sábado, 30 de junho de 2018

INSTRUMENTOS DA GRAÇA ESPIRITUAL

Primeiramente, amar ao Senhor Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças.
Depois, amar ao próximo como a si mesmo.
Em seguida, não matar.
Não cometer adultério.
Não furtar.
Não cobiçar.
Não levantar falso testemunho.
Honrar todos os homens.
E não fazer a outrem o que não quer que lhe seja feito.
Abnegar-se a si mesmo para seguir o Cristo.
Castigar o corpo.
Não abraçar as delícias.
Amar o jejum.
Reconfortar os pobres.
Vestir os nus.
Visitar os enfermos.
Sepultar os mortos.
Socorrer na tribulação.
Consolar o que sofre.
Fazer-se alheio às coisas do mundo. 
Nada antepor ao amor de Cristo.
Não satisfazer a ira.
Não reservar tempo para a cólera.
Não conservar a falsidade no coração.
Não conceder paz simulada.
Não se afastar da caridade.
Não jurar para não vir a perjurar.
Proferir a verdade de coração e de boca.
Não retribuir o mal com o mal.
Não fazer injustiça, mas suportar pacientemente as que lhe são feitas.
Amar os inimigos.
Não retribuir com maldição aos que o amaldiçoam, mas antes abençoá-los.
Suportar perseguição pela justiça.
Não ser soberbo.
Não ser dado ao vinho.
Não ser guloso.
Não ser apegado ao sono.
Não ser preguiçoso.
Não ser murmurador.
Não ser detrator.
Colocar toda a esperança em Deus.
O que achar de bem em si, atribuí-lo a Deus e não a si mesmo.
Mas, quanto ao mal, saber que é sempre obra sua e a si mesmo atribuí-lo.
Temer o dia do juízo.
Ter pavor do inferno.
Desejar a vida eterna com toda a cobiça espiritual.
Ter diariamente diante dos olhos a morte a surpreendê-lo.
Vigiar a toda hora os atos de sua vida.
Saber como certo que Deus o vê em todo lugar.
Quebrar imediatamente de encontro ao Cristo os maus pensamentos que lhe advêm ao coração e revelá-los a um conselheiro espiritual.
Guardar sua boca da palavra má ou perversa. 
Não gostar de falar muito.
Não falar palavras vãs ou que só sirvam para provocar riso. 
Não gostar do riso excessivo ou ruidoso.
Ouvir de boa vontade as santas leituras.
Dar-se frequentemente à oração.
Confessar todos os dias a Deus na oração, com lágrimas e gemidos, as faltas passadas e daí por diante emendar-se delas. 
Não satisfazer os desejos da carne.
Odiar a própria vontade.
Obedecer em tudo às ordens do Abade, mesmo que este, o que não aconteça, proceda de outra forma, lembrando-se do preceito do Senhor: 'Fazei o que dizem, mas não o que fazem'. 
Não querer ser tido como santo antes que o seja, mas primeiramente sê-lo para que como tal o tenham com mais fundamento.
Por em prática diariamente os preceitos de Deus. 
Amar a castidade.
Não odiar a ninguém.
Não ter ciúmes.
Não exercer a inveja.
Não amar a rixa.
Fugir da vanglória.
Venerar os mais velhos.
Amar os mais moços.
Orar, no amor de Cristo, pelos inimigos.
Voltar à paz, antes do por-do-sol, com aqueles com quem teve desavença.
E nunca desesperar da misericórdia de Deus.

Eis aí os instrumentos da arte espiritual: se forem postos em ação por nós, dia e noite, sem cessar, e devolvidos no dia do juízo, seremos recompensados pelo Senhor com aquele prêmio que Ele mesmo prometeu: 'O que olhos não viram nem ouvidos ouviram preparou Deus para aqueles que o amam'. São, porém, os claustros do mosteiro e a estabilidade na comunidade a oficina onde executaremos diligentemente tudo isso.

('Instrumentos das Boas Obras', das Regras de São Bento)

SUMA TEOLÓGICA EM FORMA DE CATECISMO (XIV)

XII

DO PECADO ORIGINAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS, OU FERIDAS DA NATUREZA HUMANA

Existia a concupiscência no estado primitivo em que Deus criou o homem?
Não, Senhor.

Por que existe agora?
Porque o homem se acha em estado de natureza decaída (LXXXI-LXXXIII)*.

Que entendeis por estado de natureza decaída?
O estado que se seguiu como efeito e consequência do primeiro pecado do primeiro homem (LXXX, 4; LXXXII, 1).

Por que se estendem a todos e a cada um dos homens, os efeitos e consequências daquele primeiro pecado do nosso primeiro pai?
Porque a nossa natureza é a sua e dele a recebemos (Ibid).

Se não tivesse pecado o primeiro homem, ter-nos-ia transmitido a natureza em outro estado?
Sim, Senhor; no estado de integridade e justiça original (LXXXI, 2).

O estado em que atualmente a recebemos é estado de pecado?
Sim, Senhor (LXXXI, 1; LXXXII, 1).

Por que?
Porque recebemo-la como ela é e conforme ficou em consequência do pecado (Ibid).

Como se chama esta mancha do pecado que se nos transmite, junto com a natureza, efeito da queda do primeiro homem?
Chama-se pecado original (Ibid).

Logo, o pecado original transmite-se a todos os homens pelo fato de receber a natureza de Adão pecador?
Por este único fato se transmite (Ibid).

Que efeito produz em cada indivíduo da espécie humana o chamado pecado original?
A privação dos dons sobrenaturais e gratuitos que Deus misericordiosamente havia concedido à natureza, na pessoa do primeiro homem e pai comum dos mortais (LXXXII, 1).

Quais eram os dons de que nos privou o pecado original?
Em primeiro lugar, a graça santificante com as virtudes sobrenaturais infusas e os dons do Espírito Santo; além disso, o privilégio da integridade vinculado aos dons sobrenaturais.

Que efeito produzia o privilégio da integridade?
A subordinação perfeita dos sentidos à razão, e do corpo à alma.

Que bens se conseguiam com tão perfeita subordinação?
Conseguia-se que as faculdades afetivas não podiam experimentar nenhum movimento desordenado, e que o corpo fosse impassível ou imortal.

Logo, a morte e as outras misérias corporais são o efeito próprio do pecado?
Sim, Senhor (LXXXV, 5).

