quarta-feira, 30 de novembro de 2022

A VERDADEIRA PAZ INTERIOR

'Primeiro conserva-te em paz, e depois poderás pacificar os outros. O homem apaixonado, até o bem converte em mal e facilmente acredita no mal; o homem bom e pacífico, pelo contrário, faz com que tudo se converta em bem. Quem está em boa paz de ninguém desconfia; o descontente e perturbado, porém, é combatido de várias suspeitas e não sossega, nem deixa os outros sossegarem. Diz muitas vezes o que não devia dizer, e deixa de fazer o que mais lhe conviria. Atende às obrigações alheias, e descuida-se das próprias. Tem, pois, principalmente zelo de ti, e depois o terás, com direito, do teu próximo.

Bem sabes desculpar e cobrir tuas faltas, e não queres aceitar as desculpas dos outros! Mais justo fora que te acusasses a ti e escusasses o teu irmão. Suporta os outros, se queres que te suportem a ti. Nota quão longe estás ainda da verdadeira caridade e humildade, que não sabe irar-se ou indignar-se senão contra si própria. Não é grande coisa conviver com homens bons e mansos, porque isso, naturalmente, agrada a todos; e cada um gosta de viver em paz e ama os que são de seu parecer. Viver, porém, em paz com pessoas ásperas, perversas e mal educadas que nos contrariam, é grande graça e ação louvável e varonil.

Uns há que têm paz consigo e com os mais; outros que não têm paz nem a deixam aos demais; são insuportáveis aos outros, e ainda mais o são a si mesmos. E há outros que têm paz consigo e procuram-na para os demais. Toda a nossa paz, porém, nesta vida miserável, consiste mais na humilde resignação, que em não sentir as contrariedades. Quem melhor sabe sofrer maior paz terá. Esse é vencedor de si mesmo e senhor do mundo, amigo de Cristo e herdeiro do céu'.

(Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: PODER DA ALMA NA AÇÃO E NO SILÊNCIO


O amor que consome a alma interior por dentro manifesta-se externamente pela riqueza, abundância e perfeição das suas obras. A alma interior é serena e pacífica, mas não inativa. Onde quer que esteja, o amor atua. Quanto mais forte, mais poderosa é a sua ação. Ela deseja ardentemente o bem de Deus e trabalha incansavelmente para alcançá-lo. Mesmo privada dos meios ordinários de ação, que são a palavra e as obras, ela continua a atuar, sempre com mais eficiência do que nunca. Ela se recolhe em oração, no sofrimento e no despojamento, e tudo isso em harmonia.

Deus transforma a madeira qualquer em uma flecha que atinge o seu objetivo. Ilumina aqueles que não o conhecem e conforta aqueles que não pensam nele. No silêncio, sem rumor e muitas vezes ignorado, Ele comunica a vida, a verdadeira vida - aquela que não tem fim. Por que se surpreender com essa ação oculta e o seu poder? O amor uniu a alma interior a Deus. Deus lhe deu prometeu tudo e tudo é doar-se a si mesmo. Ele se faz seu prisioneiro e seu cativo. Mas, dando-se e entregando-se assim, nada perde do seu poder e grandeza, e continua sendo sempre o bom Deus, constantemente ocupado em fazer o bem às suas criaturas. 

E da mesma forma que Deus e a alma interior possuem os mesmos gostos e sentimentos, também manifestam igualmente o desejo e o poder de fazer o bem. É claro que Deus poderia agir diretamente por si mesmo nas almas; mas Ele prefere não ser apenas o artesão, mas também o cinzel. Pode então a alma experimentar algo mais belo e mais suave do que comungar conscientemente da ação santificadora de Deus? 

Como é bom, ó meu Deus, vos servir com mãos cheias! Nada pode ser mais belo para a alma interior do que experimentar essa união íntima com Deus, numa posse mútua e completa. Pode-se dizer que entre Deus e a alma existe a mais perfeita igualdade, uma afeição de pura identidade, não na ordem do ser, mas na ordem do amor. A alma sente o poder divino e a bondade divina. Na união íntima com Deus, e como uma única vontade, ela busca comunicar aos outros tanta riqueza e felicidade. Mas tudo é regulado pela sabedoria da Divina Providência Não compete à alma a livre escolha dos amigos de Deus. O seu ofício consiste em ir ao encontro deles e, ao reconhecê-los, transferir por Vós e convosco, ó meu Deus, os imensos tesouros do vosso amor.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte IV - Fecundidade Apostólica; tradução do autor do blog)

domingo, 27 de novembro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Que alegria quando me disseram: Vamos à casa do Senhor!(Sl 121)

Primeira Leitura (Is 2,1-5) - Segunda Leitura (Rm 13,11-14a)  -  Evangelho (Mt 24,37-44)

 27/11/2022 - Primeiro Domingo do Advento

1. 'FICAI ATENTOS AO SENHOR QUE VEM!'


Hoje começa um novo ano litúrgico da Santa Igreja com o Tempo do Advento, período em que os cristãos são conclamados a viver em plenitude as graças da expectativa, da conversão e da esperança, à espera do Senhor Que Vem. O Ano Litúrgico 2022-2023 é o Ano A, no qual os exemplos e ensinamentos de Jesus Cristo são proclamados a cada domingo pelas leituras do Evangelho de São Mateus.

E o novo ano litúrgico começa com Jesus exortando a vigilância aos filhos de Deus: 'Ficai atentos, porque não sabeis em que dia virá o Senhor' (Mt 24, 42). Do alto do Monte das Oliveiras e à vista de Jerusalém, Jesus vai alertar os seus discípulos sobre a necessidade de se permanecer vigilantes, na oração e na confiança de uma vida de plenitude cristã, diante das coisas do mundo, que passam e repassam no cotidiano de nossas vidas. Vigilância que se impõe naqueles tempos, na vida futura da Igreja, nos remotos tempos da história: 'Pois nos dias, antes do dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E eles nada perceberam, até que veio o dilúvio e arrastou a todos. Assim acontecerá também na vinda do Filho do Homem' (Mt 24, 38-39).

São palavras de salvação, porque a única coisa realmente importante para o homem é a salvação eterna de sua alma. Tudo o mais é efêmero e sem sentido. No fim dos tempos ou no fim de nossa vida, o Juízo Final ou o Juízo Particular vai nos pedir contas essencialmente da nossa vigilância filial à Santa Vontade de Deus, no cumprimento de nossas ações cristãs, no acervo das graças recebidas, na inquietude do coração humano ao encontro do Pai.

Vigiar significa essencialmente não pecar, não ofender a Santidade de Deus com as misérias e as fragilidades humanas, não conspurcar a Infinita Pureza da alma que nos foi legada um dia com a lama dos prazeres, frivolidades e maldades de uma vida profanada pelos valores do mundo. Porque haverá o dia do juízo, no qual os homens serão levados ou deixados para trás: ''Por isso, também vós ficai preparados! Porque, na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá' (Mt 24, 44). Vigiar é estar preparado para que sejam santos todos os dias de nossa vida para que Deus escolha, dentre eles, o mais belo, para receber de volta as almas vigilantes que Ele próprio desenhou para a eternidade.

sábado, 26 de novembro de 2022

ANO LITÚRGICO 2022 - 2023

Ano Litúrgico 2022-2023, de acordo com o rito católico romano, vai desde o primeiro domingo do Advento (27/11/2022) até a última semana do Tempo Comum, iniciada no domingo da Festa de Cristo Rei (26/11/2023), durante o qual a Igreja celebra todo o mistério de Cristo, desde o nascimento até a sua segunda vinda. O Ano Litúrgico 2022-2023 é o Ano A, no qual os exemplos e os ensinamentos de Jesus Cristo são proclamados a cada domingo pelas leituras principais retiradas do Evangelho de São Mateus, com exceção de ocasiões especiais (as chamadas Festas e Solenidades do rito litúrgico) quando são utilizadas leituras específicas do Evangelho de São João.

O ano litúrgico compreende dois tempos distintos: os chamados tempos fortes que incluem Advento, Natal, Quaresma e Páscoa, durante os quais certos mistérios particulares da obra redentora e salvífica de Cristo são celebrados e o chamado Tempo Comum, no qual celebramos o Mistério de Cristo em sua totalidade, ou seja, encarnação, vida, morte, ressurreição e ascensão do Senhor. 

O Tempo Comum é subdividido em duas partes. A primeira parte começa no dia seguinte à festa do Batismo de Jesus e vai até a terça-feira antes da Quarta-feira de Cinzas, quando tem início a Quaresma. A segunda parte do Tempo Comum recomeça na segunda-feira depois de Pentecostes e se estende até o sábado que antecede o primeiro domingo do Advento, quando tem início um novo Ano Litúrgico, compreendendo sempre um período de 33 ou 34 semanas.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

ORAÇÃO: 25 DE NOVEMBRO DA DIVINA INFÂNCIA

 

A JESUS SUPLICANTE

Ó quão belas, perfeitas e agradáveis a Deus eram as orações do Menino Jesus. Ele orava ao seu Pai em todos os instantes, e as suas orações eram todas em nosso favor, e até para cada um de nós em particular. Todas as graças que cada um de nós recebeu do Senhor são efeito das orações de Jesus.

Ó quanto vos devo, meu doce Redentor! Se não houvéreis pedido por mim, em que desesperada posição me achara ! As vossas orações obtiveram o perdão dos meus pecados e me alcançarão também, assim o espero, a perseverança até à morte. Por terdes orado por mim vos dou graças de todo o meu coração; mas não cesseis de orar para o mesmo intento, com todas as forças vos peço, porque bem sei que, no céu, desempenhais ainda em nosso favor o ofício de advogado (I Jo 2, 1) e de intercessor (Rm 8, 34).

