sábado, 27 de outubro de 2012

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR... (III)

Nina conferiu mais uma vez, pela décima vez, a bagagem: as duas mochilas, a bolsa com os sapatos (estava levando a sandália que comprara no shopping no dia anterior), a bolsa de mão. Estava tudo ali, nos moldes da moça sempre tão cuidadosa, meticulosa, detalhista. Não tinha sido assim uma vida inteira? Sempre zelosa de suas coisas, sempre cheia de planos. Que festa não tinha sido para a sua família ter passado em Direito... Quanta coisa já estava engatilhada para se fazer nos próximos anos, quantas viagens... e o Beto bem podia fazer parte desse futuro tão risonho... Nina sorriu e se deixou levar pelos pensamentos soltos: ele era o cara, ela já sabia, ele ainda não, mas a coisa já estava indo como devia ser. Detalhista como era, já antecipava os fatos e previa os tempos. 

De repente, sentiu um ligeiro incômodo, um roçar de pensamento menos fluido: naquela manhã, a mãe perguntara outra vez pela missa de domingo. 'Tá bom. Quer dizer que eu estou indo com minha turma passar o feriado prolongado no sítio e tenho lá tempo de me preocupar com a missa de domingo?' Sempre gostara da mãe ser tão religiosa, tão devota, estas coisas. Mas, agora, aquilo parecia ter ficado um pouco fora de moda, meio sem sentido. E as mentiras tinham começado exatamente assim: as missas que não frequentava mais eram apenas o pano de fundo para muitas outras coisas que a afastaram de uma religiosidade plena. Ela era, digamos, uma 'católica não praticante', mas Deus continuava sendo Deus, sem dúvida. 'Mas o que tem a ver Deus com o meu feriado, meu Deus?' Nina afastou rapidamente o pensamento solto e retomou o exame minucioso da sua bolsa de mão: estava tudo ali mesmo?

Mal acabara de retomar o que já estava feito, quando a mãe a chamou: 'Nina, eles chegaram!'. 'Eles', para ela, era Beto. Correu para o espelho, deu a última ajeitada na blusa ('Precisava o feriado ter começado com aquele tempinho frio e fechado? Ainda bem que a previsão era de sol direto no fim de semana') e sorriu. Ela era bonita e isso era muito bom. 'Beto'. Agarrou as mochilas e as bolsas, deu um "tchau, mãe" e "dá um beijão no papai por mim" e saiu correndo de casa. Sentiu de imediato a garoa fininha nas faces.

E lá estava a turma dela, os colegas da escola: Juliano, Mirella, Téo e Beto. Beto levantou-se rapidamente do banco do carona e a ajudou a colocar a bagagem no porta-malas. 'Não cabe as minhas coisas, gente, o porta-malas tá lotado!' Beto retirou uma mochila preta de lá e arrumou as coisas de Nina. 'Pronto, resolvido, a minha mochila eu levo comigo no banco'. 'Vamos logo!' 'Calma, que ainda não entrei!'. E, entre risos e brincadeiras, Nina se acomodou no banco de trás, ao lado de Mirella, que também trazia uma bolsa ou algo assim, junto aos pés. O carro parecia uma lata de sardinha. Um sufoco. 'Vamos logo!'

Juliano, ao volante, começou a fazer a manobra de ré, quando a mãe de Nina chegou carregando a sacola de plástico. Carro parado, Nina não teve nem como perguntar qualquer coisa e a mãe entregou de bandeja à galera o mico do ano. 'Ovos'. Ovos? Ovos. Ninguém riu, ninguém falou nada, mas que mico! Nina pegou a sacola meio sem graça e, doida para sair da situação constrangedora, falou um 'tchau, mãe!' que soou meio ríspido. 'Vamos logo!' Juliano completou a manobra e despediram-se da mãe de Nina. 'Vão com Deus!'.

Téo foi o primeiro a não perder a piada pronta, o carro já tomando a rua em frente. 'Deus não, que aqui não cabe mais ninguém!' As gargalhadas foram gerais. 'Só se for no porta-malas!', Juliano emendou de primeira. Nina sentiu o mesmo incômodo de há pouco. Num relance, lhe veio à mente as palavras cristalinas sempre ouvidas da mãe: 'Com Deus não se brinca! Com Deus não se brinca!'. Mais uma vez, afastou rapidamente o pensamento bobo. 'Gente, eu queria colocar essa sacola lá atrás'. Nina não falou em ovos. Juliano encostou o carro e Beto colocou a sacola no porta-malas. 'Desculpa, gente, minha mãe é dose!'. Mirella não deixou por menos para deixar tudo na boa: 'Calma, Nina, seus ovos estão bem protegidos ali no porta-malas! Eles e Deus estão juntinhos assim', brincou com uma risada farta e juntando os dedos para enfatizar a piada. Risos gerais. O feriado prolongado ia ser uma festa.

Não foi. A pista molhada, o carro desgovernado, o impacto brutal contra uma árvore ao longo de um declive acentuado. O carro destruído, cinco corpos mutilados, cinco vidas perdidas em plena juventude. O sargento Antunes sabia bem o que era aquilo, o que devia fazer, as providências a tomar, o comunicado às famílias, a dor sem tamanho, a tragédia espantosa. Um pouco à frente, ele via o cabo Maciel examinando as bagagens retorcidas do porta-malas, única parte do carro ainda passível de identificação óbvia. E viu quando ele tirou uma sacola de plástico do porta-malas e a examinou com interesse. Virando-se em sua direção, falou qualquer coisa que de pronto não entendeu. O soldado, aproximando-se, mostrou ao sargento uma sacola de ovos, seis ovos, inacreditavelmente intactos, naquele monte de ferros retorcidos. 'Como isso foi possível? Deus, por acaso, gosta de brincar com ovos?'