sábado, 4 de novembro de 2017

DOCUMENTOS DE FÁTIMA (VII)

(Revista Fátima 50 International Ano III - N. 25 - 13 de maio de 1969)

O último do grupo

Francisco Marto é primo da Lúcia e irmão da Jacinta. A data das aparições tem 9 anos, é um ano mais novo que a Lúcia e dois mais velho que a Jacinta. No conjunto dos três, embora sendo o único rapaz, aparece-nos em último lugar, talvez pelo seu temperamento retraído e tímido. Lúcia, mais velha e mais desenvolvida, é a chefe do grupo; a Jacinta, muito viva e muito amiga da Lúcia, manifesta-se muito mais que o irmão. Por um impressionante contraste, o Francisco, que podia ser o chefe do grupo, é o último; e por desígnios misteriosos parece o menos protegido da graça: a Lúcia vê Nossa Senhora e fala com Ela, a Jacinta vê e ouve, mas não fala; o Francisco só vê; não ouve nem fala com Nossa Senhora (precisará portanto de acreditar naquilo que a prima e a irmã lhe comunicam). 

Mais impressionante ainda é a diferença de tratamento de Nossa Senhora, naquele primeiro diálogo com a Lúcia: 

- Eu também vou para o Céu?
- Sim vais.
- E a Jacinta?
- Também.
- E o Francisco?
- Também vai, mas terá de rezar muitos Terços.

Às duas meninas o Céu é prometido em absoluto; ao Francisco é posta a condição: terá de rezar muitos terços. Talvez porque o pequeno era preguiçoso na oração. Seja como for, os desígnios de Deus são sempre maravilhosos. A condição posta por Nossa Senhora teve o condão de fazer mergulhar o Francisco num profundo estado de oração, e não apenas de o tornar um repetidor mecânico das fórmulas do Rosário.

Esta situação secundária em que ele está perante as duas pequenas, esta aparente diminuição no tratamento do parte de Nossa Senhora, é compensada por uma graça interior, em nada inferior a que receberam as suas companheiras. Vamos tentar penetrar no segredo desta graça que transformou profundamente o Francisco e o amadureceu tão depressa, que afinal foi ele o primeiro dos três a entrar no Céu.

Notemos, antes de mais, que o Francisco, embora soubesse que a sua entrada no Céu era condicionada à reza de muitos terços, ficou num admirável estado de tranquilidade e confiança. Ficou com a certeza de que em breve iria para o Céu, e já nada mais lhe importava. Mostrou-se desinteressado da escola, não pelo desinteresse natural que algumas crianças mostram naquela idade, mas porque pensava que valia mais aproveitar agora o tempo e fazer companhia a Nossa Senhora.

Quando lhe perguntavam pelo seu futuro, o que desejaria ser, mostrava o mesmo desinteresse; até a perspectiva de poder vir a ser padre nada lhe dizia. Estava convencido de que pouco tempo viveria na terra, e por isso só pensava em ir para junto de Nosso Senhor. Pode parecer estranha esta maneira de encarar a vida, numa criança de 10 anos, a pensar tão calma e tranquilamente na morte; não sei se alguém será tentado a ver no fato algum desequilíbrio psicológico. O pequeno era um serrano sadio, sadios eram seus pais e seus irmãos; em tudo o Francisco mostra um comportamento normal. Por isso o desinteresse que manifesta pelas coisas da terra tem uma explicação muito simples no fato de ele ter sido marcado pelas coisas do Céu. O desinteresse pela escola, o desinteresse pelo seu futuro humano, explica-se pela convicção de que em breve estaria no Céu.

Faz-me lembrar o grande doutor da Igreja, São Tomás de Aquino, que na pujança da idade e do talento, aos 49 anos, depois de uma visão durante a celebração da santa Missa, deixou repentinamente de escrever e de ditar. E ao companheiro e secretário que lhe perguntava o porquê, respondeu: 'Não posso; depois daquilo que vi, tudo o mais me parece palha'. 

A nota dominante na espiritualidade do vidente

Na espiritualidade do Francisco de Fátima, a nota dominante que é costume apontar, é a sua preocupação de consolar Nosso Senhor. Os pastorinhos receberam de Deus uma luz extraordinária sobre o mistério do pecado e o castigo eterno do inferno; eles viram as almas que se condenam, e foram convidados a rezar e a fazer penitência reparadora. Esta visão marcou-os profundamente; daí por diante a sua grande preocupação era a visão do inferno, não por medo pessoal de lá caírem, mas por caridade para com os muitos incautos que ofendem a Deus e se condenam. 

As orações contínuas dos pequenos, como o jejum, a privação de água em pleno verão, a corda com que se apertavam à cintura e tantas outras mortificações, são todas para impedir as almas de caírem no inferno. A pequena Jacinta, sobretudo, parece particularmente impressionada com esta preocupação. O Francisco também, mas na sua espiritualidade há um aspecto que ainda supera este: é o desejo de consolar o Senhor ofendido. Dois episódios são particularmente reveladores desta espiritualidade.

Um dia que o Francisco permanecera retirado, a Lúcia pergunta-lhe o que estava a fazer, e ele responde: 'estava a pensar em Deus que está tão triste por causa dos muitos pecados. Se eu o pudesse consolar!' ... E quando está moribundo, a Lúcia manda-lhe os seus recados para o Céu: 'não te esqueças de lá pedir muito pelos pecadores, pelo Santo Padre, por mim e pela Jacinta'. 'Sim, eu peço, mas olha, essas coisas pede-as antes à Jacinta, que eu tenho medo de me esquecer quando vir Nosso Senhor. E depois antes o quero consolar'.