Como se chamam os efeitos do pecado na alma?
Chamam-se feridas.

Quais são?
Ignorância, malícia, fragilidade e concupiscência (LXXXV; 3).

Que entendeis por ignorância?
A condição a que ficou reduzida a inteligência quando perdeu a disposição infalível para a verdade, como a possuía no estado de integridade (Ibid).

Que entendeis por malícia?
A condição a que ficou reduzida a vontade, desapossada da disposição infalível para o bem, que tinha no estado de Justiça original (Ibid).

Que entendeis por fragilidade?
A condição a que ficou reduzida a parte afetiva sensível, destituída da ordem conatural para com tudo o que é mau ou difícil e que ela possuía no estado de integridade original.

Que entendeis por concupiscência?
A condição a que se reduziu a parte afetiva sensível quando sacudiu a autoridade que, no estado de inocência, a mantinha nos limites do prazer sensível, moderado pela razão (Ibid).

São estas quatro feridas efeitos do primeiro pecado do primeiro homem?
Sim, Senhor.

Podem agravá-las os nossos pecados pessoais e os dos nossos ascendentes?
Sim, Senhor (LXXXV, 1, 2).

Têm alguns pecados pessoais a propriedade de produzir no homem disposições e inclinações especiais para cometer outros novos?
Sim, Senhor; os chamados pecados capitais.

Quais são?
Soberba, Avareza, Gula, Luxúria, Preguiça, Inveja e Ira.

Apesar de todos estes motivos de pecado, herdados de nosso primeiro progenitor e ascendentes, devemos sustentar que o homem é livre quando executa atos morais e que jamais peca por necessidade?
Sim, Senhor.

Como poderiam as ditas causas de pecado destruir a liberdade humana?
Privando o homem do uso da razão (LXXXVII, 7).

Logo, enquanto o homem conserva o uso da razão, é livre e depende dele evitar ou não o pecado?
Sim, Senhor.

As preditas causas podem, apesar do exposto, entorpecer o exercício da liberdade até ao ponto de diminuir ou atenuar a gravidade do pecado?
Sim, Senhor; exceto o caso em que as agrava o pecado pessoal (LXXXVII, 6).

XIII

DISTINÇÃO DA GRAVIDADE DOS PECADOS E DE SEUS CORRESPONDENTES CASTIGOS

Têm os mesmos caracteres de gravidade todos os pecados cometidos pelos homens?
Não, Senhor.

A que se atende para determinar a gravidade de um pecado?
A categoria e necessidade do bem de que priva e à maior ou menor liberdade com que se executa (LXXIII, 1-8).

Merecem castigo todos os atos pecaminosos?
Sim, Senhor (LXXXVII, 1).

Por que?
Porque, todo pecado é usurpação do direito alheio e o castigo é a maneira de restituição do que injustamente se tomou (Ibid).

Logo, o castigo do pecado é ato de rigorosa Justiça?
Sim, Senhor.

Quem pode impor a pena devida pelo pecado?
Os encarregados de velar pela ordem e pela justiça, contra os atentados do pecador (Ibid).

Quais são?
Primeiramente Deus, depois, a autoridade humana, nos assuntos de sua competência; e, por último, o próprio pecador (Ibid).

Como pode o pecador castigar o seu próprio pecado?
De duas maneiras; por meio da penitência e do remorso da consciência (Ibid).

Como intervém a autoridade humana?
Impondo castigos (Ibid).

Como Deus pode castigar?
De duas maneiras, mediata ou imediatamente (Ibid).

Quando dizemos que castiga mediatamente?
Quando o faz mediante a autoridade humana ou a consciência do pecador (Ibid).

Por que chamais castigos divinos aos impostos pela autoridade humana e pela consciência do pecador?
Porque a autoridade humana e a própria consciência participam do poder de Deus, de quem são de algum modo instrumentos (Ibid).

Emprega Deus algum outro meio para castigar o pecado?
Sim, Senhor; utiliza as próprias criaturas, que a Ele pertencem e cuja subordinação e harmonia o pecador procura perturbar (Ibid).

Podemos neste sentido dizer que há uma justiça imanente?
Sim, Senhor; e, em virtude dela, as mesmas coisas inanimadas servem como instrumento à Justiça divina para castigar o pecado, fazendo padecer o pecador as consequências de sua culpa (Ibid).

Que entendeis por intervenção imediata de Deus no castigo do pecado?
Uma intervenção particular e sobrenatural, em virtude da qual Ele mesmo castiga os atentados do pecador contra a ordem sobrenatural por Ele estabelecida (LXXXVII, 3, 5).

Em que se diferencia o castigo imposto imediatamente por Deus, na ordem sobrenatural, dos impostos pelas criaturas?
Em que Deus castiga alguns pecados com penas que durarão eternamente (LXXXVII, 3).

referências aos artigos da obra original

('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)

sexta-feira, 29 de junho de 2018

PALAVRAS DE SALVAÇÃO


'A humildade é a verdade, e a verdade é que eu sou somente nada. Portanto, tudo o que é bom em mim vem de Deus. Ora, acontece muitas vezes que desperdiçamos o que Deus pôs de bom em nós... A ideia de que, a cada dia, o Senhor vem até nós e nos dá tudo deveria tornar-nos humildes. Ora, é o oposto o que acontece, porque o demônio faz brotar dentro de nós ataques de orgulho. Isso em nada nos honra. Temos de lutar contra o nosso orgulho. Quando não pudermos mais, paremos um instante e façamos um ato de humildade; então Deus, que ama os corações humildes, virá ao nosso encontro'.

