quinta-feira, 3 de novembro de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: FECUNDIDADE DA CRUZ

A vossa Esposa, ó meu Deus, domina o mundo das planuras do vosso amor. Mas tal dominação não tem nada de dureza ou tirania. É tudo bondade e somente bondade. Esta alma foi graciosamente elevada acima das outras. Ela sabe disso e vê isso tão claro quanto o dia e disso nunca se esquece. Ao contemplar as coisas de cima e muito longe, compreende que é para poder iluminar os que ainda se encontram na escuridão e para levar até Vós os que se podem extraviar. Se vive nos cumes e tão perto do céu, é para elevar aqueles que ainda estão presos ao chão ou que estão ameaçados de ser engolidos pelo mar. Vós assim o quisestes, ó divino Salvador Jesus; uma vez elevado à Cruz, atraístes tudo para Vós e cada alma unida a Vós pelo amor eleva o mundo inteiro.

De onde vem esse poder sobre as almas e sobre o mundo? Sem dúvida do amor, mas daquele amor que se alimenta de sacrifícios. É preciso dizer: a vocação à vida interior profunda é uma vocação ao martírio. Com efeito, a alma chamada por Deus não deve apenas passar pelas duras reformulações de sua sensibilidade, pela ainda mais dolorosa impotência de suas faculdades superiores ou ter sido forçada, apesar de si mesma, a renunciar ao seu modo de agir normal e natural; mas padecer sempre novas imolações, não tanto para si mas mais pelos outros. 

Ela sofre por não ser capaz de amar a Deus como Ele merece ser amado. Ele sofre ao vê-lo tão pouco conhecido e tão pouco amado. Ainda mais: ela sente o mundo e os seus pecados pesando sobre ela com todo o seu peso. O mistério da agonia e da cruz é renovado nela e ela dele comunga na medida do seu amor. A sua vida, como a de Jesus, tende a ser 'cruz e martírio'. Mas é preciso dizer também: é um martírio amado. Que prova melhor de afeição se pode dar a Jesus e aos seus irmãos do que essa? Onde encontrar uma prova de amor mais autêntica? E o fruto da caridade é a alegria, uma alegria totalmente espiritual, servida no mais íntimo da alma e compatível com a dor sublime, que então se torna como a sua fonte. O que Jesus não sofreu na Cruz! E ainda (para não falar da visão beatífica), qual não deveria ter sido a sua alegria em glorificar ao Pai e salvar os seus irmãos pelos seus sofrimentos! Mistério profundo, é verdade, mas como ilumina o sofrimento das almas esposas e vítimas, e como permite vislumbrar as dores da sua Mãe -  Nossa Senhora das Dores!

É por isso que essa alma atrai o Rei dos Reis e o cativa. Ele se encanta por se encontrar nela e poder fazer com que os homens nela se beneficiem com os frutos de sua imolação! Trata-se como uma renovação aparente das alegrias do Calvário, uma vez que os seus sofrimentos não podem ser renovados. E uma vez que esta alma compreende tão bem os seus desejos e realiza tão bem as suas vontades, por que não deveria Ele, por sua vez, cumprir todos os desejos de sua Esposa? Pois é exatamente isso o que acontece. Deus coloca todos os seus tesouros à disposição da alma interior. A alma pode tirar deles o que quiser e distribuí-los como quiser. 

Por causa da profunda harmonia que existe entre ambos, não há nenhum temor de conflito nessa união. Se fosse necessário, Jesus saberia fazer a alma entender intimamente que tal atividade não corresponde aos seus planos e, então, a alma haveria de renunciar a ela imediatamente, sem pensar mais nisso. A alma é verdadeiramente realeza. Ela possui todas as coisas sob o seu domínio, as mantém sob controle e tem a percepção de que participa ativamente da vossa monarquia universal, ó meu Jesus, e a tudo dirige juntamente convosco e para vós com um único propósito: a glória da Santíssima Trindade. A partir daí, nada pode assustá-la e nem perturbá-la no íntimo. Ela não apenas sabe e crê, mas, de certa forma, também vê e compreende como todas as coisas se movem para a vossa glória, ó meu Deus, e para o bem daqueles que vos amam: 'Deus faz com que todas as coisas cooperem para o bem daqueles que o amam' (Rm 8, 28), até mesmo os seus pecados, como acrescenta Santo Agostinho. Os filósofos sonharam encontrar, através do pensamento, a ordem do mundo para contemplá-la; a alma unida a Vós, ó meu Deus, a contempla sem nenhum esforço e de muito mais alto.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte IV - Fecundidade Apostólica; tradução do autor do blog)