Continuai pois a orar, ó meu Jesus, orai, porém, mais particularmente por mim, que das vossas orações tenho maior necessidade. Confio que, em atenção aos vossos merecimentos, Deus já me perdoou; mas, como por triste experiência sei que posso cair de novo; o inferno não se cansará de me tentar para roubar-me de novo a vossa amizade. Ó meu Jesus, esperança minha, de vós espero força para resistir; nesta confiança vos peço animado. Mas não me contento com a graça de não cair mais; peço-vos também a graça de vos amar muito pelo restante da minha vida, para muito vos amar na eternidade. Ó Maria, minha terna Mãe, rogai, também vós, a Jesus por mim: vossas orações são onipotentes para com este divino Filho que vos ama tanto! Pois que tão ardentemente desejais vê-lo amado, pedi-lhe que me dê um grande amor, amor constante e eterno. 


(A Divina Infância de Jesus, celebrada a cada dia 25 do mês, por Santo Afonso Maria de Ligório)

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (185/187)


185. O SINAL DA CRUZ

Henrique IV, depois de humilhar-se em Canossa, mostrou-se de novo inimigo do papa e foi com o seu exército sitiar Roma. No segundo assalto, apesar da heroica resistência dos sitiados, incendiou todas as muralhas. Um espantoso anel de fogo rodeava a cidade, da qual não se erguiam senão gemidos dos agonizantes e pranto das mulheres aterrorizadas. 

Então no alto de uma torre, majestoso e pálido, entre o clarão e o fumo do incêndio, apareceu o Papa Gregório VII, e com gesto solene e calmo fez o sinal da cruz contra as chamas, e imediatamente o fogo se apagou como se tivesse recebido uma chuva torrencial.

Todas as vezes que nos encontrarmos em perigos e angústias, confessemos a Santíssima Trindade fazendo o sinal da cruz e grande alívio sentirá a nossa alma.

186. CREDO - EU CREIO

São Pedro de Verona, apóstolo de Jesus Cristo, era perseguido de morte pelos inimigos de sua fé. Um dia teve de atravessar uma floresta. Ia rezando o santo varão. Naquele momento arrojaram-se sobre ele os inimigos, cravaram-lhe no peito o punhal assassino e fugiram. Caindo ferido de morte, o santo mártir compreendeu que chegara a sua última hora. Queria ainda confessar a sua santa fé, mas não podia falar. Molhando o dedo no sangue que jorrava do  seu peito, escreveu sobre o pó: Credo, Domine - Senhor, eu creio.

Também eu não sei quando nem como me sobrevirá a morte, Enquanto caminho, vou rezando o credo de minha fé e dizendo: 'Creio em Deus; creio em Jesus Cristo; creio na Igreja Católica, apostólica e romana. Protesto que nesta fé quero viver e morrer. E quando morrer, quero que gravem no meu túmulo estas mesmas palavras do santo mártir: Credo, Domine - Senhor, em ti creio, em ti espero e te amo. Senhor, dá-me o céu que prometeste aos que creem, esperam e amam.

187. MIGUEL ÂNGELO

Foi, talvez, o maior dos escultores que os séculos jamais viram. A história o admira. Num dos famosos templos de Roma há um sepulcro visitado por todos os turistas do mundo. É obra de Miguel Ângelo. Ali aparece Moisés sentado no trono da autoridade, que exercia como chefe do povo de Israel. Que fronte, que olhos... que rosto... que atitude... que majestade! Só um gênio podia dar uma vida assim ao mármore e à pedra morta.

O maravilhoso artista, terminada a obra, contemplou-a e ficou extasiado diante dela. Dizem que, com o martelo que tinha na mão, deu-lhe fortes marteladas sobre o joelho, dizendo: 'Fala, Moisés, que só isso te falta: falar!' Mas a estátua continuou muda.

Repicam os sinos de nossas igrejas. Católicos, não ouvis? Das altas torres vem essa voz do céu. É a voz de Deus, do Artista Divino que vos chama à santa missa. Sois cristãos, sois a obra-prima do Altíssimo. Para serdes cristãos de verdade, levantai-vos e caminhai para a igreja, onde cumprireis o preceito da oração e da missa. Mas tantos cristãos de hoje são como estátuas petrificadas pela ignorância religiosa; são blocos de bronze e mármore, modelados pela indiferença e impiedade. Não se movem. E quando se movem, é para ir aos jogos, às praias, aos cinemas... Para a igreja: não vivem... morrem! 

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

OS DOIS TIPOS DE MARTÍRIO CRISTÃO


Há dois tipos de martírio: o primeiro consiste numa disposição do espírito; o segundo alia a essa disposição os atos da existência. Por isso, podemos ser mártires mesmo sem morrermos executados pelo gládio do carrasco. Morrer às mãos dos perseguidores é o martírio em ato, na sua forma visível; suportar as injúrias amando quem nos odeia é o martírio em espírito, na sua forma oculta.

Que haja dois tipos de martírio, um oculto, o outro público, a própria Verdade o comprova quando pergunta aos filhos de Zebedeu: 'Podeis beber o cálice que Eu hei de beber?' E à sua asserção: 'Podemos', o Senhor complementou: 'Bebereis do meu cálice'. Ora, o que pode significar para nós este cálice senão os sofrimentos da sua Paixão, da qual diz em outro lugar: 'Pai, se é possível, afasta de mim este cálice' (Mt 26,39)? Os filhos de Zebedeu, Tiago e João, não morreram ambos mártires, mas foi a ambos que o Senhor disse que haviam de beber esse cálice.

De fato, se bem que não viesse a morrer mártir, João acabou todavia por sê-lo, já que os sofrimentos que não sentiu no corpo os sentiu na alma. Devemos então concluir do seu exemplo que nós próprios podemos ser mártires sem passar pela espada, se conservarmos a paciência da alma.

(São Gregório Magno em 'Homilias sobre os Evangelhos')

terça-feira, 22 de novembro de 2022

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'Não somente de todo o coração, mas também de toda a alma devemos amar a Jesus Cristo, Nosso Deus e Senhor. Que significa: de toda a alma? Vai dizê-lo Santo Agostinho: 'Amar a Deus de toda a alma é amá-lo com toda a vontade, sem restrições'. Amarás, certamente, de toda a alma, se sem contradição e de boa vontade fizeres não o que tu queres, nem o que aconselha o mundo, nem o que te inspira a carne, mas aquilo que reconheceres como sendo a vontade de Deus. Amarás, de fato, a Deus de toda a tua alma quando por amor de Jesus Cristo entregares de boa vontade tua vida à morte, sendo necessário. Se nisto, porém, faltares, já não amas de toda a alma. Ama, pois, ao Senhor teu Deus de toda a tua alma, isto é, faze a tua vontade sempre em conformidade com a vontade divina'.

(São Boaventura)

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

SOBRE OS DOIS PILARES DA VIDA CRISTÃ

Um dos maiores favores que Santa Teresa recebeu de Deus, e em que excedeu a todos ou quase todos os santos, foram dois segredos que o mesmo Senhor lhe revelou, ocultos a todos os homens: o primeiro, quando havia de morrer; o segundo, que se havia de salvar. Alguns santos tiveram revelação de sua morte; Santa Teresa teve-a de sua morte e de sua predestinação. Por isso digo que Santa Teresa vigiou sabendo mais que o dia e mais que a hora: soube o dia e a hora, porque soube quando havia de morrer, e soube mais que o dia e mais que a hora, porque soube também que, morrendo, se havia de salvar. E que sobre estas duas ciências, sobre a ciência e certeza de quando havia de morrer, e sobre a ciência e certeza de que se havia de salvar, vigiasse, contudo, Santa Teresa sem adormecer nem se descuidar um momento, antes fazendo uma vida tão rigorosa e tão maravilhosa, esta é a maior maravilha de toda a sua vida.

Todos os homens neste mundo vivemos com duas ignorâncias: a primeira da morte, a segunda da predestinação. Todos sabemos que havemos de morrer, mas ninguém sabe o quando. Todos sabemos que nos havemos de salvar ou condenar, mas ninguém sabe qual destas há de ser. E por que ordenou Deus que a morte fosse incerta e a predestinação duvidosa? Não pudera Deus fazer que soubéssemos todos quando havíamos de morrer, e se éramos ou não predestinados? Claro está que sim; mas ordenou com suma providência que estivéssemos sempre incertos e duvidosos da predestinação, para que a morte nos suspendesse sempre o temor com a incerteza, e a predestinação nos sustentasse a perseverança com a dúvida. 

Se os homens soubessem quanto haveriam de viver e quando haveriam de morrer, que seria dos homens? Se eu, sabendo que posso morrer hoje, me atrevo a ofender a Deus hoje, quem soubesse que havia de viver quarenta anos, como não ofenderia confiadamente a Deus ao menos os trinta e nove? Por esta causa ordenou Deus que a morte fosse incerta, e pela mesma que a predestinação fosse duvidosa. Se os homens soubessem que eram réprobos, como desesperados haviam-se de precipitar mais nas maldades; se soubessem que eram predestinados, como seguros haviam-se de descuidar na virtude; pois, para que os maus sejam menos maus, e os bons perseverem em ser bons, nem os maus saibam que são réprobos e nem os bons saibam que são predestinados. 