(São Pio de Pietrelcina)

quinta-feira, 28 de junho de 2018

ORAÇÃO AO ANJO DA GUARDA POR UMA BOA MORTE


Meu bom Anjo da Guarda, não sei quando e de que modo irei morrer. É possível que eu seja levado de repente ou que, antes do meu último suspiro, eu me veja privado das minhas capacidades mentais. E há tantas coisas que eu quereria dizer a Deus, no limiar da Eternidade... Por isso hoje, com a plena liberdade da minha vontade, venho pedir a vós, Anjo da Minha Guarda, que faleis por mim nesse temível momento. Direis, então, ao Senhor:

Que quero morrer na Santa Igreja Católica, Apostólica Romana, no seio da qual morreram todos os santos, depois de Jesus Cristo, e fora da qual não há salvação;

Que peço a graça de participar nos méritos infinitos do meu Redentor e que desejo morrer pousando os meus lábios na Cruz que foi banhada com o seu Sangue;

Que aborreço e detesto os meus pecados que ofenderam a Jesus e que, por amor a Ele, perdoo os meus inimigos, como eu próprio desejo ser perdoado; 

Que aceito a minha morte como sendo da vontade de Deus e que, com toda a confiança, me entrego ao seu amável e sacratíssimo Coração, esperando por toda a sua misericórdia; 

Que, no meu inexprimível desejo de ir para o Céu, me disponho a sofrer tudo quanto a sua soberana Justiça haja por bem infligir-me. 

Não recuseis, ó Santo Anjo da Minha Guarda, ser o meu intérprete junto de Deus e expor diante dEle que estes são os meus sentimentos e a minha firme vontade. Amém.

(São Carlos Borromeu)

quarta-feira, 27 de junho de 2018

BREVIÁRIO DIGITAL - ILUSTRAÇÕES DE NADAL (XIV)

 flagellatur Christus

121. Evangelho (Mt 27, Mc 15, Jo 19): a flagelação de Jesus 

  coronatur spinis Iesus

122. Evangelho (Mt 27, Mc 15, Jo 19): Jesus com uma coroa de espinhos

 gesta post coronationem, antequam ferretur sententia

123. Evangelho (Jo 19): eventos após a flagelação e coroação e antes da sentença de Pilatos

  fert sententiam Pilatus contra Iesum

124. Evangelho (Mt 27, Mc 15, Lc 23, Jo 19): a condenação de Jesus

  ducitur Iesus extra portam ad calvariae montem

125. Evangelho (Mt 27, Mc 15, Lc 23, Jo 19): Jesus a caminho do Calvário

 quae gesta sunt postea ante crucifixionem

126. Evangelho (Mt 27, Mc 15, Lc 23): eventos antes da crucificação de Jesus

  crucifigitur Iesus

127. Evangelho (Mt 27, Mc 15, Lc 23, Jo 19): a crucificação de Jesus

 erigitur crux

128. Evangelho (Mt 27, Mc 15, Lc 23, Jo 19): a cruz é erguida e cravada no terreno

 quae gesta sunt post erectam crucem, antequam emitteret spiritum

129. Evangelho (Mt 27, Mc 15, Lc 23, Jo 19): os eventos durante a crucificação e antes da morte de Jesus

emissio spiritus

130. Evangelho (Mt 27, Mc 15, Lc 23, Jo 19): Jesus morre na cruz

terça-feira, 26 de junho de 2018

26 DE JUNHO - SÃO JOSEMARIA ESCRIVÁ


São Josemaria Escrivá de Balaguer nasceu em 09 de janeiro de 1902 em Barbastro, Espanha. Em 02 de outubro de 1928, durante um retiro espiritual em Madrid, concebeu e fundou o OPUS DEI, atualmente prelazia pessoal da Igreja Católica. A missão específica do Opus Dei é promover, entre homens e mulheres de todo o âmbito da sociedade, um compromisso pessoal de seguir a Cristo, de amor a Deus e ao próximo e de procura da santidade na vida cotidiana. Faleceu em Roma em 26 de junho de 1975. Foi beatificado em 17 de maio de 1992 e canonizado, pelo Papa João Paulo II na Praça de São Pedro, em 06 de outubro de 2002. Sua obra mais conhecida é Caminho, escrita como orientações espirituais em diferentes parágrafos. Outras obras do autor são ForjaSulco e É Cristo que Passa.

A CRUZ NÃO É UM CONSOLO FÁCIL

'A doutrina cristã sobre a dor não é um programa de fáceis consolações. Começa logo por ser uma doutrina de aceitação do sofrimento, inseparável de toda a vida humana. Não vos posso esconder - e com alegria pois sempre preguei e procurei viver a verdade de que, onde está a Cruz, está Cristo, o Amor - que a dor apareceu muitas vezes na minha vida; e mais de uma vez tive vontade de chorar. Noutras ocasiões, senti crescer em mim o desgosto pela injustiça e pelo mal. E soube o que era a mágoa de ver que nada podia fazer, que, apesar dos meus desejos e dos meus esforços, não conseguia melhorar aquelas situações iníquas.

Quando vos falo de dor, não vos falo apenas de teorias. Nem me limito a recolher uma experiência de outros, quando vos confirmo que, se sentis, diante da realidade do sofrimento, que a vossa alma vacila algumas vezes, o remédio que tendes é olhar para Cristo. A cena do Calvário proclama a todos que as aflições hão-de ser santificadas, se vivermos unidos à Cruz.

Porque as nossas tribulações, cristãmente vividas, se convertem em reparação, em desagravo, em participação no destino e na vida de Jesus, que voluntariamente experimentou, por amor aos homens, toda a espécie de dores, todo o gênero de tormentos. Nasceu, viveu e morreu pobre; foi atacado, insultado, difamado, caluniado e condenado injustamente; conheceu a traição e o abandono dos discípulos; experimentou a solidão e as amarguras do suplício e da morte. Ainda agora, Cristo continua a sofrer nos seus membros, na Humanidade inteira que povoa a Terra e da qual Ele é Cabeça, Primogênito e Redentor'.
                                                                                                                         (É Cristo que Passa)

segunda-feira, 25 de junho de 2018

RUMO À SANTIDADE (IV/Final)

Quando a fé fraqueja, o homem tende a imaginar Deus como se estivesse longe e mal se preocupasse dos seus filhos. Pensa na religião como algo justaposto, quando não há outro remédio; sem saber por quê, espera manifestações aparatosas, acontecimentos insólitos. Em contrapartida, quando a fé vibra na alma, descobre-se que os passos do cristão não se separam da própria vida humana corrente e habitual. E que essa santidade grande, que Deus nos reclama, se encerra aqui e agora, nas coisas pequenas de cada jornada. 

Gosto de falar de caminho, porque somos viajadores, dirigimo-nos para a casa do Céu, para a nossa Pátria. Mas reparemos que um caminho, embora possa apresentar trechos de dificuldades especiais, embora uma vez por outra nos obrigue a desviar um rio ou a atravessar um pequeno bosque quase impenetrável, habitualmente é coisa corrente, sem surpresas. O perigo é a rotina: imaginar que Deus está ausente das coisas de cada instante por serem tão simples, tão triviais! 

