sábado, 22 de outubro de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: A UNIÃO ESTÁ NA CRUZ


Os sinais da afeição de Deus assumem duas formas muito distintas: ou podem ser agradáveis ​​e muito suaves ou então dolorosos e excruciantes. Deus eleva a alma e depois a rebaixa; primeiro a sublima e depois a aniquila. Mas sempre em união a Ele. Sim, apesar das aparências em contrário, mesmo nas fases de provação Deus e a alma estão unidas profundamente. E não falamos aqui apenas nas provações purificadoras da alma, prelúdio obrigatório da união, mas sobretudo naquelas dores redentoras que a alma experimenta muitas vezes quando alcança uma união transformadora e perfeita. 

Há neste caso uma comunhão real com os sofrimentos de Jesus Crucificado. E esta união é tanto mais intensa quanto maiores e mais profundas são as dores. Como explicar esse mistério? Parece que São Paulo nos dá a resposta quando afirma: 'estou crucificado com Cristo'. União no sofrimento e no amor! A alma interior está verdadeiramente pregada na Cruz com Jesus, e como que pelo próprio Deus! É que quanto mais querida uma alma é ao Coração do Pai, mais Ele quer que ela seja a imagem viva de seu Filho amado. Daí o cuidado de a manter sempre na Cruz, de modo a fazer compreender, de maneira viva, que o Amor não é amado e que a própria alma interior ainda não lhe oferece todo o amor de que seria capaz.

Mais ainda: dá a entender à alma que Ele, a suma Verdade, não é conhecido e que a própria alma interior não o contempla com a devida grandeza. Então a alma sente que o seu coração se livra da dor e se deleita de uma alegria secreta inefável. É a alegria da caridade terrena, sem dúvida imperfeita se a compararmos com a alegria do céu, mas muito superior que toda a felicidade da terra. Sim, o sofrimento que se aceita humildemente nos une a Deus. Diríamos que essa união é como uma mortalha de aço que nos envolve primeiro com toda a dureza, mas que nos acalenta e nos comprime a alma cada vez mais suavemente ao Coração de Deus. A amargura diminui continuamente; a alegria aumenta sempre e a união torna-se cada vez mais íntima com cada nova dor acolhida; se nem sempre é tão sentida, é sempre mais perfeita e profunda. É que para sofrer bem é preciso amar muito e, nessas condições e sob iguais circunstâncias, quanto mais e melhor se sofre, mais e melhor se ama. É por isso que o sofrimento constitui um sinal tão precioso da afeição de Deus.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte IV - Fecundidade Apostólica; tradução do autor do blog)

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

PALAVRAS DE SALVAÇÃO



'Não vos enganeis; de Deus não se zomba. Porque aquilo que o homem semear, isso também colherá. Aquele que semeia na sua carne, da carne colherá corrupção; mas o que semeia no Espírito, colherá do Espírito a vida eterna. Não nos cansemos, pois, de fazer o bem, porque a seu tempo colheremos, não desfalecendo. Logo, enquanto temos tempo, façamos bem a todos, mas principalmente aos irmãos da fé'.

(Gl 6, 7 - 10)

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (XIII)

Carta Encíclica MORTALIUM ANIMOS 
 [06 de janeiro de 1928]

Papa Pio XI (1922 - 1939)

sobre a promoção da verdadeira unidade da religião 


1. Ânsia universal de paz e fraternidade

Talvez jamais em uma outra época os espíritos dos mortais foram tomados por um tão grande desejo daquela fraterna amizade, pela qual em razão da unidade e identidade de natureza – somos estreitados e unidos entre nós, amizade esta que deve ser robustecida e orientada para o bem comum da sociedade humana, quanto vemos ter acontecido nestes nossos tempos.

Pois, embora as nações ainda não usufruam plenamente dos benefícios da paz, antes, pelo contrário, em alguns lugares, antigas e novas discórdias vão explodindo em sedições e em conflitos civis; como não é possível, entretanto, que as muitas controvérsias sobre a tranquilidade e a prosperidade dos povos sejam resolvidas sem que exista a concórdia quanto à ação e às obras dos que governam as cidades e administram os seus negócios; compreende-se facilmente (tanto mais que já ninguém discorda da unidade do gênero humano) porque, estimulados por esta irmandade universal, também muitos desejam que os vários povos cada dia se unam mais estreitamente.

2. A fraternidade na religião - congressos ecumênicos

Entretanto, alguns lutam por realizar coisa não dissemelhante quanto à ordenação da Lei Nova trazida por Cristo, Nosso Senhor. Pois, tendo como certo que rarissimamente se encontram homens privados de todo sentimento religioso, por isto, parece, passaram a ter a esperança de que, sem dificuldade, ocorrerá que os povos, embora cada um sustente sentença diferente sobre as coisas divinas, concordarão fraternalmente na profissão de algumas doutrinas como que em um fundamento comum da vida espiritual.

Por isto costumam realizar por si mesmos convenções, assembleias e pregações, com não medíocre frequência de ouvintes e para elas convocam, para debates, promiscuamente, a todos: pagãos de todas as espécies, fiéis de Cristo, os que infelizmente se afastaram de Cristo e os que obstinada e pertinazmente contradizem à sua natureza divina e à sua missão.

3. Os católicos não podem aprovar

Sem dúvida, estes esforços não podem, de nenhum modo, ser aprovados pelos católicos, pois eles se fundamentam na falsa opinião dos que julgam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e louváveis, pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus e reconhecemos obsequiosamente o seu império.

Erram e estão enganados, portanto, os que possuem esta opinião: pervertendo o conceito da verdadeira religião, eles repudiam-na e gradualmente inclinam-se para o chamado Naturalismo e para o Ateísmo. Daí segue-se claramente que quem concorda com os que pensam e empreendem tais coisas afasta-se inteiramente da religião divinamente revelada.

4. Outro erro -  A união de todos os cristãos - Argumentos falazes

Entretanto, quando se trata de promover a unidade entre todos os cristãos, alguns são enganados mais facilmente por uma disfarçada aparência do que seja reto. Acaso não é justo e de acordo com o dever – costumam repetir amiúde – que todos os que invocam o nome de Cristo se abstenham de recriminações mútuas e sejam finalmente unidos por mútua caridade?

Acaso alguém ousaria afirmar que ama a Cristo se, na medida de suas forças, não procura realizar as coisas que Ele desejou, ele que rogou ao Pai para que seus discípulos fossem 'UM' (Jo 17,21)? Acaso não quis o mesmo Cristo que seus discípulos fossem identificados por este como que sinal e fossem por ele distinguidos dos demais, a saber, se mutuamente se amassem: 'Todos conhecerão que sois meus discípulos nisto: se tiverdes amor um pelo outro?' (Jo 13,35). Oxalá todos os cristão fossem 'UM', acrescentam: eles poderiam repelir muito melhor a peste da impiedade que, cada dia mais, se alastra e se expande, e se ordena ao enfraquecimento do Evangelho.

5.Sob esses argumentos se oculta um erro gravíssimo

Os chamados 'pancristãos' espalham e insuflam estas e outras coisas da mesma espécie. E eles estão tão longe de serem poucos e raros mas, ao contrário, cresceram em fileiras compactas e uniram-se em sociedades largamente difundidas, as quais, embora sobre coisas de fé cada um esteja imbuído de uma doutrina diferente, são, as mais das vezes, dirigidas por acatólicos.

