quinta-feira, 12 de março de 2020

SOBRE A PROVIDÊNCIA DIVINA

O espírito humano é tão fraco que, quando quer investigar demasiado as causas e razões da vontade divina por mera curiosidade, embaraça-se e enrodilha-se em redes de mil dificuldades, das quais depois não se pode desprender. Assemelha-se à fumaça; porque, subindo, sutiliza-se e, sutilizando-se, dissipa-se. O esforço de querer elevar nossos discursos às coisas divinas por mera curiosidade nos faz apenas dissiparmos em nossos pensamentos e, ao invés de chegarmos à ciência da verdade, caímos na loucura da nossa própria vaidade (Rm 1, 21; 2 Tm 3, 7; Rm 1, 22).

Mas somos sobretudo extravagantes no que concerne à Providência Divina, no tocante à diversidade dos meios que ela nos distribui para nos atrair ao seu santo amor e, pelo seu santo amor, à glória. Porquanto a nossa temeridade nos força sempre a questionar por que Deus dá mais meios a uns do que a outros; por que foi que Ele não fez entre os de Tiro e de Sidônia as maravilhas que fez em Corozaim e Betsaida, já que eles teriam tão bem aproveitado delas e, em suma, por que Ele atrai ao seu amor um mais do que outro (Mt 11, 21). Ó Teótimo, meu amigo, nunca, nunca devemos deixar levar nosso espírito por esse turbilhão de vento louco, nem pensar achar melhor razão da vontade de Deus do que a sua própria vontade, a qual é sumamente razoável, antes a razão de todas as razões, a regra de toda bondade, a lei de toda equidade. 

Ainda que o santíssimo Espírito, falando em vários trechos da Escritura sagrada, dê razão de quase tudo o que poderíamos desejar ao que a sua providência opera na guia dos homens, no tocante ao santo amor e à salvação eterna, em várias outras ocasiões Ele declara que absolutamente não nos devemos apartar do respeito que é devido à sua vontade. Dessa vontade, devemos adorar o propósito, o decreto, o beneplácito e a razão pela qual, como juiz soberano e soberanamente equitativo, não é razoável que se manifeste seus motivos, bastando que fale simplesmente... Ó Senhor Deus, com que reverência amorosa devemos adorar a equidade da Vossa providência suprema, a qual é infinita em justiça e bondade!

... É por isso que o divino apóstolo se manifesta: 'Ó profundeza das riquezas da sabedoria e ciência de Deus! Como são incompreensíveis os seus juízos, imperceptíveis os seus caminhos! Quem conhece os pensamentos do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro?' (Rm 11, 33-34). Exclamação que testemunha que Deus faz tudo com grande sabedoria, ciência e razão. Sendo assim, não podendo o homem compartilhar o divino conselho, cujos juízos e projetos são elevados infinitamente acima da capacidade humana, nós devemos devotadamente apenas adorar os decretos divinos, como muito equitativos, sem lhes investigar os motivos, os quais Ele retém em segredo para consigo, a fim de manter o nosso entendimento em respeito e humildade para conosco.

Santo Agostinho em várias ocasiões ensina esta mesma prática. Diz ele: 'Ninguém vem ao Salvador senão sendo atraído. Quem é que Ele atrai, e quem é que Ele não atrai, por que é que Ele atrai este e não aquele, não queirais ajuizar disto, se não queirais errar. Escuta uma vez e ouve. Não és atraído? Reza a fim de seres atraído. Ao cristão que vive da fé mas não pode ver o que é perfeito, basta saber e crer que Deus não livra ninguém da condenação senão por misericórdia gratuita, por Jesus Cristo Nosso Senhor, e que Ele não condena ninguém senão pela sua justiça infalível, em nome do mesmo Jesus Cristo Nosso Senhor. Mas saber por que é que Ele livra um e não outro, é sondagem da qual se deve resguardar-se em prudência, pois os seus decretos não são injustos ainda que sejam secretos. 

Vemos, às vezes, crianças gêmeas das quais uma nasce cheia de vida e recebe o batismo; a outra, nascendo, perde a vida temporal antes de renascer para a eterna; uma, por conseguinte, é herdeira do céu e a outra é privada da herança. Ora, por que será que a Divina Providência dá desfechos tão diversos a tão semelhante nascimento? Decerto, pode-se dizer que a providência de Deus ordinariamente não viola as leis da natureza; de tal sorte que, sendo um desses gêmeos vigoroso e o outro demasiado fraco para suportar o esforço da saída do seio materno, este morreu antes de poder ser batizado, e o outro viveu; não havendo assim a Providência querido impedir o curso das causas naturais que, nessa ocorrência, terão sido a razão da privação do batismo naquele que o não teve. 

Certamente esta resposta é bem sólida. Mas, consoante os pareceres de São Paulo e Santo Agostinho, não devemos impor tal consideração que, embora razoável, pode não ser comparável a várias outras que Deus reservou para si e que só nos fará conhecer no paraíso. 'Então', diz Santo Agostinho, 'já não será coisa secreta a razão por que um é elevado de preferência ao outro, sendo igual a causa de ambos; nem por que milagres não foram feitos no meio daqueles que, se milagres tivessem sido feitos entre eles, teriam feito penitência, e foram feitos no meio daqueles que não estavam dispostos a crer'. E esse mesmo santo, falando dos pecadores dos quais Deus deixa um na sua iniquidade e outro não, diz: 'Ora, por que é que Ele retém um e não retém o outro, não é possível compreendê-lo e nem lícito perscrutar tal coisa, pois nos basta saber que depende dEle ficarmos de pé ou não e que tudo isso é oculto e muito distante do espírito humano'.

Eis aí, Teótimo, a mais santa maneira de filosofar neste assunto. Por isto é que sempre achei admirável e amável a sábia modéstia e prudentíssima humildade do doutor seráfico São Boaventura, no discurso que ele faz da razão pela qual a Providência Divina destina os eleitos à vida eterna. Diz ele: 'Talvez seja pela previsão dos bens que se farão por meio daquele que é atraído, enquanto esses bens provêm, de algum modo, da vontade divina; mas saber dizer que bens são esses cuja previsão serve de motivo à divina vontade, nem eu o sei distintivamente, nem quero indagar deles; e não há aí razão a não ser de alguma sorte de conveniência, uma vez que poderíamos dizer alguma razão e ser outra'. 

É por isso que não poderíamos com certeza assinalar a razão verdadeira nem o verdadeiro motivo da vontade de Deus a esse respeito... E uma vez que não é conveniente para a nossa salvação que tenhamos conhecimento desses segredos, e antes nos era mais útil ignorá-los para nos manter em humildade, Deus não os quis nos revelar. E mesmo o santo Apóstolo não ousou inquirir deles, mas testemunhou a insuficiência do nosso entendimento a esse respeito, quando exclamou: 'Ó profundeza das riquezas da sabedoria e ciência de Deus!' (Rm 11, 33). Teótimo, poder-se-ia falar mais santamente de tão santo mistério? 

(Excertos da obra 'Tratado do Amor de Deus', de São Francisco de Sales)