Caminhavam aqueles dois discípulos em direção a Emaús. Andavam a passo normal, como tantos outros que transitavam por aquelas paragens. E ali, com naturalidade, apareceu-lhes Jesus, e caminha com eles, numa conversa que diminui a fadiga. Imagino a cena, bem ao cair da tarde. Sopra uma brisa suave. Em redor, campos semeados de trigo já crescido, e as oliveiras velhas, com os ramos prateados à luz tíbia. Jesus, no caminho. Senhor, és sempre tão grande! Mas tu me comoves quando te abaixas a seguir-nos, a procurar-nos, na nossa diária roda-viva. Senhor, concede-nos a ingenuidade de espírito, o olhar límpido, a mente clara, que permitam entender-te quando vens sem nenhum sinal externo da tua glória. 

Termina o trajeto ao chegar à aldeia, e aqueles dois que - sem darem por isso - foram feridos no fundo do coração pela palavra e pelo amor do Deus feito homem, sentem que Ele se vá embora. Porque Jesus se despede com gesto de quem vai prosseguir. Nunca se impõe, este Senhor Nosso. Quer que o chamemos livremente, depois de entrevermos a pureza do Amor que nos meteu na alma. Temos que detê-lo à força e rogar-lhe: 'Fica conosco porque é tarde e o dia está já declinando' (Lc 24, 29), faz-se noite. Somos assim: sempre pouco atrevidos, talvez por insinceridade, talvez por pudor. No fundo, pensamos: Fica conosco, porque as trevas nos rodeiam a alma, e só Tu és luz, só Tu podes acalmar esta ânsia que nos consome. Porque dentre as coisas formosas, honestas, não ignoramos qual é a primeira possuir: sempre a Deus. 

E Jesus fica. Abrem-se os nossos olhos como os de Cléofas e o seu companheiro, quando Cristo parte o pão; e embora Ele volte a desaparecer da nossa vista, seremos também capazes de retomar a caminhada - anoitece - para falar dEle aos outros, pois não cabe num peito só tanta alegria. Caminho de Emaús. O nosso Deus impregnou de doçura este nome. E Emaús é o mundo inteiro, porque o Senhor abriu os caminhos divinos da terra. 

Peço ao Senhor que, durante a nossa permanência neste chão que pisamos, não nos afastemos nunca do Caminhante divino. Para tanto, aumentemos também a nossa amizade com os Santos Anjos da Guarda. Todos necessitamos de muita companhia: companhia do Céu e da terra. Sejamos devotos dos Santos Anjos! E muito humana a amizade, mas é também muito divina; tal como a nossa vida, que é divina e humana. Lembramo- -nos do que diz o Senhor? 'Já não vos chamo servos, mas amigos' (Jo 15,15). Ensina-nos a ter confiança com os amigos de Deus, que já moram no Céu, e com as criaturas que convivem conosco, incluídas as que parecem afastadas do Senhor, para as atrairmos ao bom caminho. 

E vou terminar, repetindo com São Paulo aos Colossenses: 'Não cessamos de orar por vós e de pedir a Deus que alcanceis pleno conhecimento da sua vontade, com toda a sabedoria e inteligência espiritual' (Cl 1, 9). Sabedoria que nos proporciona a oração, a contemplação, a efusão do Paráclito na alma. Afim de que tenhais uma conduta digna de Deus, agradando-o em tudo, produzindo frutos de toda a espécie de boas obras e progredindo na ciência de Deus; corroborados em toda a sorte de fortaleza pelo poder da sua graça, para terdes sempre uma perfeita paciência e longanimidade acompanhada de alegria; dando graças a Deus-Pai, que nos fez dignos de participar na sorte dos santos, iluminando-nos com a sua luz; que nos arrebatou ao poder das trevas e nos transferiu para o reino de seu Filho muito amado. 

Que a Mãe de Deus e Mãe nossa nos proteja, afim de que cada um de nós possa servir a Igreja na plenitude da fé, com os dons do Espírito Santo e com a vida contemplativa. Realizando cada um os deveres que lhe são próprios, cada um no seu ofício e profissão, e no cumprimento das obrigações do seu estado, honre gozosamente o Senhor. Amai a Igreja, servi-a com a alegria consciente de quem soube decidir-se a esse serviço por Amor. E se virmos que alguns andam sem esperança, como os dois de Emaús, aproximemo-nos deles com fé - não em nome próprio, mas em nome de Cristo - para lhes garantir que a promessa de Jesus não pode falhar, que Ele vela por sua Esposa sempre: que não a abandona; que passarão as trevas, porque somos filhos da luz e fomos chamados a uma vida perene. 

E Deus lhes enxugará todas as lágrimas dos olhos, já não haverá morte, nem pranto nem clamor; não mais haverá dor, porque as coisas de antes passaram. E disse Aquele que estava sentado no trono: Eis que renovo todas as coisas. E ordenou-me: Escreve, porque todas estas palavras são digníssimas de fé e verdadeiras. E acrescentou: É um fato. Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim. Ao sedento, eu darei de beber gratuitamente da fonte da água da vida. Aquele que vencer possuirá todas estas coisas, e eu serei o Seu Deus e ele será meu filho (Ap 21, 4-7). 

(Parte IV/Final da Homilia 'Rumo à Santidade', pronunciada em 26/11/1967, por São Josemaria Escrivá)

domingo, 24 de junho de 2018

O NASCIMENTO DE SÃO JOÃO BATISTA

Páginas do Evangelho - Solenidade da Natividade de João Batista


No Evangelho deste domingo, nos defrontamos, mais uma vez, com os mistérios da graça: o nascimento de São João Batista, aclamado pelo próprio Cristo como 'o maior dentre os nascidos de mulher' (Mt 11,11), precursor do Salvador do mundo. E, como precursor do Messias, João se autoproclamou 'a voz que clamava no deserto', símbolo dos terrenos estéreis e calcinados das almas tíbias e vazias dos homens daquele tempo. Era preciso gerar vida, frutos e abundância de graças nos corações dos homens duros e insensatos para receber o Cristo da Redenção, prestes a chegar.