Esta iniciativa é promovida de modo tão ativo que, de muitos modos, consegue para si a adesão dos cidadãos e arrebata e alicia os espíritos, mesmo de muitos católicos, pela esperança de realizar uma união que parecia de acordo com os desejos da Santa Mãe, a Igreja, para quem, realmente, nada é tão antigo quanto o reconvocar e o reconduzir os filhos desviados para o seu grêmio. Na verdade, sob os atrativos e os afagos destas palavras, oculta-se um gravíssimo erro pelo qual são totalmente destruídos os fundamentos da fé.

6. A verdadeira norma nesta matéria

Advertidos, pois, pela consciência do dever apostólico, para que não permitamos que o rebanho do Senhor seja envolvido pela nocividade destas falácias, apelamos, veneráveis irmãos, para o vosso empenho na precaução contra este mal. Confiamos que, pelas palavras e escritos de cada um de vós, poderemos atingir mais facilmente o povo, e que os princípios e argumentos, que a seguir proporemos, sejam entendidos por ele pois, por meio deles, os católicos devem saber o que devem pensar e praticar, dado que se trata de iniciativas que dizem respeitos a eles, para unir de qualquer maneira em um só corpo os que se denominam cristãos.

7. Só uma Religião pode ser verdadeira: a revelada por Deus

Fomos criados por Deus, Criador de todas as coisas, para este fim: conhecê-lo e servi-lo. O nosso Criador possui, portanto, pleno direito de ser servido. Por certo, poderia Deus ter estabelecido apenas uma lei da natureza para o governo do homem. Ele, ao criá-lo, gravou-a em seu espírito e poderia portanto, a partir daí, governar os seus novos atos pela providência ordinária dessa mesma lei. Mas, preferiu dar preceitos aos quais nós obedecêssemos e, no decurso dos tempos, desde os começos do gênero humano até a vinda e a pregação de Jesus Cristo, Ele próprio ensinou ao homem, naturalmente dotado de razão, os deveres que dele seriam exigidos para com o Criador: 'Em muitos lugares e de muitos modos, antigamente, falou Deus aos nossos pais pelos profetas; ultimamente, nestes dias, falou-nos por seu Filho' (Hb 1,1-).

Está, portanto, claro que a religião verdadeira não pode ser outra senão a que se funda na palavra revelada de Deus; começando a ser feita desde o princípio, essa revelação prosseguiu sob a Lei Antiga e o próprio Cristo a completou sob a Nova Lei. Portanto, se Deus falou – e comprova-se pela fé histórica ter Ele realmente falado – não há quem não veja ser dever do homem acreditar, de modo absoluto, em Deus que se revela e obedecer integralmente a Deus que impera. Mas, para a glória de Deus e para a nossa salvação, em relação a uma coisa e outra, o Filho Unigênito de Deus instituiu na terra a sua Igreja.

8. A única religião revelada é a Igreja Católica

Acreditamos, pois, que os que afirmam serem cristãos, não possam fazê-lo sem crer que uma Igreja, e uma só, foi fundada por Cristo. Mas, se se indaga, além disso, qual deva ser ela pela vontade do seu Autor, já não estão todos em consenso. Assim, por exemplo, muitíssimos destes negam a necessidade da Igreja de Cristo ser visível e perceptível, pelo menos na medida em que deva aparecer como um corpo único de fiéis, concordes em uma só e mesma doutrina, sob um só magistério e um só regime. Mas, pelo contrário, julgam que a Igreja perceptível e visível é uma federação de várias comunidades cristãs, embora aderentes, cada uma delas, a doutrinas opostas entre si.

Entretanto, Cristo Senhor instituiu a sua Igreja como uma sociedade perfeita de natureza externa e perceptível pelos sentidos, a qual, nos tempos futuros, prosseguiria a obra da reparação do gênero humano pela regência de uma só cabeça (Mt 16,18-.; Lc 22,32; Jo 21,15-17), pelo magistério de uma voz viva (Mc 16,15) e pela dispensação dos sacramentos, fontes da graça celeste (Jo 3,5; 6,48-50; 20,22-.; cf. Mt 18,18; etc.). Por esse motivo, por comparações afirmou-a semelhante a um reino (Mt, 13), a uma casa (Mt 16,18), a um redil de ovelhas (Jo 10,16) e a um rebanho (Jo 21,15-17).

Esta Igreja, fundada de modo tão admirável, ao lhe serem retirados o seu Fundador e os Apóstolos que por primeiro a propagaram, em razão da morte deles, não poderia cessar de existir e ser extinta, uma vez que ela era aquela a quem, sem nenhuma discriminação quanto a lugares e a tempos, fora dado o preceito de conduzir todos os homens à salvação eterna: 'Ide, pois, ensinai a todos os povos' (Mt 28,19).

Acaso faltaria à Igreja algo quanto à virtude e eficácia no cumprimento perene desse múnus, quando o próprio Cristo solenemente prometeu estar sempre presente a ela: 'Eis que Eu estou convosco, todos os dias, até a consumação dos séculos?' (Mt 28,20). Deste modo, não pode ocorrer que a Igreja de Cristo não exista hoje e em todo o tempo, e também que ela não exista como inteiramente a mesma que existiu à época dos Apóstolos. A não ser que desejemos afirmar que Cristo Senhor ou não cumpriu o que propôs ou que errou ao afirmar que as portas do inferno jamais prevaleceriam contra ela (Mt 16,18).

9. Um erro capital do movimento ecumênico na pretendida união das igrejas cristãs

Ocorre-nos dever esclarecer e afastar aqui certa opinião falsa, da qual parece depender toda esta questão e proceder essa múltipla ação e conspiração dos acatólicos que, como dissemos, trabalham pela união das igrejas cristãs. Os autores desta opinião acostumaram-se a citar, quase que indefinidamente, a Cristo dizendo: 'Para que todos sejam um...' e 'Haverá um só rebanho e um só Pastor' (Jo 27,21; 10,16). Fazem-no todavia de modo que, por essas palavras, queriam significar um desejo e uma prece de Cristo ainda carente do seu efeito.

Pois opinam: a unidade de fé e de regime, distintivo da verdadeira e única Igreja de Cristo, quase nunca existiu até hoje e nem hoje existe; que ela pode, sem dúvida, ser desejada e talvez realizar-se alguma vez, por uma inclinação comum das vontades; mas que, entrementes, deve existir apenas uma fictícia unidade.

Acrescentam que a Igreja é, por si mesma, por natureza, dividida em partes, isto é, que ela consta de muitas igrejas ou comunidades particulares, as quais, ainda separadas, embora possuam alguns capítulos comuns de doutrina, discordam todavia nos demais. Que cada uma delas possui os mesmos direitos e que, no máximo, a Igreja foi única e una da época apostólica até os primeiros concílios ecumênicos.

Assim, dizem, é necessário colocar de lado e afastar as controvérsias e as antiquíssimas variedades de sentenças que até hoje impedem a unidade do nome cristão e, quanto às outras doutrinas, elaborar e propor uma certa lei comum de crer, em cuja profissão de fé todos se conheçam e se sintam como irmãos, pois, se as múltiplas igrejas e comunidades forem unidas por um certo pacto, existiria já a condição para que os progressos da impiedade fossem futuramente impedidos de modo sólido e frutuoso. Estas são, Veneráveis Irmãos, as afirmações comuns.

