sábado, 15 de junho de 2019

A REALIDADE DO INFERNO

É bem conhecido o relato do bispo Fulton Sheen sobre um homem que o procurou manifestando firmemente a sua crença pela não existência do inferno, ao que ele respondeu: 'Você vai acreditar quando estiver lá'. Dentre as extraordinárias comprovações formais da existência do inferno ao longo dos séculos, é de particular menção o fato retratado na vida do padre jesuíta São Francisco de Jerônimo, incluído com riqueza de detalhes no processo de canonização do santo e atestado sob juramento por um grande número de testemunhas oculares, conforme descrito abaixo*.

No ano de 1707, São Francisco de Jerônimo pregava, como de costume, nos arredores de Nápoles, falando particularmente nesta ocasião sobre o inferno e os terríveis castigos reservados aos pecadores obstinados. Da janela de uma casa próxima à multidão reunida, uma mulher interrompeu e perturbou várias vezes o ofício da pregação, com ironias, insolências e blasfêmias variadas ao sacerdote e à temática do sermão. Diante das provocações recorrentes, o santo então a interpelou: 'Ai de ti, filha, que resistes à graça! Não passarão oito dias sem que Deus te castigue'. Nem tal alerta, nem coisa alguma levou a mulher a alterar seu comportamento e suas más intenções.

Oito dias depois, o santo retornou ao mesmo local da pregação anterior e fez o seu sermão sem quaisquer constrangimentos ou perturbações pela mulher, permanecendo as janelas da casa vizinha sempre fechadas. Alguém o informou, então, que a tal mulher, de nome Catarina, havia morrido de súbito e há pouco naquele dia, ao que o santo, interrompendo a sua pregação, dirigiu-se à casa da defunta, acompanhado pela multidão, tomada de grande apreensão e temor.

Na presença de quantos conseguiram adentrar à sala da casa, onde repousava o cadáver tão recente, o santo fez uma breve oração e, desvelando o rosto da mulher falecida, disse em voz alta: 'Catarina, diz-nos onde estás agora!'. Neste momento, o cadáver abriu os olhos em estado de absoluto pavor, levantou um pouco a cabeça e respondeu com um gemido assustador e voz horrível: 'No inferno! Eu estou no inferno!' para, em seguida, retornar definitivamente à rigidez de cadáver.

(*adaptação do texto da obra 'O inferno existe – Provas e Exemplos', do Pe. André Beltrami, 2007)

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (V)


Nesta quinta parte do sermão, o Pe. Antônio Vieira  discute a influência relativa do estilo do pregador na maior ou menor eficácia da Palavra de Deus render muitos frutos.

V

Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afetado, um estilo tão encontrado em toda a arte e em toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare [saiu, quem semeia, a semear]. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes, tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitetura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte, caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho: 'Caía o trigo nos espinhos e nascia: aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae [uma parte caiu entre os espinhos e os espinhos cresciam juntos (com o trigo)]; 'Caía o trigo nas pedras e nascia': aliud cecidit super petram, et ortum [outra parte caiu entre pedras e germinou]; 'caía o trigo na terra boa e nascia: aliud cecidit in terram bonam, et natum [outra parte caiu em terra boa e nasceu]. Ia o trigo caindo e ia nascendo.

Assim há de ser o pregar. Hão de cair as coisas e hão de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir assim os tristes passos da Escritura como quem vem ao martírio: uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: cecidit [caiu]. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair: há de cair com queda, há de cair com cadência e há de cair com caso [circunstância]. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso [a circunstância] para a disposição. A queda é para as coisas porque hão de vir bem trazidas e em seu lugar; hão de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão de ser escabrosas nem dissonantes; hão de ter cadência. O caso [a circunstância] é para a disposição, porque há de ser tão natural e tão desafetada que pareça caso [circunstância] e não estudo: cecidit, cecidit, cecidit [caiu, caiu, caiu].

Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum [os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos (Sl 19,1)] diz Davi. Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter palavras. Sim, as tem, diz o mesmo Davi, tem palavras e tem sermões e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum [não há línguas e nem sermões, onde suas vozes não sejam ouvidas].