O Evangelista São Lucas nos conta que João Batista nasceu numa cidade do reino de Judá, perto de Hebron, ao sul de Jerusalém. Seu pai foi o sacerdote São Zacarias (da geração de Aarão) e sua Mãe foi Santa Isabel (da geração de Davi), prima da Virgem Maria, mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo. São Lucas descreve com singular discrição as circunstâncias sobrenaturais que precederam o nascimento do maior dos profetas: Isabel, estéril e já idosa, viu tornar-se realidade a promessa que o arcanjo São Gabriel havia anunciado a Zacarias, seu esposo, que ela daria a luz a um filho. O menino deveria chamar-se João e seria o precursor do Salvador. O menino, pela graça de Deus, haveria de escapar do massacre das crianças inocentes como ordenado por Herodes.

Os mistérios da graça se impuseram até mesmo na escolha do nome do Precursor: 'Ele vai chamar-se João' (Lc 1, 60). A escolha do nome entre os judeus era um ato que ocorria imediatamente após as orações rituais da cerimônia de circuncisão, em presença de várias testemunhas e era comumente associado a algum parente ou algum fato relacionado à família. Não foi esse o caso, daí o certo ar de espanto das testemunhas: 'Não existe nenhum parente teu com esse nome!' (Lc 1, 61). E Zacarias vai confirmar a escolha por escrito: 'João é o seu nome' (Lc 1, 63). E João haveria de ser João Batista, o João que batizava.

Das circunstâncias humanas singulares do nascimento de João Batista, manifestaram ainda maiores as sobrenaturais e, por esta razão, um temor sagrado preencheu o coração de todos os que foram as testemunhas do fato: 'O que virá a ser este menino?' (Lc 1,66). João Batista será o Precursor por excelência de Jesus Cristo, a voz que clama no deserto para tornar receptiva a Palavra Viva a ser semeada em terra fértil. No deserto ou na prisão, o primado de João será o da plenitude inabalável da fé cristã; nele tem fim a sucessão dos profetas, nele se faz definitivamente nova a missão dos homens como apóstolos.

RUMO À SANTIDADE (III)


Havíamos começado com orações vocais, simples, encantadoras, que aprendemos na infância e que não gostaríamos de abandonar nunca. A oração, iniciada com esta ingenuidade pueril, desenvolve-se agora em caudal largo, manso e seguro, porque vai ao passo da amizade por Aquele que afirmou: 'Eu sou o Caminho' (Jo 14, 6). Se amamos Cristo assim, se com divino atrevimento nos refugiamos na abertura que a lança lhe deixou no lado, cumpre-se a promessa do Mestre: 'Se alguém me ama, guardará a minha doutrina, e meu Pai o amará, e viremos a ele e nele faremos morada' (Jo 14, 23). 

O coração necessita então de distinguir e adorar cada uma das Pessoas Divinas. De certa maneira, o que a alma realiza na vida sobrenatural é uma descoberta semelhante às de uma criaturinha que vai abrindo os olhos à existência. E entretém-se amorosamente com o pai e com o Filho e com o Espírito Santo; e submete-se facilmente à atividade do Paráclito vivificador, que se nos entrega, sem o merecermos, os dons e as virtudes sobrenaturais! 

Corremos como o cervo, que anseia pelas fontes das águas: com sede, gretada a boca, ressequida. Queremos beber nesse manancial de água viva. Mergulhamos ao longo do dia nesse veio abundante e cristalino de frescas linfas que saltam até a vida eterna. Sobram as palavras, porque a língua não consegue expressar-se. Deus, quando acudimos a Ele com arrependimento, da nossa miséria tira riqueza; da nossa debilidade, fortaleza. O que não nos há de preparar então, se não o abandonamos, se frequentamos a sua companhia todos os dias, se lhe dirigimos palavras de carinho confirmadas com nossas ações, se lhe pedimos tudo, confiados na sua onipotência e na sua misericórdia? Se prepara uma festa para o filho que o traiu, só por tê-lo recuperado, o que não nos outorgará a nós, se sempre procuramos ficar ao seu lado? 

Longe da nossa conduta, portanto, a lembrança das ofensas que nos tenham feito, das humilhações que tenhamos padecido - por muito injustas, descorteses e rudes que tenham sido - porque é impróprio de um filho de Deus ter preparado um registro para apresentar uma lista de agravos. Não podemos esquecer o exemplo de Cristo, e a nossa fé cristã não se troca como quem troca de roupa; pode debilitar-se, robustecer-se ou perder-se. Esta vida sobrenatural dá vigor à fé, e a alma se apavora ao considerar a miserável nudez humana sem o divino. E perdoa e agradece: 'Meu Deus, se contemplo a minha pobre vida, não encontro nenhum motivo de vaidade e, menos ainda, de soberba; só encontro abundantes razões para viver sempre humilde e compungido. Bem sei que não há nada tão senhoril como servir'. 

Levantar-me-ei e rodearei a cidade; pelas ruas e praças buscarei aquele a quem amo... (Ct 3,2). E não é só a cidade; correrei todo o mundo de trás para a frente - por todas as nações, por todos os povos, por picadas e atalhos - para alcançar a paz de minha alma. E a descubro nas ocupações diárias, que para mim não são estorvo; que são - pelo contrário - vereda e motivo para amar mas e mais, e mais e mais me unir a Deus. 

E quando nos espreita - violenta - a tentação do desânimo, dos contrastes, da luta, da tribulação, de uma nova noite na alma, o salmista nos põe nos lábios e na inteligência estas palavras: 'Com Ele estou no tempo da adversidade' (Sl 90, 15). O que vale, Jesus, diante da tua cruz, a minha?; diante das tuas feridas, os meus arranhões? o que vale, diante do teu Amor imenso, puro e infinito, este fardo de nada que me puseste às costas? E os vossos corações - como o meu - se enchem de uma santa avidez, confessando-lhe - com obras - que morremos de amor. 

Nasce uma sede de Deus, uma ânsia de compreender as suas lágrimas; de ver seu sorriso, seu rosto. Julgo que o melhor modo de exprimi-lo é voltar a repetir com a Escritura: 'Como o servo que anseia pelas fontes das águas, assim por Vós anela minha alma, ó meu Deus!' (Sl 41,2). E a alma avança comprometida em Deus, endeusada: fez-se o cristão viajante sequioso, que abre a boca às águas da fonte. Com essa entrega, o zelo apostólico se inflama, aumenta de dia para dia e pega esta ânsia aos outros, porque o bem é difusivo. Não é possível que a nossa pobre natureza , tão perto de Deus, não arda em fomes de semear pelo mundo inteiro a alegria e a paz, de regar tudo com as águas redentoras que brotam do lado aberto de Cristo, de começar e acabar  todas as tarefas por amor. 