Existem, contudo, os que estabelecem e concedem que o chamado Protestantismo, de modo bastante inconsiderado, deixou de lado certos capítulos da fé e alguns ritos do culto exterior, sem dúvida gratos e úteis, que, pelo contrário, a Igreja Romana ainda conserva. Mas, de imediato, acrescentam que esta mesma Igreja também agiu mal, corrompendo a religião primitiva por algumas doutrinas alheias e repugnantes ao Evangelho, propondo acréscimos para serem cridos: enumeram como o principal entre estes o que versa sobre o Primado de Jurisdição atribuído a Pedro e a seus Sucessores na Sé Romana.

Entre os que assim pensam, embora não sejam muitos, estão os que indulgentemente atribuem ao Pontífice Romano um primado de honra ou uma certa jurisdição e poder que, entretanto, julgam procedente não do direito divino, mas de certo consenso dos fiéis. Chegam outros ao ponto de, por seus conselhos, que diríeis serem furta-cores, quererem presidir o próprio Pontífice.

E se é possível encontrar muitos acatólicos pregando à boca cheia a união fraterna em Jesus Cristo, entretanto não encontrareis a nenhum deles em cujos pensamentos esteja a submissão e a obediência ao Vigário de Jesus Cristo enquanto docente ou enquanto governante. Afirmam eles que tratariam de bom grado com a Igreja Romana, mas com igualdade de direitos, isto é, iguais com um igual. Mas, se pudessem fazê-lo, não parece existir dúvida de que agiriam com a intenção de que, por um pacto que talvez se ajustasse, não fossem coagidos a afastarem-se daquelas opiniões que são a causa pela qual ainda vagueiem e errem fora do único aprisco de Cristo.

10. A Igreja Católica não pode participar de semelhantes reuniões

Assim sendo, é manifestamente claro que a Santa Sé, não pode, de modo algum, participar de suas assembleias e que, aos católicos, de nenhum modo é lícito aprovar ou contribuir para estas iniciativas: se o fizerem concederão autoridade a uma falsa religião cristã, sobremaneira alheia à única Igreja de Cristo.

11. A verdade revelada não admite transações

Acaso poderemos tolerar – o que seria bastante iníquo - que a verdade e, em especial a revelada, seja diminuída através de pactuações? No caso presente, trata-se da verdade revelada que deve ser defendida. Se Jesus Cristo enviou os Apóstolos a todo o mundo, a todos os povos que deviam ser instruídos na fé evangélica e, para que não errassem em nada, quis que, anteriormente, lhes fosse ensinada toda a verdade pelo Espírito Santo, acaso esta doutrina dos Apóstolos faltou inteiramente ou foi alguma vez perturbada na Igreja em que o próprio Deus está presente como regente e guardião?

Se o nosso Redentor promulgou claramente o seu Evangelho não apenas para os tempos apostólicos, mas também para pertencer às futuras épocas, o objeto da fé pode tornar-se de tal modo obscuro e incerto que hoje seja necessário tolerar opiniões pelo menos contrárias entre si? Se isto fosse verdade, dever-se-ia igualmente dizer que o Espírito Santo que desceu sobre os Apóstolos, que a perpétua permanência dele na Igreja e também que a própria pregação de Cristo já perderam, desde muitos séculos, toda a eficácia e utilidade: afirmar isto é, sem dúvida, blasfemo.

12. A Igreja Católica é depositária infalível da verdade

Quando o Filho unigênito de Deus ordenou aos seus enviados que ensinassem a todos os povos, vinculou então todos os homens pelo dever de crer nas coisas que lhes fossem anunciadas pela 'testemunha pré-ordenada por Deus' (At 10,41). Entretanto, um e outro preceito de Cristo, o de ensinar e o de crer na consecução da salvação eterna, que não podem deixar de ser cumpridos, não poderiam ser entendidos a não ser que a Igreja proponha de modo íntegro e claro a doutrina evangélica e que, ao propô-la, seja imune a qualquer perigo de errar.

Afastam-se igualmente do caminho os que julgam que o depósito da verdade existe realmente na terra, mas que é necessário um trabalho difícil, que exige longos estudos e disputas para encontrá-lo e possuí-lo para que a vida dos homens seja apenas suficiente para isso; como se Deus benigníssimo tivesse falado pelos profetas e pelo seu Unigênito para que apenas uns poucos, e estes mesmos já avançados em idade, aprendessem perfeitamente as coisas que por eles revelou, e não para que preceituasse uma doutrina de fé e de costumes pela qual, em todo o decurso de sua vida mortal, o homem fosse regido.

13. Sem fé, não há verdadeira caridade

Estes pancristãos, que empenham o seu espírito na união das igrejas, pareceriam seguir, por certo, o nobilíssimo conselho da caridade que deve ser promovida entre os cristãos. Mas, dado que a caridade se desvia em detrimento da fé, o que pode ser feito? Ninguém ignora por certo que o próprio João, o Apóstolo da Caridade, que em seu Evangelho parece ter manifestado os segredos do Coração Sacratíssimo de Jesus e que permanentemente costumava inculcar à memória dos seus o mandamento novo: 'Amai-vos uns aos outros', vetou inteiramente até mesmo manter relações com os que professavam de forma não íntegra e incorrupta a doutrina de Cristo: 'Se alguém vem a vós e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem digais a ele uma saudação' (2 Jo. 10). Pelo que, como a caridade se apoia na fé íntegra e sincera como que em um fundamento, então é necessário unir os discípulos de Cristo pela unidade de fé como no vínculo principal.

14. União irracional

Assim, de que vale excogitar no espírito uma certa federação cristã, na qual ao ingressar ou então quando se tratar do objeto da fé, cada qual retenha a sua maneira de pensar e de sentir, embora ela seja repugnante às opiniões dos outros? E de que modo pedirmos que participem de um só e mesmo conselho homens que se distanciam por sentenças contrárias como, por exemplo, os que afirmam e os que negam ser a sagrada Tradição uma fonte genuína da Revelação Divina?

Como os que adoram a Cristo realmente presente na Santíssima Eucaristia, por aquela admirável conversão do pão e do vinho que se chama transubstanciação e os que afirmam que, somente pela fé ou por sinal e em virtude do sacramento, aí está presente o Corpo de Cristo? Como os que reconhecem nela a natureza do Sacrifício e a do Sacramento e os que dizem que ela não é senão a memória ou comemoração da Ceia do Senhor? Como os que creem ser bom e útil invocar súplice os santos que reinam junto de Cristo - Maria, Mãe de Deus, em primeiro lugar - e tributar veneração às suas imagens e os que contestam que não pode ser admitido semelhante culto, por ser contrário à honra de Jesus Cristo, 'único mediador de Deus e dos homens'? (1 Tm 2,5).

15. Princípio até o indiferentismo e o modernismo

Não sabemos, pois como, por essa grande divergência de opiniões, seja defendido o caminho para a realização da unidade da Igreja: ela não pode resultar senão de um só magistério, de uma só lei de crer, de uma só fé entre os cristãos. Sabemos, entretanto, gerar-se facilmente daí um degrau para a negligência com a religião ou o indiferentismo e para o denominado modernismo. Aqueles que foram miseravelmente infeccionados por ele defendem que não é absoluta mas relativa a verdade revelada, isto é, de acordo com as múltiplas necessidades dos tempos e dos lugares e com as várias inclinações dos espíritos, uma vez que ela não estaria limitada por uma revelação imutável, mas seria tal que se adaptaria à vida dos homens.