Não saibam os maus que são réprobos para que não se despenhem como desesperados, nem saibam os bons que são predestinados, para que se não descuidem como seguros. De maneira que estas duas ignorâncias, a ignorância da morte e a ignorância da predestinação, são as bases do temor da morte e do temor do inferno, e estes dois temores, as duas mais fortes colunas sobre que todo o edifício da vida cristã se sustenta, para que os homens não vivessem como néscios, mas obrassem como prudentes.

Porém a Santa Teresa tratou-a Deus com tal exceção, e fez da lealdade do seu amor tão diferente confiança, que em lugar destas duas ignorâncias lhe deu as duas ciências contrárias: a ciência de quando havia de morrer, e a ciência de que se havia de salvar, porque sabia que nem a ciência e certeza da hora da morte lhe havia de diminuir a vigilância, nem a ciência e segurança da salvação lhe havia de entibiar o cuidado. Saiba Teresa quando há de morrer, e saiba que se há de salvar, para que, obrando sobre estas duas ciências, saiba também o mundo quão fielmente ela ama.

(Excertos do 'Sermão de Santa Teresa', do Pe. Antônio Vieira)

domingo, 20 de novembro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

'Quanta alegria e felicidade: vamos à casa do Senhor!(Sl 121)

 20/11/2022 - Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

52. JESUS CRISTO - REI DO UNIVERSO


Jesus Cristo é o Rei do Universo. Como Filho Unigênito de Deus, Ele é o herdeiro universal de toda a criação, senhor supremo e absoluto de toda criatura e de toda a existência de qualquer criatura, no céu, na terra e abaixo da terra. A realeza de Cristo abrange, portanto, a totalidade do gênero humano, como expresso nas palavras do Papa Leão XIII: 'Seu império não abrange tão só as nações católicas ou os cristãos batizados, que juridicamente pertencem à Igreja, ainda quando dela separados por opiniões errôneas ou pelo cisma: estende-se igualmente e sem exceções aos homens todos, mesmo alheios à fé cristã, de modo que o império de Cristo Jesus abarca, em todo rigor da verdade, o gênero humano inteiro' (Encíclica Annum Sacrum, 1899).

E, neste sentido, o domínio do seu reinado é universal e sua autoridade é suprema e absoluta. Cristo é, pois, a fonte única de salvação tanto para as nações como para todos os indivíduos. 'Não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do Céu nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual nós devamos ser salvos' (At 4, 12). O livre-arbítrio permite ao ser humano optar pela rebeldia e soberba de elevar a criatura sobre o Criador, mas os frutos de tal loucura é a condenação eterna.

'A realeza de Cristo é, entretanto, principalmente interna e de natureza espiritual. Provam-no com toda evidência as palavras da Escritura, e, em muitas circunstâncias, o proceder do próprio Salvador. Quando os judeus, e até os Apóstolos, erradamente imaginavam que o Messias libertaria seu povo para restaurar o reino de Israel, Jesus desfez o erro e dissipou a ilusória esperança. Quando, tomada de entusiasmo, a turba, que o cerca o quer proclamar rei, com a fuga furta-se o Senhor a estas honras, e oculta-se. Mais tarde, perante o governador romano, declara que seu reino 'não é deste mundo'. Neste reino, tal como no-lo descreve o Evangelho, é pela penitência que devem os homens entrar. Ninguém, com efeito, pode nele ser admitido sem a fé e o batismo; mas o batismo, conquanto seja um rito exterior, figura e realiza uma regeneração interna. Este reino opõe-se ao reino de Satanás e ao poder das trevas; de seus adeptos exige o desprendimento não só das riquezas e dos bens terrestres, como ainda a mansidão, a fome e sede da justiça, a abnegação de si mesmo, para carregar com a cruz. Foi para adquirir a Igreja que Cristo, enquanto 'Redentor', verteu o seu sangue; para isto é, que, enquanto 'Sacerdote', se ofereceu e de contínuo se oferece como vítima. Quem não vê, em consequência, que sua realeza deve ser de índole toda espiritual?' (Encíclica Quas Primas de Pio XI, 1925).

Cristo Rei se manifesta por inteiro pela sua Santa Igreja e, por meio dela, e por sua paixão, morte e ressurreição, atrai para si a humanidade inteira, libertada do pecado e da morte, que será o último adversário a ser vencido. Como herdeiros de Cristo, elevemos ao Pai a súplica de salvação emanada pelas palavras do 'bom ladrão': 'Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado' (Lc 23, 42) e, neste propósito, supliquemos, tal como ele, nos tornarmos dignos também de compartilhar com Cristo Rei a glória da sua realeza eterna.

sábado, 19 de novembro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XLIV)

 

Capítulo III

Consolação das Almas - Santo Estanislau de Cracóvia e a Ressurreição de Peter Miles

Este contentamento em meio ao sofrimento mais intenso não pode ser explicado senão pelas divinas consolações que o Espírito Santo infunde nas almas do Purgatório. O Espírito Divino, por meio da fé, da esperança e da caridade, dispõe estes dons à disposição dos enfermos que devem submeter-se a um tratamento muito penoso, mas cujo efeito é o de restabelecer-lhes a saúde perfeita. O doente sofre mas ama o seu sofrimento salutar. O Espírito Santo, o Consolador, dá um contentamento semelhante às almas santas. 

Temos disso um exemplo singular na pessoa de Peter Miles, que foi ressuscitado dos mortos por Santo Estanislau de Cracóvia, mas que preferiu retornar ao Purgatório a viver novamente na terra. O célebre milagre desta ressurreição aconteceu em 1070. Vejamos como tal fato é relatado na Acta Sanctorum de 7 de maio. Santo Estanislau era bispo de Cracóvia quando o duque Boleslas II governava a Polônia. Ele não deixou de lembrar a este príncipe dos seus deveres, os quais violou escandalosamente  diante de todo o seu povo.

Boleslas irritou-se com a santa liberdade do prelado e, para se vingar, incitou contra ele os herdeiros de um certo Peter Miles, que morrera três anos antes, depois de ter vendido um pedaço de terra à igreja de Cracóvia. Os herdeiros acusaram o santo de ter usurpado o terreno, sem o ter pago ao proprietário. Estanislau declarou que havia pago pelo terreno, mas como as testemunhas que deveriam tê-lo defendido foram subornadas ou intimidadas, ele foi denunciado como usurpador da propriedade alheia e condenado a fazer restituição. Então, vendo que nada tinha a esperar da justiça humana, elevou o seu coração a Deus e recebeu então uma inspiração repentina. Ele pediu um prazo de três dias, prometendo fazer Peter Miles comparecer pessoalmente, para que ele testemunhasse a compra legal e o pagamento do terreno.

O prazo foi concedido a ele em desprezo. O santo fez jejum e recolheu-se em profunda oração a  Deus para assumir a defesa da sua causa. No terceiro dia, depois de ter celebrado a Santa Missa, saiu acompanhado pelo seu clero e de muitos fiéis, ao local onde o homem havia sido sepultado. Por suas ordens, a sepultura foi aberta; e nada continha além de ossos. Ele os tocou com o seu báculo e, em nome dAquele que é a Ressurreição e a Vida, ordenou que o morto se levantasse. De repente, os ossos se reuniram, cobriram-se de carne e, à vista do povo estupefato, viu-se o morto pegar o bispo pela mão e caminhar em direção ao tribunal. Boleslas, com a sua corte e uma imensa multidão, aguardava o resultado com a mais viva expectativa. 'Eis a testemunha - disse o santo a Boleslas - 'ele vem, príncipe, para dar testemunho diante de ti; interrogue-o pois e ele te responderá'. É impossível descrever a estupefação do duque, dos seus conselheiros e de toda a multidão. Peter Miles afirmou então que havia sido pago pelo terreno; em seguida, voltando-se para os seus herdeiros, repreendeu-os por terem acusado o piedoso prelado contra todos os direitos da justiça; e então ele os exortou a fazer penitência por um pecado tão grave.

Foi assim que a iniquidade, que se acreditava já certa de sucesso, foi confundida. Agora vem a circunstância que diz mais respeito ao nosso assunto e à qual desejamos nos referir. Desejando realizar este grande milagre para a glória de Deus, Estanislau propôs ao defunto que, se desejasse viver mais alguns anos, obteria para ele este favor de Deus. O homem respondeu que não tinha tal desejo. Ele estava no Purgatório, mas preferia voltar para lá imediatamente e suportar as suas dores do que expor-se à condenação nesta vida terrestre. Ele pediu ao santo apenas que implorasse a Deus que o tempo dos seus sofrimentos fosse reduzido, para que pudesse entrar mais cedo na morada dos eleitos. Depois disso, e acompanhado pelo bispo e uma grande multidão, Peter Miles voltou ao seu túmulo, deitou-se, e seu corpo desfez-se em ossos, retomando o estado tal como encontrado previamente. Temos motivos para acreditar que o santo obteve logo a libertação da sua alma.

O que há de mais notável neste exemplo, e que mais deveria chamar a nossa atenção, é que uma alma do Purgatório, depois de ter experimentado os tormentos mais excruciantes, preferiu aquele estado de sofrimento à vida deste mundo; e a razão que se dá para essa preferência é que, nesta vida mortal, estamos expostos ao perigo de nos perdermos e incorrermos em uma condenação eterna.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

ORAÇÃO A NOSSA SENHORA DO PERPÉTUO SOCORRO


O' Mãe do Perpétuo Socorro, graças a este vosso nome, o meu coração transborda de confiança em vós. Eis-me aos vossos pés, venho expor-vos todas as necessidades da minha vida e morte; venho chamar sobre todas estas misérias o vosso maternal socorro; dignai-vos de escutar-me lá do céu, e dai-me favorável amparo, ó minha Mãe! 

