sexta-feira, 22 de abril de 2016

SERMÕES DO CURA D'ARS (V)

SOBRE O AMOR DE DEUS

O nosso corpo é um vaso de corrupção; é para a morte e para os vermes, tão só... E, entretanto nós nos aplicamos a satisfazê-lo antes que a enriquecer a nossa alma, que é tão grande que nada se pode imaginar de maior: não, nada, nada. Porquanto vemos que Deus, premido pelo ardor de sua caridade, não nos quis criar semelhantes aos animais; criou-nos à sua imagem e semelhança, vedes! Ó como o homem é grande!

O homem criado por amor não pode viver sem amor: ou ama a Deus, ou se ama e ama o mundo. Vede, meus filhos é a fé que falta. Quando o homem não tem fé, é cego. Aquele que não vê não conhece; o que não conhece não ama; o que não ama a Deus ama-se a si próprio e ao mesmo tempo ama os seus prazeres. Apega o coração a coisas que passam como fumo. Não pode conhecer nem a verdade nem bem algum; só pode conhecer a mentira porque não tem a luz; está na névoa. Se tivesse a luz, veria bem que tudo o que ele ama só lhe pode dar a morte eterna; é um antegozo do inferno.

Fora de Deus, como vedes, meus filhos, nada é sólido, nada, nada! Se é a vida, passa; se é a fortuna, desmorona-se; se é a família, é destruída; se é a reputação, é atacada. Nós vamos como o vento. Tudo passa com velocidade, tudo se precipita. Ah! Meu Deus, meu Deus! Como são, pois, para lastimar esses que põem o seu afeto em todas essas coisas! Põem-no, porque se amam demasiado; mas não se amam com amor razoável; amam-se com o amor de si mesmos e do mundo, procurando-se e procurando as criaturas mais do que a Deus. É por isto que nunca estão contentes, nunca tranquilos; estão sempre transtornados.

Vedes, meus filhos, o bom cristão percorre o caminho deste mundo montado num belo carro de triunfo; esse carro é puxado pelos anjos, e é Nosso Senhor quem o conduz; ao passo que o pobre pecador é atrelado ao carro da vida, e o demônio, que está na direção, o força a avançar a largas chicotadas.

Meus filhos, os três atos de fé, de esperança e de caridade encerram toda a felicidade do homem na terra. Pela fé nós cremos aquilo que Deus nos prometeu, cremos que o havemos de ver um dia, que o possuiremos, que estaremos eternamente com ele no Céu. Pela esperança guardamos o efeito dessas promessas: esperamos que seremos recompensados de todas as nossas boas ações, de todos os nossos bons pensamentos, de todos os nossos bons desejos; pois Deus leva em conta mesmo os bons desejos. Que mais é preciso para ser feliz?

No Céu, a fé e a esperança não existirão mais; porquanto as névoas que nos obscurecem a razão serão dissipadas. O nosso espírito terá a inteligência das coisas que lhe são ocultas neste mundo. Não esperaremos mais nada, visto que teremos tudo. Ninguém espera adquirir um tesouro que possui. Mas o amor! Ó seremos inebriados dele, seremos afogados, perdidos nesse oceano de amor divino, aniquilados nessa imensa caridade do Coração de Jesus! Por isto a caridade é um antegozo do Céu. Se soubéssemos compreendê-la, senti-la, saboreá-la, como seríamos felizes! O que faz que sejamos infelizes é não amarmos a Deus.

Quando dizemos: 'Meu Deus, eu creio! Creio firmemente, isto é, sem a menor dúvida, sem a menor hesitação...' Se nos compenetrássemos destas palavras: 'Creio firmemente que estais presente em toda parte, que me vedes, que estou debaixo dos Vossos olhos, que um dia Vos verei claramente eu próprio, que gozarei de todos os bens que me haveis prometido! Meu Deus, espero que me recompenseis de tudo o que eu tiver feito para Vos agradar! Meu Deus, eu Vos amo! Tenho um coração para vos amar!" Como este ato de fé, que é também um ato de amor, bastaria para tudo! Se compreendêssemos a ventura que temos de poder amar a Deus, ficaríamos imóveis no êxtase...

Se um príncipe, um imperador, fizesse comparecer perante si um de seus súditos e lhe dissesse: 'Quero fazer a tua felicidade; fica comigo, goza de todos os meus bens; mas cuida de não me desagradares em tudo o que for justo': que cuidado, que ardor esse súdito não poria em satisfazer o seu príncipe! Pois bem! Deus faz-nos os mesmos oferecimentos e nós não nos preocupamos com a sua amizade e não fazemos nenhum caso das suas promessas... Como é possível?

(Excertos da obra 'Pequeno Catecismo', do Cura D'Ars)

quinta-feira, 21 de abril de 2016

DOZE GRAUS DE HUMILDADE, DOZE GRAUS DE SOBERBA...

Os Doze Graus da Humildade

I - Abster-se por temor a Deus a todo o momento de qualquer pecado.

II - Não amar a própria vontade.

