sub arca clausus est.

Ó bendita Mãe que se doa
ao supremo Artífice Divino,
que do poder sobre todo o universo,
digna-se repousar nesta Arca Santa.

Beata caeli nuntio,
fecunda Sancto Spiritu,
desideratus Gentibus,
cuius per alvum fusus est.

Ó bendita a quem o Céu anunciou
e o Espírito Santo fecundou,
ansiada por todas as nações,
pelo fruto do seu ventre.

Iesu, Tibi sit gloria,
qui natus es de Virgine,
cum Patre, et almo Spiritu,
in sempiterna saecula. Amen.

A Jesus, seja dada toda a glória,
Aquele que nasceu da Virgem Maria,
com o Pai e o Santo Espírito,
pelos séculos dos séculos. Amém.

¹ sidera (alteração feita pelo Papa Urbano VIII em 1632 para o Breviário Romano)

(tradução do autor do blog)

domingo, 14 de novembro de 2021

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Guardai-me, ó Deus, porque em Vós me refugio!' (Sl 15)

 14/11/2021 - Trigésimo Terceiro Domingo do Tempo Comum

51. 'AS MINHAS PALAVRAS NÃO PASSARÃO'


Neste 33º Domingo do Tempo Comum, período final do Ano Litúrgico de 2021, os Evangelhos enfatizam de forma especial os últimos acontecimentos que consolidam a obra redentora de Cristo - os novíssimos dos homens, morte, juízo particular e juízo universal: 'Lembra-te dos teus Novíssimos, e jamais pecarás' (Ecl 7, 40). Na obra salvífica de Cristo, ornada pelos mistérios insondáveis de tantas graças e misericórdias, imprime-se também o selo da justiça divina.

Em continuação às profecias da derrocada completa do Templo de Jerusalém tão próxima, Jesus vai associar profecias muitíssimo mais terríveis relativas à consumação dos séculos, em tempos bem mais remotos: 'Naqueles dias, depois da grande tribulação, o sol vai se escurecer, e a lua não brilhará mais, as estrelas começarão a cair do céu e as forças do céu serão abaladas' (Mc 13, 24 - 25). A glória dos eleitos e a condenação dos ímpios será precedida por eventos espantosos, capazes de alterar o próprio equilíbrio da terra e que também antecedem a segunda vinda do Senhor: 'Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória' (Mc 13, 26).

Em meio às convulsões da terra em fúria, todos os poderes da natureza serão abalados, inclusive a atmosfera e o céu material: 'O céu e a terra passarão' (Mc 13, 31). Este dia terrível que 'será um tempo de angústia, como nunca houve até então, desde que começaram a existir nações' (Dn 12,1) somente é conhecido pelo Pai: 'nem o Filho' não significa que, sendo Deus, este dia é desconhecido por Jesus, mas que, na condição humana, Jesus não poderia revelar esta verdade aos homens. Entretanto, todos os homens precavidos e vigilantes poderão compreender os seus sinais iminentes, tal como a floração da figueira indica a proximidade do verão.

Quando da sua vinda gloriosa, Jesus julgará todas as nações, povos e homens, de acordo com as suas santas prescrições: 'as minhas palavras não passarão' (Mc 13, 31). E, então, nestes tempos tremendos do fim, os anjos reunirão os eleitos dos 'quatro cantos da terra' e eles, alvejados pela graça e pela fé, renascerão triunfantes para todo o sempre como filhos de Deus Altíssimo porque 'os que tiverem ensinado a muitos homens os caminhos da virtude brilharão como as estrelas, por toda a eternidade' (Dn 12, 3).

sábado, 13 de novembro de 2021

VERSUS: VONTADE DIVINA X VONTADE HUMANA

Santo Agostinho afirmou a verdade absoluta da visão humana de Deus: 'Se Deus fosse compreensível, não seria Deus'. Assim, é absolutamente inútil tentar estabelecer premissas para a ação da Providência Divina sob o viés dos pensamentos humanos. É algo incomensuravelmente vão: Deus age sob atributos infinitos, que não podem ser, nem tangencialmente, apreendidos, compilados ou interpretados sob os limites anêmicos da inteligência humana. A compreensão de Deus é um exercício de fé e nada mais, absolutamente nada mais, do que isso.

Quando se desconsidera ou se exclui essa verdade absoluta, o relativismo pondera sobre questões sem respostas, acondicionadas aos pendores e elucubrações humanas. Neste contexto, por exemplo, o inferno parece algo inconcebível para muitos frente ao princípio da misericórdia infinita de Deus; ou, por exemplo, uma pessoa que se esmerou na caridade nesta vida mas que não professou a verdadeira Igreja de Cristo, não teria, por merecimento próprio, a glória celeste?; ou ainda, como que uma mãe que perdeu um filho ainda pequeno e não batizado poderia alcançar o Céu e, ao seu filho falecido em tenra idade, o Céu lhe seria negado*?