Em todas as minhas dificuldades e penas, vinde em meu socorro, ó caridosa Mãe: 

No momento perigoso da tentação; 
quando tiver a desgraça de cair no pecado, para que me levanteis;
se algum laço funesto me encadeia ao serviço do demônio, para que eu possa rompê-lo;
se vivo na tibieza, para que Jesus Cristo não me afaste de sua presença;
quando for negligente em recorrer a vós para que logo vos invoque;
para receber dignamente os sacramentos;
para praticar todos os exercícios de um cristão fervoroso, sobretudo a oração e a meditação;
para que eu conserve ou recobre a castidade;
para que adquira a humildade;
para que alcance amar a Deus de todo o meu coração;
para que, pelo amor para com Deus, me conforme em tudo com a sua santa vontade;
para que cumpra fielmente os deveres do meu estado;
quando a enfermidade afligir o meu corpo e abater a minha alma;
quando a angústia e a tristeza se apoderarem de mim;
se Deus me sujeitar ao tormento das penas interiores;
se a Providência me provar pela pobreza ou reveses da fortuna;
se encontrar na minha própria família motivos de dor;
quando for humilhado, contrariado e maltratado;
para que obtenha a conservação e o conforto dos que me são caros;
para que alcance a libertação das almas do purgatório;
para que coopere na salvação dos pecadores;
para que obtenha a graça da perseverança final;
quando me vier a última enfermidade;
no meu último suspiro;
quando aparecer ante o vosso Filho que há de ser o meu Juiz;
quando estiver no purgatório;
em todo o tempo e lugar;
para que vos sirva, vos ame e vos invoque sempre;
para que vos faça amar e servir por muitos cristãos;

Louvada, amada, invocada e bendita eternamente sejais, ó Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, minha esperança, meu amor, minha Mãe, minha felicidade e vida minha. Amém.

(Santo Afonso Maria de Ligório)

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XXIII)

Hoje - um hoje nos tempos - será o meu último dia sobre a terra. O hoje que não vai ter amanhã para mim. O hoje que será o primeiro dia da eternidade, que vai ter começo neste hoje e não terá fim jamais. Um hoje que me faz órfão do mundo e cidadão da vida eterna. Que Deus, na sua infinita misericórdia, tenha escrito meu nome por inteiro no Livro da Vida e que, mais ou menos tempo depois do meu último hoje, eu possa ter como herança a face de Deus.

Assim rezava e assim refletia um velho lenhador, de mente ainda muito lúcida apesar dos anos avançados. Sentado num banco rústico à porta da sua humilde morada, em lugar ermo e praticamente abandonado pela outrora ativa vizinhança, olhava a paisagem tão conhecida de árvores e campos, de céu e terra, de nuvens e pedras. Sabia de cor cada desvão de caminho, cada trilha daquelas matas, cada lugar de feliz descanso e calmaria, cada vertente de mirante singular. Havia sido passo e contrapasso por tantas labutas, na lida diária e contínua de buscar madeira de qualidade, tornear bancos e mesas, viver pelo pão sagrado de cada dia.

Havia sido uma criança feliz nos tempos do nada; um jovem vigoroso de alma lavada; um homem forjado na robustez de um carvalho. Celina tinha sido - e ainda era - o amor pelas coisas humanas, a alma gêmea que não havia vingado porque o mundo dela tinha assumido dimensões maiores do que os seus. E, como ela, tantos outros partiram ou morreram, fizeram escolhas de vida, fizeram crescer os sonhos além do domínio dos olhos. E ele ficara, como um eremita à beira de um caminho que, com o passar do tempo, tornou-se apenas eremita dos próprios e tão bem conhecidos caminhos de si mesmo.

Sol ou chuva, não importava. Mudava tão somente o trabalho cotidiano de ir até a mata em busca da madeira ou, no pequeno anexo da casa à guisa de oficina, moldar a madeira como peças de móveis. E, uma vez por semana, entregar a mercadoria ao comprador de sempre, pelo preço de sempre, que sempre vinha até ali para levar as peças previamente encomendadas e lhe trazer o sustento necessário. O preparo das refeições, a limpeza da pequena morada, as orações da noite... Tudo fluía como o riacho no talvegue do vale; tudo se passava como uma história de vida sem grandes atrativos ou mudanças. Um tesouro de graças aparentemente escondido: uma vida humana não vale muito mais do que todos os lírios do campo ou a vida de muitos pardais?

Mas agora o hoje que não tem amanhã, que sempre pode ser agora, parecia muito perto de ser a qualquer hora. Os arranjos práticos já estavam bastante preparados: o caixão simples de madeira, a campa final, a doação das ferramentas e acessórios, o abandono da morada... Queria apenas fazer mais do que não fazem quase sempre os homens de sempre: aproveitar o tempo das últimas miragens para pensar nos amanhãs sem fim: 'Que Deus, na sua infinita misericórdia, tenha escrito meu nome por inteiro no Livro da Vida e que, mais ou menos tempo depois do meu último hoje, eu possa ter como herança a face de Deus'. 

('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (182/184)

 

182. FICOU A FOLHA EM BRANCO

Certo dia apresentou-se a Santo Antônio de Pádua um pecador para confessar-se. Estava, porém, tão perturbado e confuso, que apenas soluçava sem poder pronunciar nem uma palavra.
➖ Vai, meu filho - disse o santo - escreve os teus pecados e volta aqui de novo.
Uma vez de volta, o pecador foi lendo os seus pecados, como os havia escrito. Quando terminou a leitura, com grande surpresa viu que desaparecera do papel tudo o que escrevera e só restava a folha em branco.

Assim sucederá com a nossa alma quando nos confessarmos com humildade sincera e dor profunda. Toda mancha de pecado desaparecerá do nosso coração e aparecerá o candor, todo o candor da inocência recuperada.

183. A MODÉSTIA DE SÃO LUÍS

No ano de 1581, Maria da Áustria, filha do imperador Carlos V, passava pela ltália. O imperador e todos os príncipes foram convidados a recebê-la e, entre os convidados, estava também Luís Gonzaga, filho do marquês de Castiglione. Que magnífica festa naquele belo dia de outono, em ornamentos em todo balcão e em toda janela! 

Todos queriam ver a soberana. Finalmente ela apareceu. Todos agitaram os seus lenços de seda quando a contemplavam. O jovem Luís naquele instante levantou a mão associando-se à festa, mas conservou os olhos fechados; a filha do imperador passou e ele não a viu. Alguns pensarão que isso era escrúpulo e exagero; também São Luís sabia que não cometia pecado por ver a rainha, mas sabia igualmente que a pérola preciosa da castidade nós a levamos em vasos frágeis e, às vezes, basta um só olhar imprudente para perdê-la.

184. O VESTIDO CELESTIAL

Caía a noite. Em sua celazinha cheia de sombra, Santa Catarina de Sena pensava na festa que estava por terminar. Via os estandartes agitados pelos jovens; via a multidão apinhada no campo sob o sol de verão, os palcos repletos de luxuosas damas. Naquele momento começou o demônio a tentá-la: 'Também. tu, Catarina, poderias estar com eles. Por que cortaste teus cabelos louros, por que trazes o cilício sobre o teu corpo delicado, por que queres fazer-te religiosa? Olha este vestido, não é mais lindo que o místico hábito claustral?' Na dúbia claridade da noite, a santa julgou ver diante de si um jovem que lhe apresentava um rico vestido feito de pétalas de rosas.

Enquanto Catarina estava como que suspensa, apareceu-lhe Maria Santíssima. Como o tentador, também ela trazia nos braços um esplêndido vestido bordado a ouro e pérolas, radiante de pedras preciosas. 'Deves saber, minha filha' - disse a Mãe de Jesus com voz dulcíssima - 'que os vestidos tecidos por mim no coração do meu Filho, morto por ti, são mais preciosos que qualquer outro vestido trabalhado por outras mãos que não as minhas'.

Então Catarina, ardendo em desejo de possuí-lo e tremendo de humildade, inclinou a cabeça e a Virgem a vestiu com a túnica celestial. O demônio apresenta-se às almas com um vestido de rosas e prazeres carnais; Maria, ao contrário, com um vestido de pureza e santidade. Dai preferência a este último; somente com ele podereis entrar no céu.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

terça-feira, 15 de novembro de 2022

A MORTE DE SÃO JOSEMARIA ESCRIVÁ

 

Em 26 de junho de 1975, São Josemaria Escrivá levantou-se muito cedo como de costume, fez a habitual meia hora de oração e celebrou a missa, por volta das oito horas; era missa votiva de Nossa Senhora, na qual o sacerdote pede, na oração da coleta, 'a perfeita saúde da alma e do corpo'. Depois de um rápido café da manhã, encarregou dois dos seus filhos de visitarem uma pessoa, para que este se apresentasse a Paulo VI o seu testemunho de fidelidade e união. Queria fazer chegar ao Papa esta mensagem: 'Há anos que ofereço todos os dias a Santa Missa pela Igreja e pelo Papa ... hoje mesmo renovei este meu oferecimento a Deus pelo papa'.