Falava há pouco de dores, de sofrimento, de lágrimas. E não me contradigo se afirmo agora que, para um discípulo que procura amorosamente o Mestre, é muito diferente o sabor das tristezas, das penas, das aflições: desaparecem, mal se aceita deveras a Vontade de Deus, logo que cumprimos com gosto os seus desígnios, como filhos fiéis, ainda que os nervos pareçam desfazer-se e o suplício se nos afigure insuportável. 

Interessa-me confirmar de novo que não me refiro a uma forma extraordinária de viver cristãmente. Medite cada um no que Deus fez por si e no modo como correspondeu. Se formos valentes nesse exame pessoal, perceberemos o que nos falta. Ontem me comovia ao ouvir falar de um catecúmeno japonês que ensinava catecismo a outros que ainda não conheciam Cristo. E envergonhava-me... Necessitamos de mais fé , mais fé! E, com a fé, a contemplação. 

Recordemos com fé aquela divina advertência que enche a alma de inquietação e, ao mesmo tempo, lhe sabe a favo de mel: Redemi te, et vocavi te nomine tuo: meus es tu (Is 43,1) - 'Eu te redimi e te chamei pelo teu nome: tu és meu!' Não roubemos a Deus o que é seu. Um Deus que nos amou a ponto de morrer por nós, que nos escolheu desde toda a eternidade, antes da criação do mundo, para sermos santos na sua presença e que continuamente nos oferece ocasiões de purificação e de entrega. Caso ainda tenhamos alguma dúvida, há outra prova que recebemos de seus lábios: Não fostes vós que me escolhestes, mas eu que vos escolhi para irdes e dardes fruto; e para que permaneça abundante esse fruto do vosso trabalho de almas contemplativas (cf Jo 15, 16). Portanto, fé, fé sobrenatural. 

(Parte III da Homilia 'Rumo à Santidade', pronunciada em 26/11/1967, por São Josemaria Escrivá)

sábado, 23 de junho de 2018

NATIVIDADE DE SÃO JOÃO BATISTA


Além de Jesus e de Maria, apenas o nascimento de João Batista (24 de junho) é comemorado pela Santa Igreja Católica, glória ímpar para aquele que foi aclamado, pelo próprio Cristo, como 'o maior dentre os nascidos de mulher' (Mt 11,11).

'Houve um homem mandado por Deus. Seu nome era João… Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz' (Jo 1,6-8)

'Eis que eu envio o meu mensageiro à tua frente. Ele preparará o teu caminho diante de ti' (Mt 11,7).

'Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre, e Isabel ficou repleta do Espírito Santo' (Lc 1,41)

'Eu sou a voz que clama no deserto: aplainai o caminho do Senhor' (Is 40,3)


'Eu vos batizo com água, mas vem Aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno de desatar a correia das sandálias; Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo' (Lc 3, 16). 


RUMO À SANTIDADE (II)

Para nos aproximarmos de Deus, temos que enveredar pelo caminho certo, que é a Humanidade Santíssima de Cristo. Por isso aconselho sempre a leitura de livros que narrem a Paixão do Senhor; são escritos cheios de sincera piedade, que nos trazem à mente o Filho de Deus, homem como nós e Deus verdadeiro, que ama e que sofre na sua carne pela redenção do mundo. 

Consideremos a recitação do Santo Rosário, uma das devoções mais arraigadas entre os cristãos. A Igreja nos anima a contemplar os mistérios: para que se grave na nossa cabeça e na nossa imaginação - com o gozo, a dor e a glória de Santa Maria - o exemplo assombroso do Senhor nos seus trinta anos de obscuridade, nos seus três anos de pregação, na sua paixão ignominiosa e na sua gloriosa ressurreição. 

Seguir Cristo: este é o segredo. Acompanhá-lo tão de perto, que vivamos com Ele, como aqueles primeiros doze; tão de perto, que com Ele nos identifiquemos. Não demoraremos a afirmar, desde que não tenhamos levantado obstáculos à graça, que nos revestimos de nosso Senhor Jesus Cristo (Rm 13, 14). O Senhor reflete-se na nossa conduta como num espelho. Se o espelho for como deve ser, reproduzirá o semblante amabilíssimo do nosso Salvador sem o desfigurar, sem caricaturas: e os outros terão a possibilidade de admirá-lo, de segui-lo. 

Neste esforço de identificação com Cristo, costumo distinguir como que quatro degraus: procurá-lo , encontrá-lo, tratá-lo, amá-lo. Talvez vos sintais como que na primeira etapa. Procurai o Senhor com fome, procurai-o em vós mesmos com todas as forças. Atuando com esse empenho, atrevo-me a garantir que já o tereis encontrado, e que tereis começado a tratá-lo e amá-lo, e a ter a vossa conversação nos céus.

Rogo ao Senhor que nos decidamos a alimentar na alma a única ambição nobre, a única que vale a pena: caminhar ao lado de Jesus Cristo, como fizeram Sua Mãe bendita e o santo Patriarca, com ânsia, com abnegação, sem descuidar nada. Participaremos na ventura de divina amizade - num recolhimento interior, compatível com os nossos deveres profissionais e com os de cidadãos - e lhe agradeceremos a delicadeza e a clareza com que nos ensina a cumprir a Vontade do nosso Pai que habita nos céus. 

Mas não esqueçamos que estar com Jesus é, certamente, topar com a sua Cruz. Quando nos abandonamos nas mãos de Deus, é frequente que Ele nos permita saborear a dor, a solidão, as contradições, as calúnias, as difamações, os escárnios, por dentro e por fora: porque quer moldar-nos à sua imagem e semelhança, e tolera também que nos chamem loucos e que nos tomem por néscios. É a altura de amar a mortificação passiva, que vem - oculta ou descarada e insolente - quando não a esperamos. Chegam a ferir as ovelhas com as pedras que se deveriam atirar aos lobos: o seguidor de Cristo experimenta na sua própria carne que aqueles que deveriam amá-lo o tratam de uma maneira que vai da desconfiança à hostilidade, da suspeita ao ódio. Olham-no com receio, como a um mentiroso, por não acreditarem que possa haver relação pessoal com Deus, vida interior; em contrapartida, com o ateu e com o indiferente, ordinariamente rebeldes e desavergonhados, desfazem-se em amabilidades e compreensão. 