Além disso, com relação às coisas que devem ser cridas, não é lícito utilizar-se, de modo algum, daquela discriminação que houveram por bem introduzir entre o que denominam capítulos fundamentais e capítulos não fundamentais da fé, como se uns devessem ser recebidos por todos e, com relação aos outros, pudesse ser permitido o assentimento livre dos fiéis: a virtude sobrenatural da fé possui como causa formal a autoridade de Deus revelante e não pode sofrer nenhuma distinção como esta.

Por isto, todos os que são verdadeiramente de Cristo consagram, por exemplo, ao mistério da Augusta Trindade a mesma fé que possuem em relação ao dogma da Mãe de Deus concebida sem a mancha original e não possuem igualmente uma fé diferente com relação à Encarnação do Senhor e ao magistério infalível do Pontífice Romano, no sentido definido pelo Concílio Ecumênico Vaticano.

Nem se pode admitir que as verdades que a Igreja, através de solenes decretos, sancionou e definiu em outras épocas, pelo menos as proximamente superiores, não sejam, por este motivo, igualmente certas e nem devam ser igualmente acreditadas: acaso não foram todas elas reveladas por Deus? Pois, o Magistério da Igreja, por decisão divina, foi constituído na terra para que as doutrinas reveladas não só permanecessem incólumes perpetuamente, mas também para que fossem levadas ao conhecimento dos homens de um modo mais fácil e seguro. E, embora seja ele diariamente exercido pelo Pontífice Romano e pelos bispos em união com ele, todavia ele se completa pela tarefa de agir, no momento oportuno, definindo algo por meio de solenes ritos e decretos, se alguma vez for necessário opor-se aos erros ou impugnações dos hereges de um modo mais eficiente ou imprimir nas mentes dos fiéis capítulos da doutrina sagrada expostos de modo mais claro e pormenorizado.

Por este uso extraordinário do Magistério nenhuma invenção é introduzida e nenhuma coisa nova é acrescentada à soma de verdades que, estando contidas pelo menos implicitamente no depósito da revelação, foram divinamente entregues à Igreja, mas são declaradas coisas que, para muitos talvez, ainda poderiam parecer obscuras, ou são estabelecidas coisas que devem ser mantidas sobre a fé e que antes eram por alguns colocados sob controvérsia.

16. A única maneira de unir todos os cristãos

Assim, Veneráveis Irmãos, é clara a razão pela qual esta Sé Apostólica nunca permitiu aos seus estarem presentes às reuniões de acatólicos por quanto não é lícito promover a união dos cristãos de outro modo senão promovendo o retorno dos dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo, dado que outrora, infelizmente, eles se apartaram dela.

Dizemos: a única verdadeira Igreja de Cristo - sem dúvida ela é a todos manifesta e, pela vontade de seu Autor, ela perpetuamente permanecerá tal qual Ele próprio a instituiu para a salvação de todos. Pois, a mística Esposa de Cristo jamais se contaminou com o decurso dos séculos nem, em época alguma, poderá ser contaminada, como Cipriano o atesta: 'A Esposa de Cristo não pode ser adulterada: ela é incorrupta e pudica. Ela conhece uma só casa e guarda com casto pudor a santidade de um só cubículo' (De Cath. Ecclessiae unitate, 6).

E o mesmo santo mártir, com direito e com razão, grandemente se admirava de que pudesse alguém acreditar que 'esta unidade que procede da firmeza de Deus pudesse cindir-se e ser quebrada na Igreja pelo divórcio de vontades em conflito' (ibidem). Portanto, dado que o Corpo Místico de Cristo, isto é, a Igreja, é um só (1 Cor 12,12), compacto e conexo (Ef 4,15), à semelhança do seu corpo físico, seria inépcia e estultice afirmar alguém que ele pode constar de membros desunidos e separados: quem pois não estiver unido com ele, não é membro seu, nem está unido à cabeça, que é o Cristo (cf Ef 5,30; 1,22).

17. A Obediência ao Romano Pontífice

Mas, ninguém está nesta única Igreja de Cristo e ninguém nela permanece a não ser que, obedecendo, reconheça e acate o poder de Pedro e de seus sucessores legítimos. Por acaso os antepassados dos enredados pelos erros de Fócio e dos reformadores não estiveram unidos ao Bispo de Roma, ao Pastor supremo das almas?

Ai! Os filhos afastaram-se da casa paterna; todavia ela não foi feita em pedaços e nem foi destruída por isso, uma vez que estava arrimada na perene proteção de Deus. Retornem, pois, eles ao Pai comum que, esquecido das injúrias antes gravadas a fogo contra a Sé Apostólica, recebê-los-á com máximo amor. Pois se, como repetem frequentemente, desejam unir-se conosco e com os nossos, por que não se apressam em entrar na Igreja, 'Mãe e Mestra de todos os fiéis de Cristo' (Conc. Later 4, c.5)?

Escutem a Lactâncio chamado amiúde: 'Só... a Igreja Católica é a que retém o verdadeiro culto. Aqui está a fonte da verdade, este é o domicílio da Fé, este é o templo de Deus: se alguém não entrar por ele ou se alguém dele sair, está fora da esperança da vida e salvação. É necessário que ninguém se afague a si mesmo com a pertinácia nas disputas, pois trata-se da vida e da salvação que, a não ser que seja provida de um modo cauteloso e diligente, estará perdida e extinta' (Divin. Inst. 4,30, 11-12).

18. Apelo às seitas dissidentes

Aproximem-se, portanto, os filhos dissidentes da Sé Apostólica, estabelecida nesta cidade que os Príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo consagraram com o seu sangue; daquela Sede, dizemos, que é 'raiz e matriz da Igreja Católica' (S. Cypr., ep. 48 ad Cornelium, 3), não com o objetivo e a esperança de que 'a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade' (1 Tm 3,15) renuncie à integridade da fé e tolere os próprios erros deles, mas, pelo contrário, para que se entreguem a seu magistério e regime. Oxalá auspiciosamente ocorra para nós isto que não ocorreu ainda para tantos dos nossos muitos predecessores, a fim de que possamos abraçar com espírito fraterno os filhos que, de modo doloroso, estão separados por uma perniciosa dissensão.

Prece a Nosso Senhor e a Nossa Senhora

Oxalá Deus, Senhor nosso, que 'quer salvar todos os homens e que eles venham ao conhecimento da verdade'(1 Tm 2,4) nos ouça suplicando fortemente para que Ele se digne chamar à unidade da Igreja a todos os errantes. Nesta questão que é, sem dúvida, gravíssima, utilizamos e queremos que seja utilizada como intercessora a Bem Aventurada Virgem Maria, Mãe da graça divina, vencedora de todas as heresias e auxílio dos cristãos, para que ela peça, para o quanto antes, a chegada daquele dia tão desejado por nós, em que todos os homens escutem a voz do seu Filho divino, 'conservando a unidade de espírito em um vínculo de paz' (Ef 4,3).

19. Conclusão e Bênção Apostólica

Compreendeis, Veneráveis Irmãos, o quanto desejamos isto e queremos que o saibam os nossos filhos, não só todos os do mundo católico, mas também os que de nós se separaram. Estes, se implorarem em prece humilde as luzes do céu, por certo reconhecerão a única verdadeira Igreja de Jesus Cristo e, por fim, nela tendo entrado, estarão unidos conosco em perfeita caridade. No aguardo deste fato, como auspício dos dons de Deus e como testemunho de nossa paterna benevolência, concedemos muito cordialmente a vós, Veneráveis Irmãos, e a vosso clero e povo, a bênção apostólica.