Às nove e meia partiu para Castelgandolfo, na Villa dele Rose, onde teria uma reunião familiar e formativa com as suas filhas espirituais do Colégio Romano Santa Maria. Era um dia de muito calor. Durante o trajeto rezaram o terço e conversaram animadamente. 'Vós tendes alma sacerdotal' - disse àquelas mulheres jovens, quando chegou - 'Dir-vos-ei como sempre que venho aqui. Os vosso irmãos leigos também têm alma sacerdotal. Podes e deveis ajudar com essa alma sacerdotal e, juntamente com a graça do Senhor e o sacerdócio ministerial em nós, sacerdotes da Obra, faremos um trabalho eficaz... Imagino que de tudo tiras oportunidade para conversar com Deus e com nossa Mãe, e com São José, nosso Pai e Senhor, e com os nossos Anjos da Guarda, para ajudarem esta Igreja Santa, nossa Mãe, que está necessitada, que está passando tão mal no mundo, neste momento! Temos de amar a Igreja e o Papa, seja ele quem for. Pedi ao Senhor que o nosso serviço seja eficaz para a sua Igreja e para o Santo Padre'.

Passados cerca de vinte minutos, sentiu-se mal. Calou-se e sentiu vertigens. Teve de retirar-se a uma salinha para descansar uns minutos. Como não recompunha por completo, despediu-se, pedindo que lhe perdoassem o transtorno causado. Voltaram a Roma. Acompanhavam-no Pe. Álvaro Del PortilloPe. Javier Echevarría e o arquiteto Javier Cotelo. Chegou a Vila Tevere uns minutos antes do meio dia. O padre saiu do carro com desenvoltura e semblante risonho. Ninguém suspeitava de nada além de uma ligeira indisposição.

Passou pelo oratório e fez a sua habitual genuflexão: devota, pausada, com uma saudação a Jesus Sacramentado. Dirigiu-se imediatamente ao quarto de trabalho. Entrou e, depois de dirigir um olhar cheio de carinho à imagem da Virgem – conforme seu costume e de todos na Obra – disse: 'Javi... Não me sinto bem!' E caiu no chão.

Durante a sua estadia no México, em 1970, havia contemplado uma imagem que representava a Virgem de Guadalupe entregando uma rosa ao índio Juan Diego. Tinha dito que gostaria de morrer assim: olhando Maria, enquanto ela lhe oferecia uma flor. E morreu como era o seu desejo: saudando uma imagem da Virgem de Guadalupe e recebendo das mãos da Senhora a rosa que abre o amor às portas da eternidade.

(Excertos, com adaptações, da obra 'São Josemaria Escrivá', de Michele Dolz)

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

POEMAS PARA REZAR (XLII)


Pastor que con tus silbos amorosos...

(Lope de Vega)

Pastor que con tus silbos amorosos
me despertaste del profundo sueño,
Tú, que hiciste cayado de ese leño,
em que tiendes los brazos poderosos,

vuelve los ojos a mi fe piadosos,
pues te confeso por mi amor y dueño,
y la palabra de seguirte empeño
tus dulces silvos y tus pies hermosos.

Oye, pastor, pues por amores mueres,
no te espante el rigor de mis pecados,
pues tan amigo de rendidos eres.

Espera, pues, y escucha mis cuidados;
?pero cómo te digo que me esperes,
si estás para esperar los pies clavados?

***************

Pastor que por teus chamados amorosos...

Pastor que por teus chamados amorosos
me despertaste de profundo enfado,
Tu que fizeste desse lenho um cajado 
do qual pende teus braços poderosos,

volve os olhos sobre mim, piedosos,
pois por amor e meu jugo confessado,
hei de seguir com zelo e tal cuidado 
teus doces anelos e teus pés formosos.

Ouve, pastor, que sofres por amores,
não acalente dor pelos meus pecados,
quem morreu pelos pobres pecadores.

Espera, pois, e escuta os meus chamados:
mas, como o que peço pode ter favores,
se já esperas por mim com pés cravados?

(tradução do autor do blog)

domingo, 13 de novembro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'O Senhor virá julgar a terra inteira; com justiça julgará(Sl 97)

 13/11/2022 - Trigésimo Terceiro Domingo do Tempo Comum

51. A IGREJA DO FIM DOS TEMPOS


Eis um dia singular daqueles tempos ditosos em que Cristo andou pela terra dos homens: Jesus, os apóstolos e outras tantas pessoas caminhavam juntos, sob a vista esplêndida do Templo de Jerusalém que, erigido por Salomão como obra prima das grandes realizações humanas, era então o centro de peregrinação religiosa de todo o povo judeu. Mesmo abundantes na graça, alguns daqueles eram ainda homens de pouca fé: admiravam o templo físico portentoso da criatura, mas não percebiam o Templo de Deus vivo diante deles no caminho poeirento ao Monte das Oliveiras.

Jesus, ciente desse naturalismo extremo, vai confundi-los: 'Vós admirais estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído' (Lc 21,6). Menos de quarenta anos depois, a terrível profecia de Jesus seria concretizada por completo. Mas aquelas pessoas, mesmo sob evidências tão claras, pensaram em termos dos fins dos tempos e Jesus, então, vai respondê-los, associando o acontecimento da destruição do Templo tão próxima com a consumação dos séculos, em tempos bem mais remotos: 'Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu!’ e ainda: ‘O tempo está próximo’. Não sigais essa gente! Quando ouvirdes falar de guerras e revoluções, não fiqueis apavorados. É preciso que estas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim' (Lc 8-9).

E Jesus vai lhes falar não apenas dos sinais das guerras e das revoluções, mas também dos terremotos, das pestes, da fome, dos escândalos, de eventos extraordinários no céu. Mas todos estes serão apenas sinais precursores. Antes da grande tribulação, a Igreja e os filhos da Igreja serão caluniados, perseguidos e mortos: estes são os grandes sinais dos tempos do fim. A era das perseguições também deve ser a era dos mártires, a era das testemunhas fieis, dos herdeiros da graça, dos soldados de Cristo revestidos da armadura espiritual de São Paulo: 'Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé' (2 Tm 4,7).

Mas a Divina Providência vai interceder em favor do 'pequeno resto' porque, os perseverantes na fé e fieis a Cristo, que foram odiados por causa do Seu nome, não perderão 'um só fio de cabelo da cabeça' (Lc 21, 18) pois Jesus assim o prometeu: 'É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!' (Lc 21, 19). A Igreja caluniada e perseguida, traída pelos seus próprios filhos, porque, muitas vezes, 'Sereis entregues até mesmo pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos' (Lc 21, 16), renascerá triunfante no embate final, pois nasceu de Cristo e, em Cristo, nasceu para a eternidade.

sábado, 12 de novembro de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: A AÇÃO DA ALMA UNIDA A DEUS


Toda alma que vos ama, ó meu Deus, é uma alma forte e a sua força aumenta com o amor. Quando ela vos ama com todo o coração, o seu coração se alarga e a sua força torna-se então um verdadeiro poder. Como isso acontece, ó meu Deus? Pela força do amor. Quanto mais profundo for este amor, mais íntima e perfeita será a união entre Deus e a alma.

Vós sois um Deus onipotente. Tudo está sujeito ao vosso poder: céu e terra, anjos e homens. Nada acontece no mundo sem a vossa expressa permissão; uma nação não pode desaparecer e nem pode morrer um pássaro qualquer sem que Vós o permitais. Pois bem, a alma intimamente unida a Deus pela força do amor compartilha desta força divina e deste poder. Torna-se para as demais uma fonte de energia e de fortaleza. Ela orienta e as outras acolhem; exorta e é correspondida; caminha e faz seguidores; eleva-se e eleva as outras às alturas da graça. O que dá um encanto especial a esta alma é a suavidade da graça e a fortaleza da sua resposta. Vós, ó meu Deus, tudo fazeis com doçura e firmeza - suaviter et fortiter.

Todas as ações desta alma interior são medidas, ponderadas, equilibradas, coerentes. Ela fala quando é conveniente falar; permanece em silêncio quando é melhor ficar em silêncio. Segue em frente quando é preciso; mas, outras vezes, se retrai e se recolhe silenciosamente sem que os outros percebam. E assim em tudo. É isso que lhe confere um encanto especial. Ela possui um zelo próprio, moldado, burilado, quase perfeito, que nos extasia. Não possui nada além e, no entanto, nada lhe falta. É um fruto maduro e atraente, agradável à vista e ao paladar, pois possui alguma coisa de divino. Porque Deus faz bem todas as coisas.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte IV - Fecundidade Apostólica; tradução do autor do blog)

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

'O PARAÍSO É TEU!'

Lemos na vida de São Felipe Neri o seguinte: uma freira do mosteiro de Santa Maria, de nome Escolástica Gazzi, foi procurá-lo na portaria, para lhe dar a conhecer um pensamento que nunca revelara a ninguém: a convicção de que ela seria réproba. Ao avistá-la, disse-lhe são Felipe: 'O que fazes, Escolástica, o que fazes? O paraíso é teu!' 'Não, meu pai - respondeu-lhe a monja - 'receio que se dê o contrário; sinto como se me fosse perder'. 'Não' - respondeu-lhe o santo - 'eu te digo que o paraíso é teu, bem como vou provar. Dize-me, por quem morreu Jesus Cristo?' 'Pelos pecadores' - respondeu-lhe a irmã. 'Pois bem' - concluiu o santo - 'o paraíso é teu, e te pertence, porque te arrependeste dos teus pecados'. Esta conclusão restituiu a paz de espírito à irmã Escolástica. A tentação abandonou-a e nunca mais a perturbou. Pelo contrário, as palavras 'o paraíso é teu!' ressoavam-lhe sempre aos ouvidos. 