E quais são estes sermões e estas palavras do céu? As palavras são as estrelas e os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há de ser como quem semeia e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: stellae manentes in ordine suo [as estrelas se mantêm na sua ordem]. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há de estar branco, da outra há de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem 'desceu', da outra hão de dizer 'subiu'. 

Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o nauta para a sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o navegante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas que todos vêem e que muito poucos medem.

Sim, padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Antes fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de entender o que diz?! Assim como há o Lexicon para o grego e o Calepino para o latim [faz referência a dicionários clássicos para estas duas línguas], assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomaria para os nomes próprios porque os cultos têm desbatizados os santos e cada autor que alegam tem sido um enigma. Assim o disse o Cetro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a Águia da África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro [personagens identificados na sequência do texto]. Há tal modo de alegar! 

O Cetro Penitente dizem que é Davi, como se todos os cetros não foram penitência; o Evangelista Apeles é São Lucas; o Favo de Claraval, São Bernardo; a Águia da África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, São Jerônimo; a Boca de Ouro, São Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar  [tolheria a outro de dizer] que a Púrpura de Belém é Herodes que a Águia da África é Cipião e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de o ter por néscio? Pois o que na conversação seria necessidade, como há de ser discrição no púlpito?

Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos se defendem pelo (lado) polido e estudado com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão e pelo (lado) escuro e duro, com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores posto que desejássemos, aos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será, portanto, a causa da nossa queixa?

(Sermão da Sexagésima- Parte V, Pe. Antônio Vieira)

sexta-feira, 14 de junho de 2019

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (IV)


Nesta quarta parte do sermão, o Pe. Antônio Vieira busca estabelecer a correlação entre o fato da Palavra de Deus não render muitos frutos com a natureza da pregação por palavras não estar associada com o exemplo das boas obras.

IV

Mas como em um pregador há tantas qualidades e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? No pregador, podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamos examiná-las uma por uma e buscando esta causa.

Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos, eram varões apostólicos e exemplares e hoje os pregadores são eu e outros como eu? Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não disse Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é o nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que seja? - o conceito que de sua vida têm os ouvintes.

Antigamente convertia-se o mundo, hoje porque se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de Davi derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus [a pedra perfurou-lhe a testa]. As vozes da harpa de Davi lançavam fora os demônios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua [Davi tomava a harpa e a tocava com a mão (I Sm 16, 23)]. 

Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar faz-se com a boca; o pregar que é semear faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram em palavras? Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter o mundo e o que fez? Mandou ao mundo o seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus: genitum non factum [gerado, não criado]. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est [o Verbo se fez Carne].

De maneira que, até de sua palavra desacompanhada de obras, não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem e na terra não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est [veremos a Deus como Ele é]; na terra, entra-se no conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu [a fé vem pelo ouvir] e o que entra pelos ouvidos crê-se e o que entra pelos olhos, necessita. Se virem os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, o abalo e os efeitos do sermão seriam muitos outros.

Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lhe puseram aos ombros; ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos e que a pregaram em sua cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por cetro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Desvela-se uma cortina neste espaço e aparece a imagem do Ecce Homo [eis aqui o homem]; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que desvelou aquela cortina já tinha dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coroa e daqueles espinhos, já tinha dito daquele cetro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? Porque então era Ecce Homo ouvido e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos; a representação daquela figura entra pelos olhos. 

Sabem, padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Batista tantos pecadores? Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Batista pregavam penitência: Agite poenitentiam - 'Homens, fazei penitência' e o exemplo clamava: Ecce Homo: 'eis aqui o homem', que é o retrato da austeridade e da penitência. As palavras do Batista pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula e o exemplo clamava: Ecce Homo:  'eis aqui o homem' que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Batista pregavam composição e modéstia e condenavam a soberba e a vaidade das galas e o exemplo clamava: Ecce Homo: 'eis aqui o homem' vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As palavras do Batista pregavam desapegos e retiros do mundo e a fugir das ocasiões e dos homens e o exemplo clamava: Ecce Homo: 'eis aqui o homem' que deixou as cortes e as sociedades e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como hão de se converter? Jacó punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam e daí procedia que os cordeiros nasciam malhados. Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão de se conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma coisa é o semeador e outra o que semeia, como há de se fazer fruto?

Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus, mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente contumaz e, ainda depois de engolido e vomitado iracundo, impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso e mais zeloso e amigo da própria estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive e de a ver subvertida com seus próprios olhos, havendo nela tantos mil inocentes. Contudo, este mesmo homem, com um único sermão, converteu o maior rei, a maior corte e o maior reinado do mundo, e não de homens fiéis mas de gentios idólatras. Outra é, portanto, a causa que buscamos. Qual será?

(Sermão da Sexagésima- Parte IV, Pe. Antônio Vieira)

quinta-feira, 13 de junho de 2019

13 DE JUNHO - SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA



SÍNTESE BIOGRÁFICA

1195: Nasce em Lisboa, filho de Maria e Martinho de Bulhões. É batizado com o nome de Fernando. Reside na frente da Catedral.

1202: Com sete anos de idade, começa a frequentar a escola, um privilégio raro na época.

1209: Ingressa no Mosteiro de São Vicente, dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho, perto de Lisboa. Torna-se agostiniano. 

1211: Transfere-se para Coimbra, importante centro cultural, onde se dedica de corpo e alma ao estudo e à oração, pelo espaço de dez anos.

1219: É ordenado sacerdote. Pouco depois conhece os primeiros franciscanos, vindos de Assis, que ele recebe na portaria do mosteiro. Fica impressionado com o modo simples e alegre de viver daqueles frades.

1220: Chegam a Coimbra os corpos de cinco mártires franciscanos. Fernando decide fazer-se franciscano como eles. É recebido na Ordem com o nome de Frei Antônio, enviado para as missões entre os sarracenos de Marrocos, conforme deseja.

1221: Chegando a Marrocos, adoece gravemente, sendo obrigado a voltar para sua terra natal. Mas uma tempestade desvia a embarcação arrastando-a para o sul da Itália. Desembarca na Sicília. Em maio do mesmo ano participa, em Assis, do capítulo das Esteiras, uma famosa reunião de cinco mil frades. Aí conhece o fundador da Ordem, São Francisco de Assis. Terminado o Capítulo, retira-se para o eremitério de Monte Paolo, junto aos Apeninos, onde passa 15 meses em solidão contemplativa e em trabalho braçal. 

1222: Chamado de improviso a falar numa celebração de ordenação, Frei Antônio revela uma sabedoria e eloquência extraordinárias, que deixam a todos estupefatos. Começa a sua epopeia de pregador itinerante.

1224: Em brevíssima Carta a Frei Antônio, São Francisco o encarrega da formação teológica dos irmãos. Chama-o cortesmente de 'Frei Antônio, meu bispo'.

1225: Depois de percorrer a região norte da Itália, passa a pregar no sul da França, com notáveis frutos. Mas tem duras disputas com os hereges da região.

1226: É eleito custódio na França e, um ano depois, provincial dos frades no norte da Itália.

1228: Participa, em Assis, do Capítulo Geral da Ordem, que o envia a Roma para tratar com o Papa de algumas questões pendentes. Prega diante do Papa e dos Cardeais. Admirado de seu conhecimento das Escrituras, Gregório IX o apelida de 'Arca do Testamento'.

1229: Frei Antônio começa a redigir os 'Sermões', atualmente impressos em dois grandes volumes.

1231: Prega em Pádua a famosa quaresma, considerada como o momento de refundação cristã da cidade. Multidões acorrem de todos os lados. Há conversões e prodígios. Êxito total! Mas Frei Antônio está exausto e sente que seus dias estão no fim. Na tarde de 13 de junho, mês em que os lírios florescem, Frei Antônio de Lisboa morre às portas da cidade de Pádua. Suas últimas palavras são: 'Estou vendo o meu Senhor'. As crianças são as primeiras a saírem pelas ruas anunciando: 'Morreu o Santo'.

1232: Não tinha bem passado um ano desde sua morte, quando Gregório IX o inscreveu no catálogo dos santos.

1946: Pio XIII declara Santo Antônio Doutor da Igreja, com o título de 'Doutor Evangélico'.