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

VERSUS: OS SETE GRAUS DA HUMILDADE (VII)

VII. A aversão aos frutos da vontade própria 

(São Bernardo*)

* (Obras Completas de San Bernardo, BAC Editorial, 1993)

'Fazer vossa vontade, ó meu Deus, é o que me agrada, porque vossa Lei está no íntimo de meu coração' (Sl 39, 9)

'Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito' (Rm 12,2)


Como vimos, a humildade do entendimento consiste na convicção de que nós não merecemos senão desprezo; a humildade da vontade, porém, consiste no desejo sincero de sermos realmente desprezados pelos outros e alegrarmo-nos quando desprezados. Justamente nisso está o mérito principal da humildade, pois se merece muito mais pelo ato da vontade que pelo do entendimento.

A humildade da vontade tinha principalmente em vista Jesus Cristo, quando disse: 'Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração' (Mt 11, 29). Muitos são humildes de boca; não, porém, de coração; confessam que são maus e merecem todos os castigos; quando, porém, os admoestamos, se enfurecem e negam ter defeito que se lhes imputa.

Eis, por exemplo, uma pessoa que protesta ser a maior pecadora do mundo e merecer mil vezes o inferno; quando, porém, seus superiores ou seus semelhantes, com palavras brandas, a admoestam de uma falta ou só lhe tocam em sua tibieza ou em seu procedimento pouco edificante, ela se defende imediatamente e responde em tom arrogante: Que mal fiz eu? Que escândalo o senhor me viu dar? Vá corrigir antes a outros, que cometem faltas que eu nunca tive! Mas que é isso, alma cristã, há pouco disseste que, por causa de teus pecados, mereceste mil infernos, e agora não podes suportar uma palavra sequer de censura? Tua humildade, portanto, é só uma humildade de boca e não aquela humildade de coração, recomendada por Jesus Cristo.

'Alguns se humilham maliciosamente', diz o Espírito Santo (Ecli 19, 23), não para serem repreendidos e humilhados, mas sim tidos em conta de humildes e louvados. Mas humilhar-se para ser louvado, diz São Bernardo (In Cant., s. 16), não é humildade, mas antes destrói toda a humildade, pois, assim, a própria humildade torna-se objeto de orgulho. São Vicente de Paulo dizia que a humildade é atraente na sua aparência, mas espantosa na prática; pois a verdadeira humildade consiste em se amar o desdém e o desprezo. Segundo São João Clímaco, para se ser humilde não basta apelar-se um miserável pecador, mas deve-se também desejar ser tido por tal e desprezado: 'É bom que fales mal de ti, diz ele, mas é melhor que aproves sem descontentamento e até te alegres quando outros falam mal de ti' (Scal. par. gr. 21). O mesmo já tinha dito, antes dele, São Gregório: 'O verdadeiro humilde reconhece que ele é um pecador e não o nega mesmo quando lhe lançam em rosto seus defeitos' (Mor., l. 22, c.14). São Bernardo exprime o mesmo pensamento da seguinte maneira (In Cant., s. 16): 'O verdadeiro humilde não quer ser louvado por isso, mas passar por um homem miserável, cheio de defeitos e desprezível; alegra-se se é humilhado e tratado como julga merecer, e, assim, a humilhação torna-o mais humilde'. Por isso dizia São José de Calazans: 'Quem ama a Deus não quer parecer santo, mas ser santo'. Se queres, pois, alma cristã, ser humilde de coração e vontade, então deves observar o seguinte. 

Primeiro: Nunca deves dizer coisa alguma em teu louvor, quer em relação ao teu proceder, teus talentos, tuas boas obras, quer em relação à tua família, falando de sua nobreza, riqueza ou parentesco. Ouve o que te diz o Sábio: 'ouve-te um outro e não a tua própria boca' (Pv 27, 2). De mais, cada um sabe que louvor próprio não traz honra, mas desonra. Quando, pois, deves falar de ti mesmo ou daquilo que te respeita, procura humilhar-te sempre e não te exaltar; se te humilhares nada terás a temer; mas se, à custa da verdade, te exaltares um pouquinho só, diz São Bernardo (In Cant., s. 37), poderás causar-te um grande mal. Quem atravessa uma porta e abaixa a cabeça mais do que preciso, não se causará nenhum mal; mas quem a ergue, ainda que só um dedo mais alto, dará com a fronte na porta e se ferirá.

Se, pois, falas de ti, procura dizer antes mal que bem, antes descobrir teus defeitos que aquilo que te fará parecer virtuoso. O melhor, porém, é nunca falar de si mesmo, nem bem, nem mal. Deves te considerar tão desprezível, que nem sequer mereças ser nomeado pelos outros. Mesmo quando falamos de coisas que servem para nossa vergonha, se imiscui, muitas vezes, um orgulho sutil e encoberto: a humilhação voluntária, que sofremos pela revelação de nossas faltas desperta em nós um desejo de sermos louvados pelos outros ou, no menos, de sermos tidos no número dos humildes.

Isso, porém, nada vale em relação ao confessor: a ele deves revelar as tuas faltas, tuas más inclinações e, geralmente, até os maus pensamentos que te sobrevêm. Pode também algumas vezes acontecer que devas revelar outras coisas que te causam confusão; faze-o então de boa vontade, seguindo o exemplo do Pe. Vilanova, da Companhia de Jesus, que não se envergonhava de dizer a todo o mundo que seu irmão era um pobre operário. De semelhante modo procedia o Pe. Sacchini, igualmente jesuíta, encontrando-se uma vez com seu pai, que era um pobre tropeiro, abraçou-o em plena rua, dizendo: Eis aqui meu pai.

Se fores louvada contra a tua vontade, alma cristã, procura humilhar-te ao menos interiormente, recordando-te de teus muitos defeitos. Os muitos orgulhosos alegram-se do louvor, ainda quando não o merecem, diz São Gregório (Mor., 1. 22, c. 9; 1. 26, c. 30), enquanto que os humildes coram e se entristecem, quando os louvamos, ainda que justamente. O humilde se entristece quando ouve seu louvor, acrescenta São Gregório; pois ele sabe que não possui as qualidades que se lhe atribuem e teme perder, pela complacência em tais louvores, algum merecimento que talvez tenha diante de Deus; poderá uma vez ser-lhe dito: não te esqueças que já recebeste tua recompensa em vida, ouvindo com prazer aqueles louvores. 'Como o ouro é provado na fornalha, diz o sábio, assim o homem pela boca do que o louva' (Pv 27, 21), isto é, o homem mostra sabedoria se ele, em vez de dar ouvidos e se vangloriar dos louvores recebidos, se confundir e entristecer por isso, como se dava com São Francisco de Borja, com São Luís Gonzaga e outros santos.

Se, pois, te louvam e honram, deves te humilhar profundamente e temer que essas honras não te sejam causa de quedas e ruína. Não te esqueças que a consideração por parte dos homens talvez seja a maior desgraça que te possa acontecer, visto que essa estima alimenta o teu orgulho e pode perverter teu coração e, assim, levar-te à condenação eterna. Deves ter sempre diante dos olhos as palavras de São Francisco de Assis: 'Eu sou unicamente aquilo que sou diante de Deus'. Julgas talvez ser alguma coisa mais diante de Deus se valeres alguma coisa mais diante dos olhos dos homens? Se te comprazes no louvor dos homens e te ensoberbeces por isso e te julgas melhor que outros, podes estar certo que no mesmo tempo que os homens te louvam, Nosso Senhor te repele para longe de si. Persuade-te, portanto, que não te tornas melhor pelo louvor dos outros. 'Como as ofensas e injúrias não nos roubam o merecimento das virtudes' - diz S. Agostinho (Cat. Petit, L. 3, C. 7) - 'assim os louvores dos outros não nos fazem melhores'. Quantas vezes pois, fores louvado, dize, com o mesmo santo: 'Eu me conheço melhor do que esses que dizem de mim'; sei que não mereço esse louvor, e Deus sabe melhor do que eu, desde que Ele sabe que não mereço honras, mas desprezo, na terra e no inferno.