Caro leitor, possa São Felipe prestar-nos, a vós e a mim, idêntico serviço! Ora, aqui temos, não uma resposta à nossa tentação, mas outro modo de encará-la. Supliquemos o dom de um santo discernimento e temor e continuemos alegremente o caminho, acrescentando graça a graça, amor a amor, sem duvidar de nossa eternidade. O céu não tardará a vir. A tentação seria antes impacientar-nos pela demora. Mas seja feita a vontade de Deus. Que o nosso ato de amor seja permanecer onde estamos, contentando-nos em viver por sua causa. A vida é uma luta; nada, porém, muito dolorosa, porque não nos impede de amar a Deus. Com este amor, só podem ser leves todas as aflições.

(Excertos da obra 'O Progresso na Vida Espiritual', do Pe. William Faber)

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (XIV)

Carta Encíclica E SUPREMI APOSTOLATUS [04 de outubro de 1903]

Papa Pio X (1903 - 1914)

sobre a restauração de tudo em Cristo


Pela elevação ao Pontificado

1. No momento de vos dirigir pela primeira vez a palavra do alto desta cátedra apostólica a que fomos elevado por um impenetrável conselho de Deus, inútil é lembrar-vos com que lágrimas e com que ardentes preces nos esforçamos por desviar de nós o múnus tão pesado do pontificado supremo. Mau grado a desproporção absoluta dos méritos, parece-nos podermo-nos apropriar das queixas de Santo Anselmo quando, a despeito das suas oposições e das suas repugnâncias, se viu forçado a aceitar a honra do episcopado. Os testemunhos de tristeza que ele então deu, nós podemos produzi-los por nossa vez, para mostrarmos em que disposições de alma e de vontade aceitamos a missão tão temível de pastor do rebanho de Jesus Cristo. As lágrimas dos meus olhos me são testemunhas, escrevia ele (Ep. 1 III,1), assim como os gritos e, por assim dizer, os rugidos que meu coração soltava na sua angústia profunda. Eles foram tais que não me lembro de haver deixado escapar semelhantes em nenhuma dor antes do dia em que essa calamidade do arcebispado de Cantuária veio desabar sobre mim. Não puderam ignorá-lo aqueles que, naquele dia, viram de perto o meu rosto. Mais semelhante a um cadáver do que a um homem vivo, eu estava pálido de consternação e de dor. A essa eleição ou, antes, a essa violência, resisti até agora, digo-o em verdade, tanto quanto me foi possível. Mas agora, a gosto ou a contragosto, eis-me forçado a reconhecer cada vez mais claramente que os desígnios de Deus são contrários aos meus esforços, de tal sorte que nenhum meio me resta de lhes escapar. Vencido menos pela violência dos homens do que pela violência de Deus, contra quem prudência alguma poderia prevalecer, depois de fazer todos os esforços em meu poder para que esse cálice se afaste de mim sem que eu o beba, não vejo outra determinação a tomar senão a de renunciar ao meu senso próprio, à minha vontade, e entregar-me inteiramente ao juízo e a vontade de Deus.

Leão XIII

2. Certamente, a nós também não faltavam numerosos e sérios motivos para nos furtarmos ao fardo. Sem contar que, em razão da nossa pequenez, a nenhum título podíamos considerar-nos digno das honras do pontificado, como não nos sentirmos profundamente comovido vendo-nos escolhido para suceder àquele que, durante vinte e seis anos, ou pouco falta, em que governou a Igreja com sabedoria consumada, deu mostras de tal vigor de espírito e de tão insignes virtudes, que se impôs à admiração dos próprios adversários e, pelo brilho das obras, imortalizou a sua memória?

Situação calamitosa do mundo

3. Além disto, e para passar em silêncio muitas outras razões, nós experimentávamos uma espécie de terror em considerar as condições funestas da humanidade na hora presente. Pode-se ignorar a doença profunda e tão grave que, neste momento muito mais do que no passado, trabalha a sociedade humana, e que, agravando-se dia a dia e corroendo-a até à medula, arrasta-a à sua ruína? Essa doença, Veneráveis Irmãos, vós a conheceis e é, para com Deus, o abandono e a apostasia; e, sem dúvida, nada há que leve mais seguramente à ruína, consoante essa palavra do profeta: 'Eis que os que se afastam de vós perecerão' (Sl 72,27). A tamanho mal nós compreendíamos que, em virtude do múnus pontifical a nós confiado, competia-nos dar remédio; achávamos que a nós se dirigia esta ordem de Deus: 'eis que hoje te estabeleci sobre as nações e os reinos para arrancares e para destruíres, para edificares e para plantares' (Jr 1,10); mas, plenamente cônscio da nossa fraqueza, nós temíamos assumir uma obra eriçada de tantas dificuldades, e que, no entanto, não admite delongas.

Restaurar tudo em Cristo

Contudo, já que a Deus aprouve elevar a nossa baixeza até esta plenitude de poder, nós haurimos coragem nAquele que nos conforta; e, pondo mãos a obra, sustentado pela força divina, declaramos que o nosso fito único, no exercício do Sumo Pontificado, é 'restaurar tudo em Cristo' (Ef 1,10), a fim de que Cristo seja tudo e em tudo (Cl 3,14).

4. Haverá, sem dúvida, quem, aplicando às coisas divinas a curta medida das coisas humanas, procure perscrutar os nossos pensamentos íntimos e torcê-los às suas vistas terrenas e aos seus interesses de partido. Para cortar com essas vãs tentativas, em toda verdade afirmamos que não queremos ser e que, com o socorro divino, não havemos de ser, no meio das sociedades humanas, outra coisa senão o ministro de Deus que nos revestiu da sua autoridade. Os interesses dEle são os nossos interesses; consagrar-lhes as nossas forças e a nossa vida, tal é a nossa resolução inabalável. E é por isto que, se nos pedirem um lema que traduza o próprio fundo de nossa alma, jamais daremos outro senão este: 'restaurar todas as coisas em Cristo'.

5. Querendo, pois, empreender e prosseguir esta grande obra, Veneráveis Irmãos, o que redobra o nosso ardor é a certeza de que nos sereis nisso valorosos auxiliares. Se duvidássemos disto, pareceríamos ter-vos, bem erradamente aliás, por mal informados ou indiferentes, em face da guerra ímpia que foi suscitada e que em quase toda a parte vai prosseguindo contra Deus. Nos nossos dias, sobejamente verdadeiro é que as nações fremiram e os povos meditaram projetos insensatos (Sl 2,1) contra o seu Criador; e quase comum tornou-se este grito dos seus inimigos: 'Retirai-vos de nós' (Jo 21,14). Daí, na maioria, uma rejeição completa de todo o respeito de Deus. Daí hábitos de vida, tanto privada como pública, em que nenhuma conta se faz da soberania de Deus. Bem mais, não há esforço nem artifício que se não ponha por obra para abolir inteiramente a lembrança dEle, e até a sua noção.

Audácia dos maus: 'o homem usurpou o lugar do Criador'

6. Quem pesa estas coisas tem o direito de temer que uma tal perversão dos espíritos seja o começo dos males anunciados para o fim dos tempos, e como que a sua tomada de contato com a terra, e que verdadeiramente o filho de perdição de que fala o Apóstolo (2 Ts 2,3) já tenha feito o seu advento entre nós, tamanha é a audácia e tamanha a sanha com que por toda parte se lança o ataque à religião, com que se investe contra os dogmas da fé, com que se tende obstinadamente a aniquilar toda a relação do homem com a divindade! Em compensação, e é este, no dizer do mesmo Apóstolo, o caráter próprio do Anticristo, com uma temeridade sem nome o homem usurpou o lugar do Criador, elevando-se acima de tudo o que traz o nome de Deus. E isso a tal ponto que, impotente para extinguir completamente em si a noção de Deus, ele sacode entretanto o jugo da sua majestade, e dedica a si mesmo o mundo visível à guisa de templo, onde pretende receber as adorações dos seus semelhantes. Senta-se no templo de Deus, onde se mostra como se fosse o próprio Deus (2 Ts 2,2).

Vitória certa de Deus

7. Qual venha a ser o desfecho desse combate travado contra Deus por uns fracos mortais, nenhum espírito sensato pode pô-lo em dúvida. Certamente, ao homem que quer abusar da sua liberdade lícito é violar os direitos e a autoridade suprema do Criador; mas ao Criador fica sempre a vitória. E ainda não é dizer o bastante: a ruína paira mais de perto sobre o homem justamente quando mais audacioso ele se ergue na esperança do triunfo. É o de que o próprio Deus nos adverte nas Sagradas Escrituras. Dizem elas que Ele fecha os olhos sobre os pecados dos homens (Sb 11,24), como que esquecido do seu poder e da sua majestade; mas em breve, após essa aparência de recuo, acordando como um homem cuja força a embriaguez aumentou (Sl 77,65), Ele quebra a cabeça dos seus inimigos (Sl 67,22), afim de que todos saibam que o Rei de toda a terra é Deus (Sl 46,8), e afim de que os povos compreendam que não passam de homens (Sl 9,20).

Deus exige a nossa colaboração

8. Tudo isso, Veneráveis Irmãos, com fé certa sustentamos e esperamos. Mas esta confiança não nos dispensa, naquilo que de nós depende, de apressarmos a obra divina, não somente por uma oração perseverante: 'Levantai-vos, Senhor, e não permitais que o homem se prevaleça da sua força' (Sl 9,19), mais ainda, e é o que mais importa, pela palavra e pelas obras, em plena luz, afirmando e reivindicando para Deus a plenitude do seu domínio sobre os homens e sobre toda criatura, de sorte que os seus direitos e o seu poder de mandar sejam reconhecidos por todos com veneração, e praticamente respeitados.