MILAGRE DOS PEIXES



Certa vez, quando o Frei Antônio pregava o Evangelho na cidade de Rímini, Itália, os moradores locais não queria escutá-lo e começaram a ofendê-lo a ponto de ameaçá-lo de agressão física. Santo Antônio saiu da praça e caminhou em direção à praia e, dando as costas aos seus detratores, falou em voz alta. 'Escutai a Palavra de Deus, vós que sois peixes e vives no mar, já que os infiéis não a querem ouvir.' Diversos peixes agruparam-se à beira da praia e, postando suas cabeças para fora d’água, ficaram em posição como de escuta das palavras do santo: 'Bendizei ao Senhor, vós que sois também criaturas de Deus!' E aqueles que presenciaram este milagre espantoso creram e se converteram ao cristianismo!

EXCERTOS DE UM SERMÃO: 'A CEGUEIRA DAS ALMAS '
(SERMÃO DO DOMINGO DA QUINQUAGÉSIMA) 

Um cego estava sentado... etc. Omitidos todos os outros cegos curados, só queremos mencionar três: o primeiro é o cego de nascença do Evangelho, curado com lodo e saliva; o segundo é Tobias que cegou com excremento de andorinhas, e se curou com fel de peixe; o terceiro é o bispo de Laodicéia, ao qual diz o Senhor no Apocalipse: 'Não sabes que és um infeliz e miserável, pobre, cego e nu. Aconselho-te que me compres ouro provado no fogo, para te fazeres rico, e te vestires com roupas brancas, e não se descubra a tua nudez, e unge os teus olhos com um colírio, para que vejas'. Vejamos o que significa cada uma destas coisas.

O cego de nascença significa, no sentido alegórico, o gênero humano, tornado cego nos protoparentes. Jesus restituiu-lhe a vista, quando cuspiu em terra e lhe esfregou os olhos com lodo. A saliva, descendo da cabeça, significa a divindade, a terra, a humanidade; a união da saliva e da terra é a união da natureza humana e divina, com que foi curado o gênero humano. E estas duas coisas significam as palavras do cego sentado à borda do caminho e a clamar: 'Tem piedade de mim (o que diz respeito à divindade), Filho de Davi' (o que se refere à humanidade).

No sentido moral, o cego significa o soberbo. A este respeito lemos no profeta Abdias: 'Ainda que te eleves como a águia e ponhas o teu ninho entre os astros, eu te arrancarei de lá, diz o Senhor'. A águia, voando mais alto que todas as aves, significa o soberbo, que deseja a todos parecer mais alto com as duas asas da arrogância e da vanglória. É a ele que se diz: 'Se entre os astros, isto é, entre os santos que, neste lugar tenebroso, brilham como astros no firmamento, puseres o teu ninho, isto é, a tua vida, dali te arrancarei, diz o Senhor'. 

O soberbo, pois, esforça-se por colocar o ninho da sua vida na companhia dos santos. Donde a palavra de Job: 'A pena do avestruz, isto é, do hipócrita, é semelhante às penas da cegonha e do falcão, isto é, do homem justo'. E nota que o ninho em si tem três caracteres: no interior é forrado de matérias brandas; externamente é construído de matérias duras e ásperas; é colocado em lugar incerto, exposto ao vento. Assim a vida do soberbo tem interiormente a brandura do deleite carnal, mas é rodeada no exterior por espinhos e lenhas secas, isto é, por obras mortas; também está colocada em lugar incerto, exposta ao vento da vaidade, porque não sabe se de tarde ou se de manhã desaparecerá. E isto é o que se conclui: 'De lá eu te arrancarei, ou seja, arrancar-te-ei para te lançar no fundo do inferno, diz o Senhor'. Por isso, escreve-se no Apocalipse: 'Quanto ela se glorificou e viveu em delícias, tanto lhe dai de tormentos'.

E nota que este cego soberbo é curado com saliva e lodo. Saliva é o sêmen do pai derramado na lodosa matriz da mãe, onde se gera o homem miserável. A soberba não o cegaria se atendesse ao modo tão triste da sua concepção. Daí a fala de Isaías: 'Considerai a rocha donde fostes tirados. A rocha é o nosso pai carnal; a caverna do lago é a matriz da nossa mãe. Daquele fomos cortados no fétido derrame do sêmen; desta fomos tirados no doloroso parto. Por que te ensoberbeces, portanto, ó mísero homem, gerado de tão vil saliva, criado em tão horrível lago e ali mesmo nutrido durante nove meses pelo sangue menstrual?' Se os cereais forem tocados por esse sangue não germinarão, o vinho novo azedará, as ervas morrerão, as árvores perderão os frutos, a ferrugem corroerá o ferro, enegrecerão os bronzes e se dele comerem os cães, tornar-se-ão raivosos e, com as suas mordeduras, farão enlouquecer as pessoas. 