Por isso não tenhas inveja dos que têm mais talentos e aptidões, ou que são mais estimados que tu; deves antes invejar os que te superam em amor de Deus e humildade. Melhor que todas as honras e todo o aplauso do mundo é a humilhação. A ciência mais bela para ti consiste em aprenderes a te humilhar, te desprezar e a te alegrar quando não fazem nenhum caso de ti. Deus não te concedeu maiores alentos porque eles, talvez, trariam a tua ruína. Por isso, contenta-te com os poucos dotes que tens; eles te dão ocasião de exercer a humildade, que é o caminho mais seguro, ou, antes, o único para a felicidade e santidade. Se outros sabem melhor que tu conquistar a estima geral, deves, conforme o conselho do Apóstolo (Fp 2, 3), procurar sobrepujá-los na humildade. Quem é honrado corre perigo de deixar-se arrastar pelo orgulho e perder as inspirações de Deus e, como diz Davi (Sl 48, 13), assemelhar-se aos animais irracionais, que só buscam os míseros bens desta terra e não podem pensar nos bens eternos.

Segundo: Se queres conservar a humildade, não deves te irritar nas repreensões; se, quando repreendido, te inquietas, ainda não alcançaste a humildade, e deves pedir a Deus que te conceda essa virtude tão necessária para a salvação. Como observa o Pe. Rodríguez, alguns cristãos imitam o ouriço; mal se lhes toca, já apontam seus espinhos, isto é, irrompem logo em palavras impacientes, em invectivas e em queixas. 'Muitos se dão voluntariamente por pecadores, se ninguém os censura, diz São Gregório (Mor., 1. 22, c. 14); mas se forem censurados por causa de alguma falta, defendem-se com toda a veemência para não parecerem repreensíveis'. 

Assim também procedem alguns que se obrigaram a tender à perfeição; que esses tomem a peito o que diz o Espírito Santo: 'Quem aborrece a repreensão, não trilha o caminho do justo, mas o do pecador' (Ecli 21, 7), isto é, o caminho do inferno. São Bernardo dizia: 'Alguns se irritam contra quem os procura curar com uma repreensão, e não se agastam com aquele que os fere com adulações' (In Cant., s. 42). E, contudo, deveria cada um tremer ao ouvir o que diz o Sábio (Pv 1, 25-32), àqueles que não querem aceitar uma correção: 'Porque eles aborreceram as instruções, a prosperidade dos insensatos virá a perdê-los'. O aparente bem-estar dos insensatos consiste nisso, que não encontram ninguém que os repreenda ou que se importe com isso; dessa maneira se perdem miseravelmente.

São João Crisóstomo diz que o justo se entristece quando se nota nele um defeito. O pecador também se entristece se se descobre nele uma falta, não porque ele pecou, mas porque sua falta ficou notória; ele nem pensa em se arrepender, mas só em se defender, e se agasta com aquele que o repreende. Dize-me, alma cristã, procedeste também tu de semelhante modo com aqueles que foram tão caridosos em te corrigir, e queres ainda fazer o mesmo no futuro?

Não, não procedas assim, te admoesta São Bernardo; agradece antes a quem te avisou de uma falta; seria grande injustiça se te irritares com aquele que te mostra o caminho da salvação. Farias até um grande bem se, como costumava aconselhar Santa Maria Madalena Pazzi, de procurasses um amigo que te admoestasse de todas as faltas que cometeste, talvez sem o saber. Sabes que estás cheia de miséria e defeitos: o único meio contra isso consiste em te humilhares quando os descobrires ou os outros te apontarem. 'Na nossa humildade' - diz Santo Agostinho (In ps. 130) 'consiste a nossa perfeição'. Desde que tão imperfeitamente praticamos a virtude, sejamos ao menos perfeitos na prática da humildade, e alegremo-nos se os outros, por meio de suas censuras, nos dão ocasião de exercê-la.

Devemos também notar que o nosso orgulho suporta mais facilmente as correções imerecidas que as merecidas, porque o amor-próprio acha uma certa satisfação nas repreensões imerecidas. Se fores censurado com razão, apressa-te em oferecer a Deus, quanto antes a tua confusão, e em te emendar; esmaga o escorpião na própria ferida que ele te fez, isto é, utiliza-te dessa confusão para reparar a falta cometida, e podes ficar persuadido que Deus se mostrará tanto mais pronto a te perdoar as tuas faltas quanto maior for a humildade com que receberes a correção.

Resolve-te, pois, àquele grande ato de humildade, tão agradável a Deus, que consiste em não se defender nem se desculpar nas repreensões. Santa Teresa diz que uma pessoa que não se defender nem se desculpar quando é repreendida por causa de alguma falta, ganha muito mais com isso do que ouvindo dez sermões. Se, pois, te reprenderem, ainda que injustamente, por amor da santa humildade, renuncia a te justificar, exceto o caso que isso fosse necessário para evitar um escândalo.

III. Se quiseres alcançar uma humildade perfeita, alma cristã, deves te esforçar a receber com serenidade toda sorte de desprezo e maus tratos. Poderás praticar isso se creres sinceramente que em vista de teus pecados mereces todo o desprezo possível. A humilhação é a pedra de toque da santidade. O meio mais seguro para se conhecer se uma alma possui virtude, segundo São João Crisóstomo (In Gen. hom., 34), consiste em observar se ela recebe tranquilamente as humilhações. O Pe. Crasset narra, na sua história da Igreja do Japão, que um missionário agostiniano que, por causa da perseguição, trajava à secular, recebeu, uma vez, uma bofetada sem se irritar nem por um só instante; disso concluíram os pagãos que ele era um cristão e meteram-no na prisão, convencidos de que só um cristão pode praticar uma tal virtude.

Alguns colocam a santidade na recitação de muitas orações, prática de penitências, diz São Francisco de Sales, e não podem suportar uma palavra ofensiva. Esses não têm ideia do grande valor das humilhações. Mais se ganha suportando uma ofensa, que jejuando dez dias a pão e água. Vês, por exemplo, que se permite a outros o que se nega a ti; que os outros dizem è ouvido com atenção, enquanto que as tuas observações são tomadas em ridículo; outros são louvados em tudo que fazem, são elevados a cargos honrosos, enquanto que não se tem a mínima consideração para contigo e se zomba de tudo o que fazes. Em tais ocasiões, diz São Doroteu, deves mostrar se és verdadeiramente humilde. Se de boa mente recebes todos esses desprezos e recomendas a Deus com tanto maior amor aqueles que mais te maltratam, porque te curam do orgulho, dessa doença perigosa, então és verdadeiramente humilde, segundo o pensamento de São Doroteu. Porque os orgulhosos se julgam dignos de toda a espécie de honras, abusam das humilhações que encontram, para aumento de sua soberba, enquanto que os humildes, que se julgam dignos de todo o desprezo, utilizam-se das humilhações que lhes sucedem para aumento de sua humildade.

