sexta-feira, 26 de março de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (I)

Le Dogme du Purgatoire
illustré par des Faits et des Révélations Particulières

Capítulo Preliminar

Objetivo do livro. - A que classe de leitores se destina. - O que somos obrigados a acreditar, o que podemos acreditar piamente e o que somos livres para não acreditar. - Visões e aparições. - Credulidade cega e incredulidade exagerada.

O dogma do purgatório é muito esquecido pela maioria dos fiéis; a Igreja Padecente, onde estão tantos irmãos que ora precisam de ajuda e onde se deveria prever que também se pode estar em breve, parece-lhes algo estranha. Esse esquecimento, verdadeiramente deplorável, fez tremer São Francisco de Sales: 'Ai de mim! - disse este piedoso santo da Igreja -  'não nos lembramos o suficiente dos nossos queridos defuntos: a sua memória parece morrer com o som dos sinos'. A principal causa é a ignorância e a falta de fé: temos sobre o purgatório noções muito vagas e uma fé muito fraca. Devemos, portanto, olhar mais de perto essa vida além da sepultura, esse estado intermediário das almas justas e que ainda não são dignas de entrar na Jerusalém Celestial, a fim de obter noções mais sólidas e reavivar a nossa fé.

Este é o objetivo deste trabalho: nos propomos a fazê-lo, não para provar a existência do purgatório para mentes céticas; mas para torná-lo mais conhecido aos fiéis piedosos, que acreditam com fé divina neste dogma revelado por Deus. É a eles que este livro se dirige por princípio, a fim de dar-lhes uma ideia menos confusa do purgatório; diria uma ideia mais real do que normalmente se tem, projetando-se o máximo de luz possível sobre esta grande verdade da fé.

Para isso, temos três fontes de luz bastante distintas. Primeiro, a doutrina dogmática da Igreja; depois, a doutrina explicada pelos doutores da Igreja; terceiro, as revelações de santos e de aparições, que confirmam o ensino dos doutores da Igreja:

(i) a doutrina dogmática da Igreja sobre o purgatório compreende dois artigos que indicaremos a seguir no capítulo 3; esses dois artigos são de fé e devem ser acreditados por todo católico.

(ii) a doutrina de doutores e teólogos ou, de outra forma, seus pontos de vista e exortações sobre várias questões relativas ao purgatório (ver também a seguir, cap. III e seguintes) não devem ser incorporados como artigos de fé; podem ser passíveis de não aceitação sem capitulação da fé católica. No entanto, seria imprudente, até mesmo temerário, afastar-se deles, pois é inerente ao espírito da Igreja seguir as explanações comumente ensinadas pelos doutores da Igreja.

(iii) as revelações dos santos, também chamadas revelações particulares, não pertencem ao depósito da fé confiado por Jesus Cristo à sua Igreja; são fatos históricos baseados em testemunhos humanos. É permitido acreditar neles e a piedade encontra neles um alimento salutar. Também podemos não acreditar neles sem pecar contra a fé; mas, se foram autenticados pela Igreja, não podem ser rejeitados sem ofender a razão: porque a justa razão ordena a todo homem dar o devido assentimento à verdade, quando ela for suficientemente demonstrada.

Para lançar mais luz sobre este assunto, vamos primeiro explicar a natureza das revelações de que estamos falando. As revelações particulares são de dois tipos: uma consiste em visões, a outra em aparições. São chamadas particulares porque, ao contrário daquelas descritas na Sagrada Escritura, não fazem parte da doutrina revelada a todos os homens, e não são propostas pela Igreja para que sejam acreditadas como dogmas de fé.

As próprias visões constituem luzes subjetivas que Deus derrama na inteligência de uma criatura para descobrir os seus mistérios. Essas são as visões dos profetas, de São Paulo, de Santa Brígida e de muitos outros santos. As visões geralmente ocorrem em estado de êxtase: consistem em certos eventos extraordinários que se apresentam aos olhos da alma e que nem sempre devem ser considerados literalmente. Frequentemente, constituem mais figuras ou imagens simbólicas que representam, em escala proporcional à nossa compreensão, coisas que são puramente espirituais e das quais a linguagem humana é incapaz de expressar em medida adequada. 

As aparições ao contrário constituem, quase frequentemente, fenômenos objetivos, que têm um objeto externo real. Assim foi a aparição de Moisés e Elias no Tabor, a de Samuel evocada pela Pitonisa de Endor, a do anjo Rafael a Tobias, a de muitos outros anjos; enfim, estas são também as aparições de almas no purgatório. Que os espíritos dos mortos às vezes aparecem aos vivos é um fato que não pode ser negado. O Evangelho não evoca isso claramente? Quando Jesus ressuscitado apareceu pela primeira vez aos discípulos reunidos, eles pensaram que viam um espírito. O Salvador, em vez de dizer a eles que os espíritos não aparecem, lhes fala nos seguintes termos: 'Por que estais perturbados, e por que essas dúvidas nos vossos corações? Vede minhas mãos e meus pés, sou eu mesmo; apalpai e vede: um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que tenho' (Lc 24, 38- 39).