Nenhum ser humano tem a mínima noção dos limites que separam a justiça e a misericórdia de Deus. Mas, como todos os atributos divinos, a Vontade de Deus é infinita e imutável. E a doutrina de Cristo é absolutamente clara: há um só batismo, há uma só Igreja, há um único caminho da salvação, fora do qual todos se perdem. Quem não pertence a Cristo nessa terra, não terá lugar com Cristo no Céu. Em inúmeras ocasiões, Jesus deixou muito claro que a porta é estreita, assinalou com absoluta clareza os mandamentos da lei divina, estabeleceu de forma inequívoca os sacramentos da salvação e os pilares de sua Igreja. O que está fora, não é de Cristo.


'Mas quem és tu, ó homem, para contestar a Deus? Porventura o vaso de barro diz ao oleiro: 'Por que me fizeste assim?' Ou não tem o oleiro poder sobre o barro para fazer da mesma massa um vaso de uso nobre e outro de uso vulgar? (Rm 9, 20-21)

O relativismo humano, na sua expressão de anemia de ousar cobrar contas a Deus, busca impor concessões impossíveis à soberana liberdade de Deus no plano da salvação. Deus quer que todos os homens se salvem, mas serão salvos somente os que Deus quiser e estes serão aqueles que, dentre todos acondicionados à Vontade de Deus, foram os que utilizaram eficazmente as graças recebidas para serem merecedores de testemunhas vivas da redenção de Cristo. E a nenhum homem foi concedido o privilégio de conhecer aqui o epicentro dos mistérios divinos: Deus não reparte igualmente as suas graças e assim o faz porque assim o quer.

Na realidade, Deus não tem 'obrigação' de salvar ninguém. Ele não 'deve' nada a homem algum. Ainda que não existissem os anjos e os homens - ainda que Nossa Senhora não tivesse existido - Deus seria ainda Deus em plenitude. Ninguém tem 'direito' ao Céu, à salvação, à glória, à visão beatífica. Tudo isso é dom gratuito de Deus para a obra prima de sua criação. E, na eternidade, não estarão automaticamente juntos os que porventura viveram juntos nesta terra porque no Céu estarão apenas os que Deus quiser e os que quiseram assim como Deus.

* limbo, lugar onde, segundo a tradição católica, repousarão eternamente as almas daqueles que morreram somente com o pecado original

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

O PURO AMOR DE DEUS

Meus cibus est, ut faciam voluntatem eius qui misit me, ut perficiam opus eius 

'O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou, 
para consumar a sua obra' (Jo 4, 34)

I. Em todas as nossas ações não devemos ter outro fim senão o de agradar a Deus, e não aos parentes, nem aos amigos, nem aos poderosos, nem a nós mesmos; pois que está perdido tudo o que não se faz para Deus. Muitas coisas se fazem a fim de agradar e não desagradar aos homens; mas São Paulo diz: Si adhuc hominibus placerem, Christi servus non essem (Gl 1, 10) — 'Se eu ainda agradasse aos homens, não seria servo de Cristo'. Deus deve ser o nosso único fim em tudo o que fazemos, de modo que com Jesus Cristo possamos dizer: 'Faço sempre aquilo que lhe agrada' (Jo 8, 29). Foi Deus quem nos deu tudo que possuímos, de nosso temos somente o nada e o pecado. Foi só Deus quem nos amou deveras; amou-nos desde a eternidade, e amou-nos a ponto de dar-nos a sua própria pessoa sobre a cruz e no sacramento do Altar. Só Deus, portanto, merece todo o nosso amor.

Pobre da alma que guarda afeto a algum bem terrestre, com desagrado de Deus! Nunca gozará paz na vida presente e corre grande risco de nem na outra a gozar jamais. Bem-aventurado, ao contrário, ó Deus, aquele que só a Vós busca, e pelo vosso amor renuncia a todas as coisas! Ele achará a joia do vosso puro amor, joia mais preciosa que todos os tesouros e reinos da terra; alcançará a liberdade verdadeira dos filhos de Deus, porquanto está livre de todos os laços que o atraem à terra e o impedem de se abraçar com Deus.

Ah! Deus se deixa achar por todo aquele que, para achá-lo, se desprende das criaturas! Bonus est Dominus animae quaerenti illum (Lm 3, 25) — 'O Senhor é bom para a alma que o busca'. Escreve São Francisco de Sales: 'O puro amor de Deus consome tudo que não é Deus, para transformar todas as coisas em si'. Devemo-nos, pois, tornar hortos fechados, assim como Deus chama a Esposa sagrada dos Cânticos: Hortus conclusus soror mea Sponsa (Ct 4, 12). Horto fechado chama-se a alma que fecha a porta aos afetos terrenos e obra com o único intuito de agradar a Deus.