Humilhações que nos impomos a nós mesmos são boas, porém muito melhores são as que nos advêm de outros; por exemplo, repreensões, acusações, injúrias e zombarias, contanto que as aceitemos a boa mente, por amor de Jesus Cristo. O Espírito Santo diz: 'O ouro é provado no fogo, e os homens que Deus quer receber, na fornalha da humilhação' (Ecli 2, 5); como o ouro é experimentado no fogo, assim a perfeição dos homens é provada nas humilhações. 'Uma virtude sem provação' - diz Santa Maria Madalena de Pazzi - 'não é verdadeira virtude'. Quem não suporta tranquilamente o desprezo, nunca poderá alcançar a santidade. 'Meu nardo espalhou o seu cheiro' (Ct 1, 11), diz-se no Cântico dos Cânticos. O nardo é uma planta odorífera, mas que só espalha o seu cheiro agradável, quando é fendida ou moída. Oh! que cheiro agradável não difunde diante de Deus uma alma que recebe tranquilamente qualquer ultraje e se alegra vendo-se desprezada e tratada por todos como se fosse a última.

Alguns julgam-se humildes por estarem convencidos de sua miséria e se arrependerem de ter vivido mal; não querem, porém, ser humilhados e não suportam que se lhes falte com a atenção e respeito e, por isso, evitam todas as ocupações menos honrosas tudo o que não é compatível com sua soberba. Mas que humildade é essa? Confessam que são dignos de toda a ignomínia e não podem suportar uma falta sequer de atenção, até procuram honras e distinções. O Espírito Santo os caracteriza com as palavras: 'Alguns se humilham maliciosamente', isto é, dizem de boca que são os piores de todos, mas no coração desejam ser estimados e honrados mais que os outros 'e o seu interior está cheio de dolo' (Ecli 19, 23).

Espero, alma cristã, que não pertenças a essa classe. Se, pois, te julgas pior que todos os outros, deves ficar contente se te tratam pior que aos outros; deves até amar como teus maiores amigos aqueles que te auxiliam por seu trato desdenhoso à humildade e ao desprezo das honras mundanas e que contribuem para que te unas mais intimamente com Deus e nada mais busques nesta vida que o seu santo amor. Considera-te a ti mesmo como um cadáver em putrefação que, com razão, é abominado por todos, e mostra-te pronto a suportar, por amor de Deus, e em satisfação de teus pecados, todas as injúrias, sem nunca permitires uma queixa ao teu amor-próprio. Pensa que quem teve a ousadia de desprezar a Deus, merece um tratamento muito pior, a saber, ser calcado pelo demônio no inferno. 'Não conheço melhor remédio para curar as chagas do meu espírito' - diz São Bernardo - 'do que injúria e desprezo' (Ep. 280).

Alegra-te, pois, alma cristã, se fores desprezada, escarnecida e tida pela pessoa mais tola e desprezível de todas. Crê no que diz o Pe. Alvarez: 'O tempo da humilhação é o mais próprio para ficarmos livres de nossa miséria e de ajuntarmos merecimentos'. Segundo Santa Maria Madalena de Pazzi, as maiores graças que o divino Esposo dá aos seus privilegiados consiste nisso, Que lhes envia humilhações e cruzes; afirmava também que encontrava uma consolação especial podendo tratar com pessoas que eram desprezadas, por serem muito caras à Jesus Cristo. Por isso dizia às suas irmãs: 'Não procureis em outra coisa vosso gosto e satisfação senão no desprezo'.

Devemos, antes de tudo, ter sempre diante dos olhos as palavras do divino Mestre: 'Bem-aventurados sois, se os homens vos odiarem e vos excluírem e carregarem de injúrias e rejeitarem o vosso nome como mau por causa do Filho do Homem' (Lc 6, 22). O apóstolo São Pedro acrescenta: 'Bem-aventurados sois, se por causa do nome de Cristo vos insultarem, porque o que há de honra, de glória e de virtude de Deus e o espírito que é dele, repousa então sobre vós' (1 Pd 4, 14). Os santos não atingiram a santidade debaixo dos aplausos, mas sob injúrias e desprezo. Santo Inácio Mártir que, como bispo, gozava de consideração e veneração, foi arrastado como um malfeitor para Roma, para ser lançado às feras. Os guardas, durante a viagem, o cobriram de injúrias e maus tratos de toda a espécie; ele, porém, cheio de júbilo, exclamava: 'Agora é que começo a tornar-me um discípulo de Cristo, que foi tão desprezado por seu amor por mim' (Ep. ad Rm).

Os mundanos sentem menor alegria nas homenagens, que os santos nos desprezos. Quando se fazia uma injúria ao Irmão Junipero, franciscano, ele suspendia o seu hábito e estendia-o no alto, como se quisesse aparar pérolas. Meu Deus, o que entende aquele que não sabe suportar uma ofensa por Jesus Cristo! Quem não é capaz de suportar uma injúria prova que perdeu de vista a Jesus Cristo Crucificado. A venerável Maria da Encarnação disse um dia, à vista de um crucifixo, às suas irmãs: 'Será possível, queridas Irmãs, que nós recusemos sofrer desprezos, quando vemos a Jesus Cristo tão desprezado?' Nosso Senhor apareceu uma vez a São João da Cruz com a cruz às costas e a coroa de espinhos na cabeça e disse-lhe: 'João, exige de mim o que quiseres'. Ao que o santo respondeu: 'Senhor, desejo padecer e ser desprezado por amor de vós'. Com isso queria dizer: 'Ó meu Salvador, vendo-vos por meu amor tão atormentado e desprezado, que outra coisa posso desejar que padecer e ser desprezado?'

Uma outra pessoa piedosa, quando recebia uma injúria, dirigia-se ao altar do Santíssimo Sacramento e dizia: 'Ó meu Deus, sou muito pobre para oferecer alguma coisa de peso; por isso vos ofereço estas pequeninas dádivas que acabo de receber'. Ó com que amor não abraça Jesus Cristo uma alma que suportou com paciência um desprezo! Como se apressa em consolá-la e enriquecê-la de graças! O Pe. Antônio Torres foi acusado de propagador de falsas doutrinas e, em consequência disso, privado por vários anos pela jurisdição de ouvir confissões. Ele escreveu mais tarde a respeito desse tempo: enquanto duraram as calúnias, tornaram-se tão grandes as consolações, que posso afirmar nunca ter experimentado semelhantes consolações.

Quem suportar com coração alegre as injúrias, não só alcança grandes merecimentos para si mesmo, mas ganha também o próximo para Deus Nosso Senhor. São João Crisóstomo diz: 'O manso de coração, que suporta tranquilamente as ofensas, aproveita a si e a todos que o observam; pois nada é mais próprio para edificar o próximo do que a mansidão de um homem que com rosto sereno suporta ultrajes'. O Pe. Maffei conta de um padre jesuíta do Japão que, estando a pregar, recebeu de um homem vil uma escarrada no rosto; tomando o lenço com toda a tranquilidade, limpou-se e continuou a sua pregação, como se nada tivesse acontecido. Isso impressionou tanto a um dos ouvintes, que este se converteu à fé cristã, 'pois a religião que ensina uma tal humildade' - dizia ele - 'deve ser verdadeira e divina'. Assim também converteu São Francisco de Sales a muitos hereges pela mansidão com que suportava todos os insultos da parte deles.