quarta-feira, 12 de junho de 2019

ORAÇÃO: TE DEUM

Te Deum, referência às primeiras palavras (Te Deum Laudamus - A Vós, ó Deus, louvamos...) do texto, consiste em um hino litúrgico de louvor e ação de graças, rezado nas leituras da Liturgia das Horas em domingos fora do Tempo da Quaresma, diariamente durante as oitavas do Natal e da Páscoa e em outras solenidades e festas da Igreja. Designado antigamente como Hino Ambrosiano, em função de sua provável autoria por Santo Ambrósio, foi posteriormente atribuído também a Santo Hilário e a Santo Agostinho mas, com maior certeza, a Nicetas, bispo de Remesiana (século IV). 

As partes finais (a partir de salvum fac populum... ) constituem trechos de salmos adicionados mais tarde ao texto original. Em geral, as traduções incluem invocações (A Vós, Deus; A Vós Senhor...) que não representam exatamente as transcrições literais do texto latino. A divisão do texto nas partes apresentadas constitui meramente uma opção do autor do blog na tradução do texto. Uma versão cantada e legendada do hino é apresentada no final da postagem. Indulgência parcial é concedida aos fiéis que recitam o hino em ação de graças e indulgência plenária, se o hino for proferido publicamente no último dia do ano. 


TE DEUM

Te Deum laudamus:
Te Dominum confitemur.
Te aeternum Patrem,
omnis terra veneratur.
Tibi omnes angeli,
Tibi caeli et universae potestates:
Tibi cherubim et seraphim,
incessabili voce proclamant:
Sanctus,
Sanctus, Sanctus
Dominus Deus Sabaoth.
Pleni sunt cæli et terra maiestatis gloriæ tuæ.


A Vós, ó Deus, louvamos 
A Vós, ó Senhor, confessamos 
A Vós, ó Eterno Pai,
com toda a terra adoramos. 
Todos os anjos reunidos,
Todos os Céus e todo o Universo
todos os querubins e serafins 
proclamam a Vós sem cessar: 
Santo, Santo, Santo é o Senhor, 
Deus dos Exércitos; 
o céu e a terra estão cheios
 de vossa glória e majestade.


Te gloriosus Apostolorum chorus,
Te prophetarum laudabilis numerus,
Te martyrum candidatus
laudat exercitus.
Te per orbem terrarum
sancta confitetur Ecclesia,
Patrem
immensae maiestatis;
venerandum tuum verum
et unicum Filium;
Sanctum quoque
Paraclitum Spiritum.


A Vós, o glorioso coro dos Apóstolos, 
A Vós, a imensa multidão dos Profetas, 
A Vós, o exército dos mártires, 
entoam excelsos louvores.
A Vós, por toda a terra, 
aclama a Santa Igreja: 
Pai da infinita majestade,
Vos adoramos 
e ao Vosso Filho único e verdadeiro
e ao Espírito Santo Paráclito.


Tu rex gloriae, Christe.
Tu Patris sempiternus es Filius.
Tu, ad liberandum suscepturus hominem,
non horruisti Virginis uterum.
Tu, devicto mortis aculeo,
aperuisti credentibus regna caelorum.
Tu ad dexteram Dei sedes,
in gloria Patris.
Iudex crederis
esse venturus.


Vós sois o Rei da glória, ó Cristo. 
Filho sempiterno [eterno] do Pai 
que, para libertar e resgatar o homem, 
não negastes o ventre materno [a condição humana].
Vós, que vencestes o aguilhão da morte,
selastes aos crentes o Reino dos Céus, 
Vós que estais sentado à direita
na glória do Pai,
prescrito como o juiz que há de vir.

Te ergo quaesumus, tuis famulis subveni,
quos pretioso sanguine redemisti.
Aeterna fac
cum sanctis tuis in gloria numerari.
Salvum fac populum tuum, Domine,
et benedic hereditati tuae.
Et rege eos,
et extolle illos usque in aeternum.