II. Ó homens, desiludamo-nos: todo o bem que nos vem das criaturas é lodo, fumo e ilusão. Só Deus nos sabe contentar. Mas na vida presente não se deixa gozar plenamente, dá-nos somente algum antegozo dos bens que nos promete no céu; é ali que nos aguarda para nos saciar do seu próprio gozo. O Senhor dá as consolações celestiais aos seus servos, unicamente a fim de os fazer anelar pela felicidade que lhes prepara no paraíso.

Quidmihi est in coelo et a te quid volui super terram? (Sl 72, 25) — 'Que tenho eu no céu? E fora de ti que desejei eu sobre a terra?'. Ó Senhor, busquem os outros o que desejarem; eu não quero nem desejo senão a Vós, meu Deus, meu amor, minha esperança, meu tudo. Anteponho-Vos a todas às riquezas, às honras, às ciências, às glórias, às esperanças e a todos os bens que me podeis dar. Vós sois todo o meu bem; só a Vós quero e nada mais; porque só Vós sois a infinita beleza, a infinita bondade, a infinita amabilidade; Vós, numa palavra, sois o único bem. Portanto nenhum dom que não sejais Vós mesmo, me pode contentar. Repito-o e repeti-lo-ei sempre: só a Vós quero, e nada mais; o que não é de Vós mesmo, digo-Vos que não me pode contentar: Deus cordis mei, et pars mea Deus in aeternum (Sl 72, 26) — 'Deus do meu coração, e minha porção é Deus para sempre'.

Ó! Quando poderei ocupar-me unicamente em Vos louvar, amar e agradar, de tal forma que não cuide mais nas criaturas, nem em mim mesmo? Ah, meu Senhor, fazei com que de hoje em diante e em todas as coisas, não tenha em mira nem busque senão o vosso agrado. Fazei que sejais todo o meu único amor, visto que tanto por justiça como por gratidão sois digno de todos os meus afetos. E quando me virdes resfriado no vosso amor, com risco de me afeiçoar às criaturas e aos prazeres terrestres, estendei-me a vossa mão lá do alto, e salvai-me (Sl 143, 7).

O que mais me aflige é o pensar que pelo passado amei tão pouco a vossa infinita bondade. Mas, ó meu Jesus, desejo e com o vosso auxílio proponho amar-Vos, para o futuro, com todas as minhas forças; e assim espero morrer amando só a Vós, ó meu supremo Bem. Ó Mãe de Deus, Maria, rogai por mim, que sou miserável. As vossas orações nunca sofrem repulsa; pedi a Jesus que me faça todo seu.

(Excertos da obra 'Meditações para Todos os Dias e Festas do Ano', Tomo II, Santo Afonso Maria de Ligório)

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

TESOURO DE EXEMPLOS (110/112)


110. FIRMEZA NA FÉ

Naquele tempo perdia-se em todas as libertinagens e fazia-se réu de todas as crueldades um dos reis mais perversos da história: Henrique VIII da Inglaterra. Era chanceler de seus reinos um homem de conduta irrepreensível: Tomás Moro. Quis o rei arrastá-lo pelos mesmos caminhos de dissolução e impiedade que seguia. O magnânimo chanceler, que era um católico de grande envergadura, resistiu com enérgica heroicidade. Por fim, o rei o depôs de seu cargo e o condenou à morte.

Com a coragem e a intrepidez dos mártires caminhava ele para o patíbulo, sereno e majestoso. Foi quando saiu ao seu encontro sua mulher, que, com lágrimas nos olhos, lhe pedia que renegasse a fé católica ou ao menos a dissimulasse. Respondeu-lhe o santo esposo:
➖ Luísa (assim se chamava a sua mulher), nem tu nem eu somos moços. Quantos anos pensas tu que ainda posso viver?
➖ Ao menos vinte anos, Tomás.
➖ Vinte anos! Vinte anos! Mulher estulta, por vinte anos de vida neste mundo, queres que eu perca a vida eterna e seja condenado eternamente?

Assim falou Tomás Moro, hoje canonizado e venerado sobre os altares. Está no céu, onde recebe e receberá por toda a eternidade a recompensa de sua firmeza na fé. E onde estará Henrique VIII, aquele rei crudelíssimo, que antes era católico e, depois, apostatou vergonhosamente, abraçando o protestantismo para viver na devassidão?

Santo Atanásio diz: 'Os santos que praticaram a virtude irão para a vida eterna; os pecadores, os que obraram mal, baixarão ao fogo eterno. Esta é a fé católica, e não poderá salvar-se quem não a guardar com fidelidade e firmeza até à morte'.