As aparições das almas que estão no purgatório acontecem com frequência. Elas ocorrem em grande número na vida dos santos e, às vezes, até mesmo na vida de fiéis comuns. Reunimos e apresentamos ao leitor aqueles fatos que nos parecem mais adequados para instruí-lo ou edificá-lo. Mas - pode-se argumentar - estes fatos são historicamente verdadeiros? Nós escolhemos então os que foram mais comprovados¹. Mas se algum leitor não ficar convencido ou encarar com ceticismo alguns deles, pode desconsiderá-los sem problemas. Porém, no sentido de não se adentrar em uma severidade excessiva que beira a descrença, impõe-se ressaltar que, falando genericamente, aparições de almas do Purgatório ocorrem e isso não pode ser negado e nem mesmo que estas aparições não ocorram frequentemente. 

¹ É na vida dos santos, honrados como tais pela Igreja, bem como de outros ilustres servos de Deus, que reunimos a maioria dos fatos que citamos. O leitor que quiser verificar esses fatos e avaliá-los pelo seu valor justo, poderá, sem dificuldade, recorrer às primeiras fontes com o auxílio de nossas indicações. Se o relato for tirado da vida de um santo, indicamos o dia em que seu nome está marcado no martirológio, o que basta para se consultar a Acta Sanctorum. Se falarmos de qualquer outra pessoa venerável, como Pe. José de Anchieta², apóstolo do Brasil, cuja vida não está incluída nos volumes dos Bollandistas³, tivemos que recorrer a biografias ou obras específicas. Para os exemplos tomados da obra 'Merveilles Divines dans les Ames du Purgatoire', do Pe. Rossignoli, nos limitamos a mencionar o número indicado no 'Merveilles', uma vez que o autor indicou uma ou mais fontes de sua própria pesquisa.
² São José de Anchieta, canonizado em 03 de abril de 2014
³ associação de especialistas religiosos na elaboração da biografia dos santos (Acta Santorum)

'Esses tipos de aparições' - diz Ribet - 'não são raros'. Deus os permite para o alívio das almas, que vêm até nós para despertar a nossa compaixão, e também para nos fazer compreender quão terríveis são os rigores da sua justiça contra faltas que podemos considerar como insignificantes. São Gregório, em seus 'Diálogos', relata vários exemplos, cuja autenticidade plena podemos, é verdade, contestar, mas que, na boca do santo Doutor, pelo menos provam que ele acreditava na possibilidade e na existência real desses fatos. Muitos outros autores, não menos louváveis ​​do que São Gregório pela santidade e pela ciência, relatam fatos semelhantes. Além disso, histórias desse tipo abundam na vida dos santos: para se convencer disso, basta acessar as fichas da Acta Sanctorum (RibetLa mystique divine, distinguée des contrefaçons diaboliques et des analogies humaines - Paris, Poussielgue).

A Igreja Padecente sempre implorou pelos sufrágios da Igreja na terra; e este convívio, marcado pela tristeza mas também eivado de instrução, constitui, por um lado, uma fonte inesgotável de alívio e, por outro, um poderoso estímulo à santidade. A visão do purgatório foi concedida a várias almas santificadas. Santa Catarina de Ricci descia ao purgatório em espírito todos os domingos à noite; Santa Lidwina, durante os seus êxtases, adentrou neste lugar de expiação e, conduzida por seu anjo da guarda, visitou as almas em seus tormentos. Um anjo conduziu também o bem aventurado Osanne de Mântua por esses abismos escuros. A bem aventurada Verônica de Binasco, Santa Francisca de Roma e muitos outros receberam visões muito semelhantes, com as mesmas impressões de terror.

Mais frequentemente, são as próprias almas sofredoras que se dirigem aos vivos e clamam por sua intercessão. Várias apareceram assim à bem aventurada Margarida Maria Alacoque⁴ e a uma multidão de outras figuras sagradas. As almas dos defuntos imploravam frequentemente a piedade de Dênis, o Cartuxo. Um dia perguntamos a este grande servo de Deus quantas vezes essas pobres almas lhe apareceram? 'Oh, centenas e centenas de vezes!'- respondeu ele.

⁴ Santa Margarida Maria Alacoque, canonizada pelo papa Bento XV em 1920.

Santa Catarina de Sena, para poupar o seu pai das dores do purgatório, ofereceu-se à justiça divina para sofrer em seu lugar durante a vida. Deus atendeu a sua oferta e a infligiu desde então com dores excruciantes até a sua morte, e acolheu a alma do seu pai na glória. Em troca, essa alma abençoada frequentemente aparecia para a filha, para agradecê-la e para fazer a ela inúmeras revelações.