III - Submeter-se aos superiores com toda a obediência.

IV - Abraçar por obediência e pacientemente as coisas ásperas e duras.

V - Confessar os seus pecados.

VI - Julgar-se indigno e inútil para tudo.

VII - Reconhecer-se como o mais humilde de todos.

VIII - Não sair da norma comum do mosteiro.

IX - Esperar ser questionado para falar.

X - Não ser de riso fácil.

XI - Expressar-se com parcimônia e judiciosamente sem erguer a voz.

XII - Mostrar sempre humildade no coração e no corpo, com os olhos no chão.


Os Doze Graus da Soberba

I - A curiosidade que lança os olhos e demais sentidos a coisas que não lhe interessam.

II - A ligeireza de espírito que se manifesta na indiscrição de palavras, ora tristes, ora alegres.

III - A alegria tonta que estala em riso ligeiro.

IV - A jactância que se torna patente ao muito falar.

V - A singularidade que tudo procura para a sua própria glória.

VI - A arrogância pelo que um se crê mais santo que os outros.

VII - A presunção de quem se intromete em tudo.

VIII - A desculpa para os pecados.

IX - A confissão fingida, que se descobre quando se lhe manda fazer coisas ásperas e duras.

X - A rebelião contra o Mestre e os Irmãos.

XI - A liberdade de pecar.

XII - O costume de pecar.

(São Bernardo de Claraval)

terça-feira, 19 de abril de 2016

ORAÇÃO DE SÃO PATRÍCIO


Levanto-me, neste dia que amanhece,
Por uma grande força, pela invocação da Trindade,
Pela fé na Tríade,
Pela afirmação da unidade
Do Criador da Criação.

Levanto-me neste dia que amanhece,
Pela força do nascimento de Cristo em Seu batismo,
Pela força da crucificação e do sepultamento,
Pela força da ressurreição e ascensão,
Pela força da descida para o Julgamento Final.

Levanto-me, neste dia que amanhece,
Pela força do amor dos Querubins,
Em obediência aos Anjos,
A serviço dos Arcanjos,
Pela esperança da ressurreição e da recompensa,
Pelas orações dos Patriarcas,
Pelas previsões dos Profetas,
Pela pregação dos Apóstolos
Pela fé dos Confessores, 
Pela inocência das Virgens santas,
Pelos atos dos Bem-aventurados.

Levanto-me neste dia que amanhece,
Pela força do céu:
Luz do sol,
Clarão da lua,
Esplendor do fogo,
Pressa do relâmpago,
Presteza do vento,
Profundeza dos mares,
Firmeza da terra,
Solidez da rocha.

Levanto-me neste dia que amanhece,
Pela força de Deus a me empurrar,
Pela força de Deus a me amparar,
Pela sabedoria de Deus a me guiar,
Pelo olhar de Deus a vigiar meu caminho,
Pelo ouvido de Deus a me escutar,
Pela palavra de Deus em mim falar,
Pela mão de Deus a me guardar,
Pelo caminho de Deus à minha frente,
Pelo escudo de Deus que me protege,
Pela hóstia de Deus que me salva,
Das armadilhas do demônio,
Das tentações do vício,
De todos que me desejam mal,
Longe e perto de mim,
Agindo só ou em grupo.

Conclamo, hoje, tais forças a me protegerem contra o mal,
Contra qualquer força cruel que ameace meu corpo e minha alma,
Contra a encantação de falsos profetas,
Contra as leis negras do paganismo,
Contra as leis falsas dos hereges,
Contra a arte da idolatria,
Contra feitiços de bruxas e magos,
Contra saberes que corrompem o corpo e a alma.

Cristo guarde-me hoje,
Contra veneno, contra fogo,
Contra afogamento, contra ferimento,
Para que eu possa receber e desfrutar a recompensa.
Cristo comigo, Cristo à minha frente, Cristo atrás de mim,
Cristo em mim, Cristo embaixo de mim, Cristo acima de mim,
Cristo à minha direita, Cristo à minha esquerda,
Cristo ao me deitar,
Cristo ao me sentar,
Cristo ao me levantar,
Cristo no coração de todos os que pensarem em mim,
Cristo na boca de todos que falarem em mim,
Cristo em todos os olhos que me virem,
Cristo em todos os ouvidos que me ouvirem.

Levanto-me, neste dia que amanhece,
Por uma grande força, pela invocação da Trindade,
Pela fé na Tríade,
Pela afirmação da Unidade,
Pelo Criador da Criação.

(a ser rezada pela manhã)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

DO SANGUE E DA ÁGUA DO LADO DE CRISTO

Se quisermos entender o poder do sangue de Cristo, devemos voltar à antiga narração da sua prefiguração no Egito: 'Sacrifica um cordeiro sem mancha', ordenou Moisés, 'e asperge tuas portas com o seu sangue'. Se lhe perguntássemos o que ele quis dizer, e como o sangue de um ser irracional poderia possivelmente salvar os homens providos de razão, sua resposta seria que o poder de salvar não reside no sangue em si, mas no fato de que ele é um sinal do sangue do Senhor. 