O partido de Deus

9. Cumprir esses deveres não é apenas obedecer às leis da natureza, é trabalhar também para vantagem do gênero humano. De feito, Veneráveis Irmãos, quem poderia deixar de sentir a sua alma presa de temor e de tristeza em vendo a maioria dos homens, enquanto, por outro lado, se exaltam, e com justa razão, os progressos da civilização, vendo-os desencadear-se com tal encarniçamento uns contra os outros, que se diria um combate de todos contra todos? Sem dúvida, o desejo da paz está em todos os corações, e não há ninguém que não a chame por todos os seus anseios. Mas essa paz, insensato de quem a busca fora de Deus; porquanto expulsar a Deus é banir a justiça; e, afastada a justiça, toda a esperança de paz torna-se uma quimera. A paz é obra da justiça (Is 32,17). Pessoas há, e, não o ignoramos, em grande número, as quais, impelidas pelo amor da paz, isto é, da tranquilidade da ordem, se associam e se agrupam para formarem o que elas chamam de partido da ordem. Ai! Vãs esperanças, trabalho perdido! De partidos de ordem capazes de restabelecer a tranquilidade no meio da perturbação das coisas, só há um: o partido de Deus. É, pois, este que nos cumpre promover; é a ele que nos cumpre trazer o maior número de adeptos possível, por menos que tenhamos a peito a segurança pública.

10. Todavia, Veneráveis Irmãos, essa volta das nações ao respeito da majestade e da soberania divina, por mais esforços, aliás, que façamos para realizá-lo, não advirá senão por Jesus Cristo. De feito, o Apóstolo adverte-nos que ninguém pode lançar outro fundamento senão aquele que foi lançado e que é o Cristo Jesus (I Cor 3,11). Só a Ele foi que o Pai santificou e enviou a este mundo (Jo 10, 36), esplendor do Pai e figura da sua substância (Hb 1,3), verdadeiro Deus e verdadeiro homem sem o qual ninguém pode conhecer a Deus como convém, pois ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo (Mt 11,27).

Reconduzir os homens ao império de Cristo

11. Donde se segue que restaurar tudo em Cristo e reconduzir os homens à obediência divina são uma só e mesma coisa. E é por isto que o fito para o qual devem convergir todos os nossos esforços é reconduzir o gênero humano ao império de Cristo. Feito isto, o homem achar-se-á, por isso mesmo, reconduzido a Deus. Mas – queremos dizer – não um Deus inerte e descuidoso das coisas humanas, como nos seus loucos devaneios o forjaram os materialistas, senão um Deus vivo e verdadeiro, em três pessoas na unidade de natureza, autor do mundo, estendendo a todas as coisas a sua infinita Providência, enfim legislador justíssimo que pune os culpados e assegura às virtudes a sua recompensa.

A via é a Igreja

12. Ora, onde está a via que nos dá acesso a Jesus Cristo? Está debaixo dos nossos olhos: é a Igreja. Diz-no-lo com razão São João Crisóstomo: a Igreja é a tua esperança, a Igreja é a tua salvação, a Igreja é o teu refugio (Hom. de capto Eutropio, n. 6).

13. Foi para isso que Cristo a estabeleceu, depois de adquiri-la ao preço do seu sangue; foi para isso que Ele lhe confiou a sua doutrina e os preceitos da sua lei, prodigalizando-lhe ao mesmo tempo os tesouros da graça divina para a santificação e salvação dos homens.

14. Vedes, pois, Veneráveis Irmãos, que obra nos é confiada, a nós e a vós. Trata-se de reconduzir as sociedades humanas, desgarradas longe da sabedoria de Cristo, reconduzi-las à obediência da Igreja; a Igreja, por seu turno, submetê-las-á a Cristo, e Cristo a Deus. E, se pela graça divina nos for dado realizar esta obra, teremos a alegria de ver a iniquidade ceder lugar à justiça, e folgaremos de ouvir uma grande voz dizendo do alto dos céus: 'Agora é a salvação, e a virtude, e o reino de nosso Deus e o poder de seu Cristo' (Ap 12,10).

15. Todavia, para que o resultado corresponda aos nossos votos, mister se faz, por todos os meios e à custa de todos os esforços, desarraigar inteiramente essa detestável e monstruosa iniquidade própria do tempo em que vivemos e pela qual o homem se substitui a Deus. Restabelecer na sua antiga dignidade as leis santíssimas e os conselhos do Evangelho; proclamar bem alto as verdades ensinadas pela Igreja sobre a santidade do matrimônio, sobre a educação da infância, sobre a posse e o uso dos bens temporais, sobre os deveres dos que administram a coisa pública; restabelecer, enfim, o justo equilíbrio entre as diversas classes da sociedade segundo as leis e as instituições cristãs.

16. Tais são os princípios que, para obedecer à divina vontade, nós nos propomos aplicar durante todo o curso do nosso pontificado e com toda a energia de nossa alma.

17. O vosso papa, e sobretudo pelo vosso zelo da glória de Deus, não visando a nada mais do que a formar em todos Jesus Cristo (Gl 4,19).

OS MEIOS

(i) Formar Cristo nos sacerdotes

18. Que meios importa empregar para atingir um fim tão elevado? Parece supérfluo indicá-los, tanto eles se apresentam à mente por si mesmos. Sejam os vossos primeiros cuidados formar Cristo naqueles que, pelo dever da sua vocação, são destinados a formá-lo nos outros. Queremos falar dos sacerdotes, Veneráveis Irmãos. Porquanto todos aqueles que são honrados com o sacerdócio devem saber que tem, entre os povos com que convivem, a mesma missão que Paulo testava haver recebido, quando pronunciava estas ternas palavras: 'Meus filhinhos, a quem eu gero de novo, até que Cristo se forme em vós' (Gl 4,19). Ora, como poderão eles cumprir um tal dever, se eles próprios não forem primeiramente revestidos de Cristo? E revestidos até poderem dizer com o Apóstolo: 'Vivo, já não eu, mas Cristo vive em mim' (Gl 2,20). Para mim Cristo é a minha vida (Fl 1,21). Por isto, embora todos os fiéis devam aspirar ao estado de homem perfeito, à medida da idade da plenitude de Cristo (Ef 4,3), essa obrigação incumbe principalmente àquele que exerce o ministério sacerdotal. Por isto é ele chamado ‘outro Cristo’; não somente porque participa do poder de Jesus Cristo, mas porque deve imitar-lhe as obras e, destarte, reproduzir-lhe a imagem em si mesmo.

Cuidados dos seminaristas

19. Se assim é, Veneráveis Irmãos, quão grande não deve ser a vossa solicitude para formar o clero na santidade! Não há negócio que não deva ceder o passo a este. E a consequência é que o melhor e o principal do vosso zelo deve aplicar-se aos vossos seminários, para introduzir neles uma tal ordem e lhes assegurar um tal governo, que neles se veja florescerem lado a lado a integridade do ensino e a santidade dos costumes. Fazei do seminário as delícias do vosso coração, e não descureis coisa alguma daquilo que, na sua alta sabedoria, o Concílio de Trento prescreveu para garantir a prosperidade dessa instituição. Quando chegar o tempo de promover às Sagradas Ordens os jovens candidatos, não vos esqueçais daquilo que São Paulo escrevia a Timóteo: 'Não imponhas precipitadamente as mãos a ninguém' (I Tm 5,22); bem vos persuadindo de que, as mais das vezes, tais quais forem aqueles que admitirdes ao sacerdócio, tais serão também, depois, os fieis confiados à solicitude deles. Não olheis, pois, a nenhum interesse particular, seja de que natureza for; mas tende unicamente em mira Deus, a Igreja, a felicidade eterna das almas, a fim de, como nos adverte o Apóstolo, evitardes participar dos pecados de outrem (Ibidem).

Cuidados com os novos sacerdotes

20. Aliás, nem por isto escapem às solicitudes do vosso zelo os novos padres que saem do seminário. Estreitai-os, recomendam-vo-lo do mais profundo de nossa alma, estreitai-os com frequência ao vosso coração, que deve arder de um fogo celeste; aquecei-os, inflamai-os, afim de que eles, não mais aspirem senão a Deus e à conquista das almas. Quanto a nós, Veneráveis Irmãos, velaremos com o maior cuidado por que os membros do clero não se deixem surpreender pelas manobras insidiosas, de uma certa ciência nova que se enfeita com a máscara da verdade e onde se não respira o perfume de Jesus Cristo; ciência mendaz que, com o favor de argumentos falazes e pérfidos, se esforça por abrir caminho aos erros do racionalismo ou do semi-racionalismo, e contra a qual o Apóstolo já advertia ao seu caro Timóteo premunir-se, quando lhe escrevia: 'Guarda o depósito, evitando as novidades profanas na linguagem, tanto quanto as objeções de uma ciência falsa, cujos partidários com todas as suas promessas faliram na fé' (I Tm 6,20-). Não quer isto dizer que não julguemos dignos de elogios esses padres novos que se consagram a úteis estudos em todos os ramos da ciência, e assim se preparam para defender melhor a verdade e para refutar mais vitoriosamente as calúnias dos inimigos da fé. Não podemos, todavia, dissimulá-lo, e declaramo-lo, mesmo muito abertamente as nossas preferências são e serão sempre por aqueles que, sem descurarem as ciências eclesiásticas e profanas, se votam mais particularmente ao bem das almas no exercício dos diversos ministérios que ficam bem ao padre animado de zelo pela honra divina.