E talvez o Senhor permita que o seu discípulo se veja atacado com a arma - nunca honrosa para quem a empunha - das injúrias pessoais com o uso de lugares comuns, fruto tendencioso e delituoso de uma propaganda massiva e mentirosa: porque o dom do bom gosto e do comedimento não é coisa de todos. Os que sustentam uma teologia incerta e uma moral relaxada, sem freios; os que praticam a seu talante uma liturgia duvidosa, com uma disciplina de hippies e um governo irresponsável, não é de estranhar que propaguem, contra os que só falam de Jesus Cristo, ciumeiras, suspeitas, falsas denúncias, ofensas, maus tratos, humilhações, falatórios e vexames de toda espécie. 

Assim esculpe Jesus a alma dos seus, sem deixar de lhes dar interiormente serenidade e alegria, porque entendem muito bem que - com cem mentiras juntas - os demônios não são capazes de fazer uma verdade. E grava em suas vidas a convicção de que só se sentirão comodamente quando se decidirem a não ser comodistas. Ao admirar e amar deveras a humanidade santíssima de Jesus, descobriremos uma a uma as suas chagas. E nesses tempos de purificação passiva, penosos, fortes, de lágrimas doces e amargas que procuramos esconder, precisaremos meter-nos dentro de cada uma das feridas santíssimas: para nos purificarmos, para nos deliciarmos com o sangue redentor, para nos fortalecermos. Faremos como as pombas que, no dizer da Escritura, se abrigam nas fendas das rochas durante a tempestade. Ocultamo-nos nesse refúgio para achar a intimidade de Cristo: e vemos que seu modo de conversar é afável e seu rosto formoso, porque só sabem que sua voz é suave e grata aqueles que receberam a graça do Evangelho, que os faz dizer: 'Tu tens palavras de vida eterna'.

Não pensemos que, nesta senda de contemplação, as paixões ficam definitivamente aplacadas. Seria uma ilusão supor que a ânsia de procurar Cristo, a realidade do seu encontro e do seu convívio, bem como a doçura do seu amor, nos transformam em pessoas impecáveis. Embora todos saibam por experiência, deixa-me que vo-lo recorde: o inimigo de Deus e do homem, satanás, não se dá por vencido, não descansa. Assedia-nos, mesmo quando a alma está inflamada no amor a Deus. Sabe que então a queda é mais difícil, mas que - se consegue que a criatura ofenda o seu Senhor, embora em pouco - poderá lançar-lhe sobre a consciência a grave tentação do desespero. 

Se puder servir-vos de aprendizado a experiência de um pobre sacerdote que não pretende falar senão de Deus, dar-vos-ei um conselho: quando a carne tentar recuperar seus foros perdidos, ou a soberba - que é pior - se rebelar e se eriçar, corramos a abrigar-nos nessas fendas divinas, abertas no Corpo de Cristo pelos cravos que o pregaram à cruz e pela lança que lhe atravessou o peito. Façamo-lo do modo que mais nos comova: derramemos nas chagas do Senhor todo esse amor humano e esse amor divino. Que isto é apetecer a união, sentir-nos irmãos de Cristo, seus consanguíneos, filhos da mesma Mãe, pois foi Ela que nos levou até Jesus. 

Ânsias de adoração, de desagravo, com sossegada suavidade e com sofrimento. Assim s tornará vida na nossa vida a afirmação de Jesus: 'Aquele que não toma a sua cruz e me segue, não é digno de Mim' (Mt 10, 38). E o Senhor se nos mostra cada vez mais exigente, pede-nos reparação e penitência, até impelir-nos a experimentar o fervente anelo de querermos viver para Deus, cravados com Cristo na cruz. Este tesouro, porém, nós o guardamos em vasos de barro frágil e quebradiço, para sabermos reconhecer que a grandeza do poder que se nota em nós é de Deus e não nossa. 

Vemo-nos acossados por toda espécie de tribulações, mas não perdemos o ânimo; encontramo-nos em grandes apertos, mas não desesperados e sem meios; somos perseguidos, não desamparados; abatidos, mas não inteiramente perdidos; trazemos sempre no nosso corpo, por toda a parte, a mortificação de Jesus. Imaginamos, além disso, que o Senhor não nos escuta, que estamos enganados, que só se ouve o monólogo da nossa voz. Sentimo-nos como que sem apoio sobre a terra e abandonados do céu. No entanto, é verdadeiro e prático o nosso horror ao pecado, mesmo venial. Com a teimosia da cananeia, prostramo-nos rendidamente como ela, que o adorou implorando: 'Senhor, ajuda-me' (Mt 15, 25). Desaparecerá a obscuridade, superada pela luz do Amor. 

É o momento de clamar: 'lembra-te das promessas que me fizeste, e me encherei de esperança. Isto é o que me consola no meu nada e enche de fortaleza o meu viver' (Sl 118, 49-50). Nosso Senhor quer que contemos com Ele para tudo: vemos com toda a evidência que sem Ele nada podemos e que, com Ele, podemos tudo. Confirma-se a nossa decisão de andar sempre na sua presença. Com a claridade de Deus na inteligência, que parece inativa, não nos fica a menor dúvida de que, se o Criador cuida de todos - mesmo dos seus inimigos - muito mais cuidará dos seus amigos! 

Convencemo-nos de que não há mal nem contradição que não venham por bem: assim se assentam com mais firmeza no nosso espírito a alegria e a paz, que nenhum motivo humano poderá arrancar-nos, porque estas visitações sempre nos deixam algo de seu, algo divino. Passamos a louvar o Senhor, nosso Deus, que fez em nós obras admiráveis; e compreendemos que fomos criados com capacidade para possuir um tesouro infinito.

