sábado, 2 de janeiro de 2016

DO ABANDONO À DIVINA PROVIDÊNCIA (I)

Deus fala, ainda hoje, como falava a nossos pais, quando não havia diretores nem métodos. A fidelidade à von­tade de Deus era toda a espiritualidade; mas esta não se encontrava posta em arte que a explicasse de maneira tão su­blime e tão pormenorizada, com tantos preceitos, tantas instruções e tantas má­ximas. As necessidades presentes exigem-no, sem dúvida; mas não era assim em outros tempos, em que havia mais retidão e simplicidade. 

Sabia-se que, em cada momento, temos um dever a cumprir com fidelidade, e isto bastava aos homens de então. Nele se ia concentrando sucessivamente a sua atenção, como o ponteiro do relógio que vai marcando as horas, e em cada minuto aponta o espaço que deve percorrer. O seu espírito movido sem cessar pelo impulso divino, encontrava-se insensivelmente voltado para o novo objeto que se lhes oferecia, segundo a disposição divina, em cada hora do dia.

Tais eram os segredos do proceder de Maria, a mais simples das criaturas e a mais entregue a Deus. A resposta que deu ao Anjo, quando se limitou a dizer-lhe: 'Faça-se em mim segundo a tua palavra', continha toda a teologia mística dos seus antepassados. Tudo aí se reduzia, como no presente, ao mais puro e ao mais singelo abandono da alma à vontade de Deus, qualquer que fosse a forma por que esta se apresen­tasse.

Tão digna e tão nobre disposição, que constituía todo o fundo da alma de Ma­ria, brilha admiravelmente nessa pala­vra tão simples: Fiat mihi. Notemos que ela está perfeitamente de acordo com a que Nosso Senhor deseja que nós te­nhamos, sem cessar, nos lábios e no co­ração: Fiat voluntas tua. É certo que aquilo que se exigia a Maria nesse momento de tamanha transcendência era gloriosíssimo para ela. Mas não se deixaria deslumbrar por todo o brilho dessa glória, se a vontade de Deus, o único objeto capaz de a impressionar, não tivesse detido o seu olhar.

Essa divina vontade é que a regia em tudo. Quer as suas ocupações fossem comuns ou elevadas, a seus olhos eram somente sombras, escuras umas vezes, outras vezes resplandecentes, nas quais encontrava matéria para glorificar a Deus e reconhecer as obras do Todo Poderoso. O seu espírito, transportado de alegria, considerava tudo o que tinha de fazer ou de sofrer em cada momento, como um dom d'Aquele que sacia de bens os corações que só d'Ele se alimen­tam e não das espécies ou aparências criadas.

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'A virtude do Altíssimo cobrir-te-á com a Sua sombra', disse o Anjo a Maria. Esta sombra, na qual se esconde a vir­tude de Deus para gerar Jesus Cristo nas almas, é o que cada momento traz em si de deveres, de gozos ou de cruz. Com efeito, estes são apenas sombras à maneira daquelas a que damos este nome na ordem da natureza, e que se estendem sobre os objetos sensíveis como um véu que nossos encobre. Assim na ordem moral e sobrenatural, os deveres de cada momento, sob as suas obscuras aparências, encobrem a verdade da vontade divina, a única a merecer a nossa atenção. 

Assim as olhava Maria. E por isso essas sombras deslizando sobre as suas faculdades, longe de a perturbarem alimentavam a sua fé d'Aquele que é sempre o mesmo. Retirai-vos, ó Arcanjo, vós sois uma sombra; o vosso momento voa e vós desapareceis. Maria ultrapassa-vos, vai avançando sempre; já vos encontrais longe dela; mas o Espírito Santo que dela se apoderou através desta missão sensível, jamais a abandonará.

Há poucos rasgos extraordinários na vida exterior da Virgem Santíssima. Pelo menos a Sagrada Escritura não no-los faz notar. A vida de Maria apresenta-se-nos muito simples e comum, quanto ao exterior. Faz e sofre o que fazem e sofrem as pessoas da sua condição. Vai visitar a sua prima Santa Isabel, como vão também os outros parentes. Recolhe-se a um estábulo; é uma conse­quência da sua pobreza. Volta a Na­zaré, de onde a perseguição de Herodes a havia afastado; Jesus e José aí viviam com Ela do seu trabalho. Tal era para a Sagrada Família o pão de cada dia.

Mas de que pão se alimenta a fé de Maria e de José? Qual é o sacramento de todos os seus momentos sagrados? Que descobrem debaixo da aparência dos acontecimentos que vão enchendo esses momentos? O que neles há de visí­vel é semelhante ao que sucede ao resto dos homens; mas o invisível, o que a fé aí entrevê e descobre, é nada menos que Deus realizando grandes coisas. Ó pão dos Anjos, ó maná celeste, pérola evan­gélica, sacramento do momento presente! A quem é que tu o dás? Esurientes re­ples bonis! Enches de bens os que têm fome de Deus. E Deus revela-Se aos pequenos e aos humildes, ainda nas coisas mais pequenas; mas os grandes e sober­bos, que não consideram senão as apa­rências, esses não O descobrem nem mesmo nas grandes coisas.

(Excertos da obra 'O Abandono à Divina Providência', de P.J.P de Caussade)