As almas do purgatório, quando aparecem aos vivos, sempre se apresentam numa atitude que excita a compaixão, às vezes com feições que tiveram em vida ou na morte, com rosto triste e olhares suplicantes, com roupas de luto, com expressão de extrema dor; às vezes, porém, como uma luz, uma nuvem, uma sombra ou alguma figura fantástica, acompanhada de um sinal ou de uma palavra que os permite reconhecer. Em outras ocasiões, elas indicam a sua presença por meio de gemidos, soluços, suspiros, respiração ofegante ou murmurações aflitivas. Frequentemente aparecem envolvidas por chamas. Quando falam, é para expressar o seu sofrimento, para deplorar as suas faltas passadas, para pedir sufrágios ou mesmo para reprovar aqueles que deveriam ajudá-los. 

'Outro tipo de revelação', acrescenta o mesmo autor, 'dá-se por meio de batidas invisíveis que os vivos percebem: batidas à porta, som de correntes, som de vozes. Esses fatos são demasiado frequentes para serem questionados: a única dificuldade é estabelecer a relação direta deles com o mundo da expiação. Mas quando tais manifestações ocorrem com a morte de pessoas que nos são queridas e então cessam, após serem feitas orações e reparações a Deus em nome delas, não nos parece razoável perceber por que estas almas nos dão a conhecer os seus sofrimentos?

Nestes vários fenômenos que acabamos de assinalar, reconheceremos a ação das pobres almas do purgatório. Mas há um caso em que a aparição deve ser considerada suspeita: é quando um pecador escandaloso, inesperadamente surpreendido pela morte, vem implorar as orações dos vivos para serem libertados do purgatório. O demônio está inclinado a nos fazer acreditar que uma alma pode viver na maior iniquidade até a morte e, ainda assim, escapar do inferno. Porém, mesmo nesses encontros, não é proibitivo imaginar que a alma que se manifesta se arrependeu retamente e que se encontra nas chamas da expiação temporária, nem, portanto, se deve deixar de orar por ela; mas é aconselhável atentar com a maior reserva sobre esses tipos de visões e sobre o crédito que elas possam ter (Ribet, Mystique Divine, tomo II, cap. X).

Os detalhes que acabamos de explicitar são suficientes para justificar aos olhos do leitor a citação dos fatos que encontrará no decorrer desta obra. Acrescentemos que o cristão deve ter cuidado para não ser muito incrédulo em fatos sobrenaturais, que estão relacionados com os dogmas de sua fé. São Paulo diz-nos que a caridade acredita em tudo (I Cor 13,7), isto é, como nos explicam os intérpretes, tudo o que se pode crer com prudência não pode ser prejudicial à nossa fé. 

Se é verdade que a prudência condena a credulidade cega e supersticiosa, também é verdade que devemos evitar outro excesso, aquele que o Salvador censura no apóstolo São Tomé: 'Creste, porque me viste. Felizes aqueles que creem sem ter visto! (Jo 20, 29) e ainda: 'Não sejas incrédulo, mas homem de fé' (Jo 20, 27). O teólogo que expõe dogmas da fé deve ser severo na escolha de suas provas; o historiador também deve proceder sob rigoroso espírito crítico na exposição dos fatos; mas o escritor asceta, quando cita exemplos e fatos para esclarecer as verdades e edificar os fiéis, não está sujeito a esse rigor estrito. Os luminares mais autorizados da Igreja, como São Gregório, São Bernardo, São Francisco de Sales, Santo Afonso de Ligório, São Belarmino e tantos outros, tão distintos pela sabedoria como pela piedade, ao escrever suas obras de excelência, nada sabiam dos requisitos formais dos nossos tempos - que, de forma alguma, constituem propriamente um progresso.

Com efeito, se o espírito dos nossos pais na fé era mais simples, qual a causa que fez desaparecer entre nós esta simplicidade de outrora? Não é esse o racionalismo protestante que contamina em grande escala os católicos de hoje? Não é esse raciocínio e espírito crítico que emergem da reforma luterana, propagada pelo filosofismo francês, que os faz considerar as coisas de Deus de uma forma completamente humana, e que os torna frios e alheios ao espírito de Deus? O venerável Louis de Blois, falando sobre as revelações recebidas por Santa Gertrudes, disse que 'Este livro contém tesouros. Homens orgulhosos e carnais' - acrescenta - 'que nada entendem do espírito de Deus, tratam os escritos da virgem Santa Gertrudes, de Santa Mechtilde, de Santa Hildegarda e outros como devaneios; porque ignoram com que familiaridade Deus se comunica às almas humildes, simples e amorosas; e como, nessas comunicações íntimas, Ele se deleita em iluminar essas almas com a pura luz da verdade, sem sombra de erros' (Louis de Blois, Epist. Ad Florentium).

Estas palavras de Louis de Blois são muito sérias. Não querendo incorrer na censura deste grande mestre da vida espiritual e buscando evitar a credulidade condenável, reunimos com certa liberdade os fatos que nos pareceram ser os mais autênticos e os mais instrutivos. Que possam aumentar em quem os lê a devoção aos fieis defuntos! E que possam imprimir profundamente nas suas almas o pensamento sagrado e salutar do purgatório!

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)