Consolar o Senhor ! Será uma pieguice de criança? Talvez não falte quem assim interprete esta preocupação do pastorinho. Não esqueçamos, porém, que se trata de um serranito, muito calejado pela dureza da vida. Está muito longe de ser uma criança piegas. Sensibilidade sobrenatural, isso sim. Aliás a teologia espiritual não tem dificuldade em explicar este fenômeno místico. Ele é mesmo uma das mais belas atitudes das almas generosas, marcadas pelas profundas intuições da graça.

O problema do pecado

O problema do pecado, bem concretizado por Jesus na parábola do filho pródigo, não é apenas a tragédia daquele que se afasta da casa do Pai; é também a tragédia dolorosa do Pai que sofre o afastamento do filho. Certamente a linguagem humana tem dificuldade em exprimir as realidades divinas. Quando falamos de Deus ofendido pelos nossos pecados, usamos a única linguagem que temos. A linguagem é humana, mas as realidades que exprimimos são divinas. 

Deus criou -nos para nos fazer felizes, e a nossa felicidade é a Sua felicidade. Quando nos afastamos 
dEle pelo pecado, somos nós os prejudicados; mas Ele fica em situação análoga à do pai da parábola 
do filho pródigo. À falta de melhor linguagem para exprimirmos esta realidade, usamos a que temos, 
dizendo que Deus se ofende e sofre com os nossos afastamentos. É este o mistério do amor de um Deus que nos ama a tal ponto que nos deu o seu Filho e o entregou à morte para nos salvar.

As almas grandes compadecem-se com a sorte dos pecadores e fazem tudo para salvar os seus irmãos em risco de se perderem. Mas as almas verdadeiramente marcadas pela graça do amor de Deus,  sobem mais alto, preocupam-se com as repercussões do pecado no coração de Deus, e procuram consolar o Senhor. Este parece ter sido o carisma do Francisco, mais acentuado nele do que nas suas companheiras. E se foi assim, não temo dizer que o pequenito vidente. situado em segundo plano na história das aparições, aquele que só via, não ouvia nem falava, aquele a quem a entrada no Céu foi condicionada à reza de muitos terços, ergueu-se rapidamente às maiores alturas da espiritualidade cristã. 

O Francisco, apenas com 10 anos de idade, fazendo oração e penitência pela salvação dos pecadores, por causa das almas que ofendem a Deus, sentia-se especialmente atraído pelo amor divino, e a sua grande preocupação era consolar a Nosso Senhor. Pieguice? perguntava eu há momentos. Mas onde está o fundamento teológico desta preocupação? 

O sentido da reparação 

Há no Evangelho uma cena das mais impressionantes. Quando ia para o Jardim das Oliveiras, o Senhor escolheu os três apóstolos mais íntimos para vigiarem e orarem com ele; e esses apóstolos adormeceram. Ainda hoje as almas piedosas gostam de fazer companhia ao Senhor, a recordar em espírito a agonia do Horto. E Pascal dizia que o Senhor está em agonia até ao fim do Mundo. É verdade. A medida da eternidade é diferente da do tempo. Nós, que vivemos no tempo, contamos a agonia a uma distância de quase dois mil anos; mas para Deus o tempo não passa: é sempre presente, é sempre hoje. 

Para Deus (e não esqueçamos que Jesus é o Filho de Deus feito homem), a hora da agonia é a hora do pecado, dura sempre, dura pelo menos desde o pecado de Adão até ao pecado da última criatura humana. Os nossos pecados estão agora presentes a Jesus que agoniza e morre na Cruz, com a presença da eternidade, são presente e não futuro; e para nós, a agonia e morte de Cristo não é passado, é presente: Cristo está em agonia até ao fim dos tempos. 

Mas também a reparação das almas boas entra na mesma contagem do tempo e da eternidade. Os três apóstolos a dormir no Horto não estavam sozinhos. Com eles estavam todas as almas boas, mais ou menos conscientes, mais ou menos despertas. a fazerem companhia a Jesus agonizante. É este o sentido da reparação que nós podemos fazer agora, com uma atualidade de presença que se ergue acima do tempo e tem as características de eternidade. 

Os pastorinhos de Fátima não tinham estudado teologia, mas viviam iluminados pelos dons do Espírito Santo. Não é preciso saber teologia para ter a compreensão intuitiva de que se o pecado ofende a Deus, o bem também O consola. Esta é a grande lição do Francisco Marto. Ainda que mais nada o pequenito vidente nos tivesse ensinado, esta era uma das maiores lições que podemos aprender. Vamos prosseguir na celebração dos Santos Mistérios e vamos pedir ao pastorinho de Fátima que nos alcance do Senhor a mesma graça, o mesmo carisma de compreensão que o inundou a ele, para que também nós possamos erguer-nos às alturas da caridade divina e termos a mesma preocupação que ele teve: Consolar Nosso Senhor. Esta é sem dúvida a melhor parte. Que Nossa Senhora nos ajude a imitar o Seu vidente.

(Excertos da homilia de D. Francisco Rendeiro, então Bispo de Coimbra, proferida na missa de 13 de abril de 1969, por ocasião da celebração do cinquentenário da morte de Francisco Marto)