A Vós, rogamos socorrer Vossos filhos,
que remistes com o Vosso preciosíssimo Sangue
Contai-os na eterna glória
com todos os Vossos santos
salvai o Vosso povo, ó Senhor,
e o abençoai como Vossa herança
e apascentai-o
e o elevai convosco por toda a eternidade.


Per singulos dies
benedicimus te;
et laudamus nomen tuum in saeculum,
et in saeculum saeculi.
Dignare, Domine, die isto
sine peccato nos custodire.
Miserere nostri, Domine,
miserere nostri.
Fiat misericordia tua, Domine, super nos,
quem ad modum speravimus in te.
In te, Domine, speravi:
non confundar in aeternum.

Ao longo de cada dia,
Vos bendizemos
e louvamos Vosso Nome agora
e pelos séculos dos séculos.
Dignai-Vos, ó Senhor, neste dia
guardar-nos sem pecado.
Tende misericórdia de nós, Senhor, 
tende misericórdia.
Que a Vossa misericórdia, Senhor, 
derrame sobre nós, 
como a esperamos de Vós. 
Em Vós, ó Senhor, esperamos: 
não seremos confundidos na eternidade.


terça-feira, 11 de junho de 2019

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

O homem é criado para louvar, prestar reverência e servir a Deus Nosso Senhor e, mediante isso, salvar a sua alma; e as outras coisas sobre a face da Terra são criadas para o homem, para que o ajudem na prossecução do fim para que é criado. Assim o homem tanto há de usar delas quanto o ajudem para o seu fim e tanto afastar-se delas quanto para isso o impedem. Pelo que é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas, em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre-arbítrio, e não lhe está proibido; de tal maneira que não queiramos da nossa parte mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que vida curta e, consequentemente, em tudo o mais; mas somente desejando e elegendo o que mais nos conduz ao fim para o que fomos criados.

(Santo Inácio de Loyola)

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (III)


Nesta terceira parte do sermão, o Pe. Antônio Vieira demonstra que quando a Palavra de Deus não dá fruto não é por causa de Deus e nem por culpa dos ouvintes.

III

Fazer dar pouco fruto a palavra de Deus no mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. 

Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro de si e se ver a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender o que falta? Por parte do ouvinte, por parte do pregador ou por parte de Deus?

Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino; e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? A primeira perdeu-se porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos ou porque falta ou sobeja a chuva ou porque falta ou sobeja o sol. 

Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus nunca é por falta do Céu; sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquecer e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos [pois faz nascer o sol para os bons e para os maus e chover sobre os justos e os ímpios]. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? [o que tive de fazer por minha vinha e não fiz? (Is 5,4)] disse o mesmo Deus por Isaías.

Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fosse por parte dos ouvintes, não daria a palavra de Deus muito grande fruto; mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.

Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o vemos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud [cresceram juntos os espinhos e a sufocaram (a semente de trigo)]. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit [e ao nascer, secou]. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum [e nasceu e produziu fruto cem por um]. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. 

Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus são as pedras e os espinhos. E por quê? - os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes porque vêm só a ouvir subtilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos e, às vezes, também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas [outra parte caiu entre espinhos]: o trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. 

Mas os de vontades endurecidas ainda são piores porque um entendimento agudo pode ser ferido pelos mesmos fios e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Ó Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae - Induratum est cor Pharaonis [batendo a vara na pedra duas vezes, irromperam águas em abundância (Nm 20, 11) - endureceu-se o coração do Faraó (Ex 7,13)]. E mesmo os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas sendo os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos e, apesar da dureza, nasce nas pedras.

Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho porque não cortar os espinhos e não arrancar as pedras antes de semear, mas por princípio deixou no campo as pedras e os espinhos para que se visse a força do que semeava. É tanta a força da divina palavra que, sem cortar nem aparar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra que, sem arrancar nem deslocar as pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos; corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.

Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar hoje por entre os arbítrios dos homens e nem nascer nos corações, não é por culpa e nem por indisposição dos ouvintes. Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não ficam nem por parte de Deus nem por parte dos ouvintes segue-se, por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.

(Sermão da Sexagésima- Parte III, Pe. Antônio Vieira)