De resto, quem quiser trilhar o caminho da perfeição deve estar pronto a ser escarnecido, caluniado, injuriado, perseguido e odiado. Isso é inevitável. 'Os ímpios abominam aqueles que se acham no caminho correto' (Pv 29, 27). A vida dos bons é, de fato, uma contínua exprobração para os pecadores; pois seu desejo é que todos vivam como eles. A fugida do mundo, o desapego dos vãos prazeres, numa palavra, todos os atos piedosos de um cristão fervoroso são qualificados como singularidade, beatice e até hipocrisia, visto que se pratica tudo isso para se passar por santo. E se uma vez tem um bom cristão a infelicidade de cair numa falta (pois não deixou de ser frágil); gritam logo: vede o santo: isso faz aquele que comunga todos os dias e passa o dia inteiro na igreja, para enganar os homens. Muitas vezes se acrescentam ainda mentiras.

Quem quer se santificar, deve estar resolvido a receber serenamente todas essas humilhações e oferecê-las a Deus, porque, se não quiser suportá-las, não poderá permanecer por muito tempo no caminho encetado; dentro em pouco deixará tudo e procederá do mesmo modo como a grande maioria. Tratei a fundo deste assunto, porque me parece impossível que um cristão faça progresso na perfeição se não se sujeita de boa vontade ao desprezo, e porque tenho por certo que, em caso contrário, não se santificará. Se queres, pois, atingir a santidade, deves ser muito humilhado e desprezado. Se estas palavras te assustarem, reanima-te pela promessa de Jesus Cristo: 'Bem-aventurados sois quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós, por causa de mim: folgai e exultai, porque vossa recompensa será copiosa nos céus' (Mt 5, 12).

(Excertos da obra 'Tratado da Humildade e da Mansidão', de Santo Afonso Maria de Ligório)

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (176/178)

176. A RECOMPENSA DA ESMOLA

Um dia apresentou-se um pobre a Santa Catarina de Sena e pediu-lhe uma esmola por amor a Deus. Encontrava-se a santa na Igreja dos Frades Pregadores e não tinha nada para dar ao mendigo. 'Vem à minha casa e te darei bastante'. Mas o pobre insistiu: 'Se tens alguma coisa, dá-me agora porque não posso esperar'.

Catarina procurou ansiosamente por alguma coisa e encontrou uma cruzinha de prata que, com gosto, passou às mãos do pobre. Na noite seguinte, Nosso Senhor apareceu à santa, tendo na mão a pequenina cruz adornada de pedras preciosas.
➖ Conheces esta cruzinha?
➖ Conheço  - respondeu Catarina - mas não era tão linda.
➖Ontem tu a deste: a virtude da caridade tornou-a tão bela. Prometo-te que, no dia do Juízo, em presença dos anjos e dos homens, mostrarei esta cruzinha para que a tua glória seja infinita.

177. SANTA TERESA E A SECURA ESPIRITUAL

Durante dois anos Santa Teresa não soube abrir a boca para rezar. Quando se punha de joelhos, apenas juntava as mãos e ficava recolhida, sentia um fastio tal que se levantava e ia fazer outra coisa. Até na comunhão sentia a sua alma vazia e não conseguia pronunciar nenhuma palavra. E, por dois anos, já que o confessor lhe ordenava que comungasse, em lugar de fazer a ação de graças, punha-se a limpar os bancos da igreja.

➖ Ó Jesus - disse uma vez com grande aflição - não é verdade que me abandonastes?
➖ Em toda a tua vida nunca fizeste tanto bem como nestes dois anos - respondeu-lhe Jesus.

Também a muitos cristãos vem a provação da secura e perdem o gosto da oração, das boas obras. Ai daqueles que se deixam vencer e não rezam, não praticam o bem, não obedecem ao confessor!

178. O SINAL DA CRUZ E AS CRUZES

Quando São Gregório Magno era secretário na corte de Constantinopla, reinava no trono do Oriente o jovem imperador Tibério II. Este, passando um dia por um corredor estreito e escuro do seu palácio, viu no mármore do piso gravada uma cruz e exclamou: 'Meu Deus! Fazemos o sinal da cruz na testa, na boca e no peito e depois a pisamos'. 

Imediatamente mandou arrancar aquela do piso; debaixo, porém, havia outra gravada com o mesmo sinal. Depois a terceira, a quarta e mais outras sempre com o sinal da cruz. Quando estavam retirando a sétima pedra, ouviu-se um murmúrio de admiração. Havia debaixo daquela pedra anéis de ouro, prata, rubis, pérolas, esmeraldas, colares, um tesouro de grandíssimo valor. 

O imperador contemplava aquelas joias a tremer de alegria e sem dizer uma palavra. O imperador do Oriente pode ser um símbolo de todo homem que passa peio corredor escuro e estreito desta vida. Apresentam-se diante de nós muitos anos dolorosos, gravados com a cruz do sofrimento. Passam-se os anos, termina a nossa carreira e, na outra vida, encontramos as cruzes transformadas em um imenso tesouro.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

domingo, 16 de outubro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Do Senhor é que me vem o meu socorro, 
do Senhor, que fez o céu e fez a terra' (Sl 120-)

 16/10/2022 - Vigésimo Nono Domingo do Tempo Comum
 
47. O JUIZ INÍQUO E A VIÚVA IMPERTINENTE


No evangelho deste domingo, Jesus nos exorta, uma vez mais, à oração frequente, confiante, perseverante e colocada no coração de infinito amor do Deus de Misericórdia. À oração despojada de contrapartidas favoráveis aos apelos intrinsecamente humanos, mas entregue aos desígnios do Pai para o bem maior de nossa alma e do nosso semelhante. E vai enfatizar, de forma cristalina, que a obscuridade e as trevas da perda de fé são engendradas na forja da falta de oração. Santo Afonso de Ligório, doutor da Igreja, já nos alertava: 'Quem reza, se salva; quem não reza, se condena'.

Na parábola do mau juiz e da viúva impertinente, deparam-se duas realidades humanas antagônicas: de um lado, o homem privilegiado pelas leis humanas e detentor do poder de decisão sobre as ações e contendas dos outros homens; de outro lado, a mulher exposta e fragilizada pela perda do marido, sob o peso de novas e doloridas realidades e indefesa pelas dramáticas circunstâncias do momento. Cabe a ela, portanto, pedir, pedir uma vez mais e muitas vezes enfim e mesmo implorar a intervenção do juiz em sua causa e defesa. Ao juiz, homem iníquo, ao qual a soberba do cargo tinha imposto sempre decisões rápidas e inquestionáveis, a insistência da viúva é ocasião de incômodo, transtorno, desvario. Eis o cenário que Jesus montou para falar do valor incomensurável da oração.

Diante de apelos tão inoportunos e persistentes, até o juiz iníquo se rendeu: 'Eu não temo a Deus, e não respeito homem algum. Mas esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!' (Lc 18, 4-5). Se até um homem iníquo e injusto é complacente com os rogos repetidos da viúva inconsolável a qual desdenha, o que Deus de infinita misericórdia não iria fazer por nós em oração confiante e perseverante nas Suas graças? E Jesus é taxativo ao dizer: 'Eu vos digo que Deus lhes fará justiça bem depressa' (Lc 18,8).

E, no mesmo versículo, Jesus encerra a parábola com uma frase extremamente preocupante: 'Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?' (Lc 18, 8). Jesus não precisaria se expressar assim se não profetizasse uma terrível apostasia dos homens dos tempos da Segunda Vinda do Senhor, fomentada pela perda dos valores espirituais, submissão aos valores mundanos e, principalmente pela perda da oração confiante e perseverante aos desígnios de Deus. E, de repente, ao se ter em conta as realidades de agora, não parece que Jesus está falando para nós?