(ii) Necessidade do Ensino Religioso

21. É para o Nosso coração uma grande tristeza e uma contínua dor (Rm 9,2) verificar que se pode aplicar aos nossos dias esta queixa de Jeremias: 'As crianças pediram pão, e não havia ninguém para lhes partir esse pão' (Jr 4,4). Efetivamente, não falta no clero quem, cedendo a gostos pessoais, dispenda a sua atividade em coisas de uma utilidade mais aparente do que real; ao passo que menos numerosos são talvez os que, a exemplo de Cristo, tomem para si mesmos as palavras do Profeta: 'O Espírito do Senhor deu-me a unção, enviou-me a evangelizar os pobres, a curar os que têm o coração partido, a anunciar os cativos a libertação, e a luz aos cegos' (Lc 4,18-19). E, no entanto, visto que o homem tem por guia a razão e a liberdade, a ninguém escapa que o principal meio de restituir a Deus o seu império sobre as almas é o ensino religioso. Quantos que são hostis a Jesus Cristo, que horrorizam a Igreja e o Evangelho, bem mais por ignorância do que por malícia, e dos quais se poderia dizer: 'Blasfemam tudo o que ignoram' (Jd 1,10). Estado de alma que verificamos não somente no povo e no seio das classes mais humildes, as quais a sua própria condição torna mais acessíveis ao erro, mas até nas classes elevadas, e naqueles mesmos que possuem, aliás, uma instrução pouco comum. Daí, em muitos, o desaparecimento da fé; pois não se deve admitir que sejam os progressos da ciência que a sufoquem; é, muito antes, a ignorância; de tal sorte que, onde quer que a ignorância é maior, aí também a incredulidade faz maiores devastações. Foi por isto que Cristo deu aos apóstolos este preceito: 'Ide e ensinai todas as nações' (Mt 28,19).

(iii) A Caridade Cristã

22. Mas para que esse zelo em ensinar produza os frutos que dele se esperam e sirva para formar Cristo em todos, nada mais eficaz do que a caridade; gravemos isto fortemente na nossa memória, ó Veneráveis Irmãos, pois o Senhor não está na comoção (III Rs 19,11). Debalde esperaríamos atrair as almas a Deus por um zelo impregnado de azedume; exprobrar duramente os erros, e repreender os vícios com aspereza, muitíssimas vezes causa mais dano do que proveito. Verdade é que o Apóstolo, exortando Timóteo, lhe dizia: 'Acusa, suplica, repreende, mas acrescentava: com toda paciência' (II Tm 4,2). Nada mais conforme aos exemplos que Jesus Cristo nos deixou. É Ele quem nos dirige este convite: 'Vinde a mim vós todos que sofreis e que gemeis sob o fardo, e eu vos aliviarei' (Mt 11,28). E, no seu pensamento, esses enfermos e esses oprimidos outros não eram senão os escravos do erro e do pecado. De fato, que mansidão nesse divino Mestre! Que ternura, que compaixão para com todos os infelizes! O seu divino Coração é-nos admiravelmente pintado por Isaías nestes termos: 'Pousarei sobre ele o meu espírito; ele não contestará nem elevará a voz: jamais acabará de quebrar o caniço meio partido, nem extinguirá a mecha que ainda fumega' (Is 42,1-). Essa caridade paciente e benigna (I Cor 13,4) deverá ir ao encontro daqueles mesmos que são nossos adversários e nossos perseguidores. Eles nos maldizem, assim o proclamava São Paulo, e nós bendizemos; perseguem-nos, e nós suportamos; blasfemam-nos, e nós oramos (I Cor 4,12-). Talvez que, afinal de contas, eles se mostrem piores do que são realmente. O contato com os outros, os preconceitos, a influência das doutrinas e dos exemplos, enfim o respeito humano, conselheiro funesto, inscreveram-nos no partido da impiedade; mas, no fundo, a vontade deles não é tão depravada como eles se comprazem em fazer crer. Porque então não haveríamos de esperar que a chama da caridade dissipe enfim as trevas da alma deles, e faça reinar nelas, com a luz, a paz de Deus? Mais de uma vez o fruto do nosso trabalho talvez se faça esperar; mas a caridade não se cansa, persuadida de que Deus mede as suas recompensas não pelos resultados, mas pela boa vontade.

Todos os fiéis devem colaborar

23. Entretanto, Veneráveis Irmãos, absolutamente não é nosso pensamento que, nessa obra tão árdua da renovação dos povos por Cristo, vós e o vosso clero fiqueis sem auxiliares. Sabemos que Deus recomendou a cada um o cuidado do seu próximo (Ecli 17,12). Não são, pois, somente os homens revestidos do sacerdócio, mas sim todos os fiéis sem exceção, que devem dedicar-se aos interesses de Deus e das almas: certamente, não cada um ao sabor das suas vistas e das suas tendências, mas sempre sob a direção e segundo a vontade dos bispos, pois o direito de mandar, de ensinar, de dirigir não pertence a ninguém mais na Igreja senão a vós, estabelecidos pelo Espírito Santo para regerdes a Igreja de Deus (At 20,28).

(a) Nas associações

24. Associar-se entre católicos com intuitos diversos, mas sempre para o bem da religião, é coisa que, de há longo tempo, tem merecido a aprovação e as bênçãos dos nossos predecessores. Nós também não hesitamos em louvar tal obra, e vivamente desejamos que ela se difunda e floresça por toda parte, nas cidades como nos campos. Mas, ao mesmo tempo, entendemos que essas associações tenham por primeiro e principal objeto fazer que os que nelas se alistam cumpram fielmente os deveres da vida cristã. Pouco importa, em verdade, agitar sutilmente múltiplas questões e dissertar com eloquência sobre direitos e deveres, se tudo isso não redunda na ação. A ação, eis o que reclamam os tempos presentes; mas uma ação que se aplique sem reserva à observância integral e escrupulosa das leis divinas e das prescrições da Igreja, à profissão aberta e ousada da religião, ao exercício da caridade sob todas as suas formas, sem preocupação alguma de si mesmo nem das suas vantagens terrenas. Esplêndidos exemplos deste gênero dados por tantos soldados de Cristo mais depressa abalarão e arrastarão as almas, do que a multiplicidade das palavras e do que a sutileza das discussões; e ver-se-ão, sem dúvida, multidões de homens, calcando aos pés o respeito humano, desprendendo-se de todo preconceito e de toda hesitação, aderir a Cristo e promover, por seu turno, o conhecimento e o amor de Cristo, penhor da verdadeira e sólida felicidade.

(b) Pelo fervor da vida cristã

25. Certamente, no dia em que, em cada cidade, em cada aldeia, a lei do Senhor for cuidadosamente guardada, as coisas santas forem cercadas de respeito, os sacramentos frequentados, em suma, tudo o que constitui a vida cristã for reposto em honra, nada mais faltará, Veneráveis Irmãos, para que nós contemplemos a restauração de todas as coisas em Cristo. E não se creia que tudo isso se refere somente à aquisição dos bens eternos; os interesses temporais e a prosperidade pública também se ressentirão muito felizmente disso. Porquanto, uma vez obtidos esses resultados, os nobres e os ricos saberão ser justos e caridosos para com os pequenos, e estes suportarão na paz e na paciência as privações da sua pouca afortunada condição; os cidadãos obedecerão não mais ao arbítrio, porém às leis; todos considerarão como um dever o respeito e o amor para com os que governam, e cujo poder só vem de Deus (Rm 13,1).

A Igreja deve ser livre

26. Há mais. Assim sendo, a todos será manifesto que a Igreja, tal como foi instituída por Jesus Cristo, deve gozar de plena e inteira liberdade, e não ser submetida a nenhuma dominação humana; e que nós mesmos, reivindicando essa liberdade, não somente salvaguardamos os direitos sagrados da religião, mas provemos também ao bem comum e à segurança dos povos: a piedade é útil a tudo (I Tm 4,8) e, onde quer que ela reine, o povo está verdadeiramente assente na plenitude da paz (Is 32,18).

Conclusão

27. Que Deus, rico em misericórdia (Ef 2,4), apresse, na sua bondade, essa renovação do gênero humano em Jesus Cristo, visto não ser isso obra nem daquele que quer, nem daquele que corre, mas do Deus das misericórdias (Rm 9,16). E nós todos, Veneráveis Irmãos, peçamos-lhe esta graça em espírito de humildade (Dn 3,39), por uma oração instante e contínua, apoiada nos méritos de Jesus Cristo. Recorramos também à intercessão poderosíssima da divina Mãe. E, para mais largamente obtê-la, tomando ensejo deste dia em que vos dirigimos estas Letras, e que foi instituído para solenizar o santo Rosário, confirmamos todas as ordenações pelas quais o nosso predecessor consagrou o mês de outubro à augusta Virgem, e prescreveu em todas as igrejas a recitação pública do Rosário. Exortamos-vos, além disso, a tomardes também por intercessores o puríssimo Esposo de Maria, padroeiro da Igreja Católica, e os príncipes dos apóstolos, São Pedro e São Paulo.

28. Para que todas estas coisas se realizem segundo os nossos desejos, e para que todos os vossos trabalhos sejam coroados de êxito, nós imploramos sobre vós, em grande abundância, os dons da graça divina. E, como testemunho da terna caridade em que voz abraçamos, a vós e a todos os fiéis pela Divina Providência confiados aos vossos cuidados, nós vos concedemos em Deus, com abundância de coração, Veneráveis Irmãos, bem como ao vosso clero e ao vosso povo, a Bênção Apostólica.