111. DESFILE DE PRESOS

Narram as crônicas do tempo que um vice-rei de Nápoles foi certo dia visitar uma prisão. Ordenou que, em um grande pátio, ficassem perfilados todos os presos. Momentos após ali estavam alinhados, como soldados, todos os reclusos daquele presídio. Que tipos! que caras! que olhares! que atitudes! Somente ver aquela gente impressionava. Quase todos levavam na fronte a marca dos crimes cometidos.

Apresentou-se o prudente e discreto vice-rei e começou a passá-los em revista. Um após outro todos tinham que desfilar diante dele. Passou o primeiro preso.
➖ Por que estás aqui? - perguntou o vice-rei.
➖ Senhor - respondeu o presidiário - por nada, por uma calúnia.
Passou o segundo preso.
➖ E tu, por que estás aqui? Que crime cometeste?
➖ Eu, crime? Não cometi crime nenhum.
Passou o terceiro preso.
➖ Vamos ver se encontro algum criminoso. Dize-me: por que estás aqui?
➖ Eu, senhor, porque me trouxeram, mas não fiz mal a ninguém.
E assim passaram quatro, vinte, cinquenta. Todos eram bons, inocentes. Cada um dizia mais ou menos o mesmo: não matei, não roubei, não desonrei, não fiz mal a ninguém. Estavam presos apesar de serem todos bons e virtuosos. A justiça humana era a única culpada.

Aconteceu, porém, passar por ele um preso que respondeu de maneira diferente de todos os outros. Era um moço. Manifestava nas faces a vergonha que lhe causava o achar-se naquele lugar. Apresentou-se diante do vice-rei, que lhe perguntou como aos demais:
➖ Por que estás aqui? Que crime cometeste?
➖ Senhor, respondeu o infeliz, baixando a cabeça; senhor, tenho cometido muitos. Estou onde devo estar. A justiça humana teve razão de me condenar; espero que me salve a misericórdia divina.

E, após este, foram desfilando todos os restantes; todos uns verdadeiros santos, pois não tinham derramado nem uma gota de sangue. Terminou o desfile. O vice-rei chamou aquele que havia confessado seus crimes, e disse:
➖ Amigo, pelo que vejo tu és o único mau, e os outros são bons. Para não que não os contaminem, sai depressa, vai para a rua!
E, voltando-se para os outros, acrescentou:
➖ Vós, porém, continuai aqui. Na rua há muitos pecadores e não convém que eles tornem a perder-vos com seus maus exemplos.

112. HEROÍSMO DE UMA FAMÍLIA

Foi nos primeiros dias da luta contra o comunismo na Espanha. O Exército da África levantara-se para salvar a Espanha das garras mortais do terrível inimigo. Num vilarejo de Navarra vivia um homem já idoso, pai de três filhos robustos e sãos de corpo e alma, como seu pai.
➖ Vou - disse ele à mulher e aos filhos - vou lutar por Deus e pela Espanha.
E pôs na cabeça a boina vermelha.
➖ E eu vou com o senhor - disse o filho mais velho.
➖ E eu também - acrescentou o segundo.
Duas boinas mais que adornaram as cabeças de dois soldados da Pátria. E os três cheios de santo entusiasmo marcharam para a guerra.

Chegou a hora da refeição. Na mesa só havia um prato preparado. A mãe e esposa sentou-se diante dele serena e grave. O último filho, que mal teria dezesseis anos, olhou admirado para a mãe.
➖Mãe, eu não como?
➖ Em minha casa - respondeu laconicamente aquela verdadeira espartana - não comem os covardes.
E o rapaz colocou na cabeça outra boina vermelha e foi atrás de seus irmãos e de seu pai para lutar e morrer com eles.

Até aqui a história é autêntica. Entra agora a lenda. Meses mais tarde regressavam ao lar o pai e os três filhos; voltavam alegres, cantando canções guerreiras, voltavam com as condecorações dos heróis. Não regressavam sós: um grupo de soldados os acompanhava.
Falou o último dos filhos, o mais entusiasmado:
➖ Mãe, aqui estamos por poucos dias. Tornaremos à guerra que ainda será longa. Lutaremos até o fim. Como vês, seguem-nos estes amigos que ontem eram milicianos vermelhos e hoje combatem por Deus e pela Espanha ao nosso lado. Renderam-se ao nosso heroísmo. Falamos-lhes de Deus e da nossa querida Espanha e os conquistamos para a Espanha e para Deus. Por esse ideal querem lutar até à morte. 
E aquela mãe de três heróis e esposa de um gigante, abraça-os a todos e fá-los sentar à mesa para servir-lhes o melhor que possuía. E termina a lenda, afirmando que jamais uma mulher teve uma alegria tão grande como aquela.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)