(Parte II da Homilia 'Rumo à Santidade', pronunciada em 26/11/1967, por São Josemaria Escrivá)

sexta-feira, 22 de junho de 2018

RUMO À SANTIDADE (I)

Sentimo-nos atingidos, com um forte estremecimento no coração, ao escutarmos atentamente o grito de São Paulo: 'Esta é a vontade de Deus, a vossa santificação' (1 Ts 4,3). É o que hoje, uma vez mais, proponho a mim mesmo, recordando-o também a quantos me ouvem e à humanidade inteira: esta é a Vontade de Deus, que sejamos santos. 

Para pacificar as almas com paz autêntica, para transformar a terra, para procurar Deus Nosso Senhor no mundo e através de coisas do mundo, torna-se indispensável a santidade pessoal. Em minhas conversas com pessoas de tantos países e dos mais diversos ambientes sociais, perguntam-me com frequência: E que diz aos casados? E a nós que trabalhamos no campo? E às viúvas? E aos jovens?  

Respondo sistematicamente que tenho uma só panela. E costumo frisar que Jesus Cristo Nosso Senhor pregou a boa nova a todos, sem distinção alguma. Uma só panela e um só alimento; Meu alimento é fazer a vontade dAquele que me enviou e consumar a sua obra. Chama cada um à santidade e a cada um pede amor; a jovens e velhos, a solteiros e casados, a sãos e enfermos, a cultos e ignorantes; trabalhem onde trabalharem, estejam onde estiverem. só há um modo de crescerem na familiaridade e na confiança com Deus: ganhar intimidade com Ele na oração, falar com Ele, manifestar-lhe - de coração a coração - o nosso afeto.

'Invocar-me-eis e Eu vos atenderei' (Jr 29,12). E nós o invocamos conversando com Ele, dirigindo-nos a Ele. Por isso, temos que por em prática a exortação do Apóstolo: Sine intermissione orate -  rezai sempre, aconteça o que acontecer. Não só de coração, mas de todo o coração.

Talvez se pense que a vida nem sempre é fácil de levar, que não faltam dissabores e penas e tristezas. Responderei, também com São Paulo, que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes; nem o presente, nem o futuro, nem a força, nem o que há de mais alto, nem de mais profundo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos jamais do amor de Deus, que se fundamenta em Jesus Cristo Nosso Senhor (Rm 8, 38-39). Nada nos pode afastar da caridade de Deus, do Amor, da relação constante com o nosso Pai. 

Recomendar esta união contínua com Deus, não será apresentar um ideal tão sublime, que se revele inacessível à maioria dos cristãos? Na verdade, alta é a meta, mas não inacessível. A senda que conduz à santidade é a senda da oração, e a oração deve vingar pouco a pouco na alma, como a pequena semente que se converterá mais tarde em árvore frondosa. 

Começamos com orações vocais, que muitos de nós repetimos quando crianças: são frases ardentes e singelas, dirigidas a Deus e à sua Mãe, que é nossa Mãe. Ainda hoje, de manhã e à tarde, não um dia, mas habitualmente, renovo aquele oferecimento de obras que me ensinaram meus pais: 'O' Senhora minha, ó minha Mãe! Eu me ofereço todo a Vós. E, em prova do meu afeto filial, vos consagro neste dia os meus olhos, os meus ouvidos, a minha boca, o meu coração'... Não será isto - de certa maneira - um princípio de contemplação, demonstração evidente de confiado abandono? O que é que dizem um ao outro os que se amam, quando se encontram? Como se comportam?

Sacrificam tudo o que são e tudo o que possuem pela pessoa amada. Primeiro, uma jaculatória, e depois outra, e mais outra até que parece insuficiente esse fervor, porque as palavras se tornam pobres e se dá passagem à intimidade divina, num olhar para Deus sem descanso e sem cansaço. Vivemos então como cativos, como prisioneiros. Enquanto realizamos com a maior perfeição possível, dentro dos nossos erros e limitações, as tarefas próprias da nossa condição e do nosso ofício, a alma anseia escapar-se. Vai-se rumo a Deus, como o ferro atraído pela força do ímã. Começa-se a amar a Jesus de forma mais eficaz, com um doce sobressalto. 

'Eu vos livrarei do cativeiro, estejais onde estiverdes' (Jr 29,14). Livramo-nos da escravidão pela oração: sabemo-nos livres, voando num epitalâmio de alma apaixonada, num cântico de amor, que impele a não desejar afastar-se de Deus. Um novo modo de andar na terra, um modo divino, sobrenatural, maravilhoso. Recordando tantos escritores castelhanos quinhentistas, talvez nos agrade saborear isto por nossa conta: vivo porque não vivo; 'é Cristo que vive em mim!' (Gl 2, 20). 

Aceita-se com gosto a necessidade de trabalhar neste mundo durante muitos anos, porque Jesus tem poucos amigos cá em baixo. Não recusemos a obrigação de viver, de nos gastarmos - bem espremidos - a serviço de Deus e da Igreja. Desta maneira, em liberdade: in libertatem gloriae filiorum Dei (Rm 8, 21), qua libertate Christus nos liberavit (Gl 4, 31) - com a liberdade dos filhos de Deus, que Jesus Cristo nos conquistou morrendo sobre o madeiro da cruz. 

É possível que, já desde o princípio, se levantem grandes nuvens de pó e que, ao mesmo tempo, os inimigos da nossa santificação empreguem um técnica tão veemente e tão bem orquestrada de terrorismo psicológico - de abuso de poder que arrastem em sua absurda direção inclusive aqueles que durante muito tempo mantinham outra conduta mais lógica e reta. E, embora essa voz soe a sino rachado, que não foi fundido com bom metal e é bem diferente dos silvos do pastor, desse modo aviltam a palavra, que é um dos dons mais preciosos que o homem recebeu de Deus, dádiva belíssima para manifestar altos pensamentos de amor e de amizade ao Senhor e às suas criaturas; a tal ponto que se chega a entender por que São Tiago diz da língua que ela é um mundo inteiro de malícia, tantos são os males que pode causar: mentiras, detrações, desonras, embustes, insultos, murmurações tortuosas.

Como poderemos superar esses inconvenientes? Como conseguiremos fortalecer-nos naquela decisão, que começa a parecer-nos muito pesada? Inspirando-nos no modelo que nos mostra a Virgem Santíssima, nossa Mãe; uma rota muito ampla, que necessariamente passa por Jesus.

(Parte I da Homilia 'Rumo à Santidade', pronunciada em 26/11/1967, por São Josemaria Escrivá)