Naqueles dias, quando o anjo destruidor viu o sangue nas portas, ele não ousou entrar, então quanto menos o demônio se aproximará agora quando ele vê, não o sangue figurativo nas portas, mas o verdadeiro sangue nos lábios dos crentes, as portas do templo de Cristo. Se desejas mais provas do poder deste sangue, lembra donde veio ele, como verteu da cruz, fluindo do lado do Mestre. 

O evangelho lembra que, quando Cristo estava morto, mas ainda pendendo da Cruz, um soldado veio e transpassou o seu lado com uma lança e, imediatamente, saíram sangue e água. Então a água foi um símbolo do batismo, e o sangue, da santa Eucaristia. O soldado transpassou o lado do Senhor, rompeu o muro do templo sagrado, e eu encontrei o tesouro e apossei-me dele. O mesmo com o cordeiro: os judeus sacrificaram a vítima e eu fui salvo por ela.

'Saíram do seu lado água e sangue'. Amado, não passes ao largo desse mistério sem refletir; ele tem ainda mais um sentido oculto, que te explicarei. Eu disse que água e sangue simbolizavam o batismo e a santa Eucaristia. Desses dois sacramentos, a Igreja nasceu: do batismo, 'a água purificadora que faz renascer e renovar pelo Espírito Santo', e da santa Eucaristia. Já que os símbolos do batismo e da Eucaristia fluíram do seu lado, foi do seu lado que Cristo formou a Igreja, como formara Eva do lado de Adão. 

Moisés dá uma ideia disso quando conta a história do primeiro homem e fá-lo exclamar: 'Osso dos meus ossos e carne da minha carne!'. Como Deus tomou uma costela do lado de Adão para formar uma mulher, assim Cristo deu-nos sangue e água do seu lado para formar a Igreja. Deus tirou a costela quando Adão estava num sono profundo, e, do mesmo modo, Cristo deu-nos o sangue e a água após a sua própria morte.

Entendes, então, como Cristo uniu sua esposa a si mesmo, e que alimento ele nos dá a todos para comer? Por um e o mesmo alimento nós somos trazidos à existência e nutridos. Como uma mulher nutre seu filho com seu próprio sangue e leite, assim Cristo incessantemente nutre com seu próprio sangue aqueles a quem ele mesmo deu a própria vida.

(Das catequeses de São João Crisóstomo)

domingo, 17 de abril de 2016

O BOM PASTOR

Páginas do Evangelho - Quarto Domingo da Páscoa


No Quarto Domingo da Páscoa, ressoa pela cristandade a imagem e a missão do Bom Pastor: 'As minhas ovelhas escutam a minha voz; eu as conheço e elas me seguem. Eu dou-lhes a vida eterna e elas jamais se perderão. E ninguém vai arrancá-las de minha mão' (Jo 10, 27-28). Jesus, o Bom Pastor, conhece e ama, com profunda misericórdia, cada uma de suas ovelhas desde toda a eternidade. 

Criadas para o deleite eterno das bem-aventuranças, redimidas pelo sacrifício do calvário e alimentadas pela sagrada eucaristia, Jesus acolhe as suas ovelhas com doçura extrema e infinita misericórdia. E com ânsias de posse calorosa e zelo desmedido: 'Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai. Eu e o Pai somos um' (Jo 10, 29-30). 

Nada, nem coisa, nem homem, nem demônio algum, poderá nos apartar do amor de Deus. Porque este amor, sendo infinito, extrapola a nossa condição humana e assume dimensões imensuráveis. Ainda que todos os homens perecessem e a humanidade inteira ficasse reduzida a um único homem, Deus não poderia amá-lo mais do que já o ama agora, porque todos nós fomos criados, por um ato sublime e extraordinariamente particular da Sua Santa Vontade, como herdeiros dos céus e para a glória de Deus: 'Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas. A Ele a glória por toda a eternidade!' (Rm 11, 36).

Jesus toma sobre os ombros a ovelha de sua predileção, cada um de nós, a humanidade inteira, para a conduzir com segurança às fontes da água da vida (Ap 7, 17), onde Deus enxugará as lágrimas dos nossos olhos. Reconhecer-nos como ovelhas do rebanho do Bom Pastor é manifestar em plenitude a nossa fé e esperança em Jesus Cristo, Deus Único e Verdadeiro, cuja bondade perdura para sempre e cujo amor é fiel eternamente (Sl 99,5). Como ovelhas do Bom Pastor, não nos basta ouvir somente a voz da salvação; é preciso segui-Lo em meio às provações da nossa humanidade corrompida, confiantes e perseverantes na fé, até o dia dos tempos em que estaremos abrigados eternamente na tenda do Pai, lavados e alvejados no sangue do cordeiro (Ap 7, 14b).  

sábado, 16 de abril de 2016

A MEDIDA DO PERDÃO


Mamãe, me falaram que não nasci porque você fez as suas escolhas.
Que você tinha o direito de decidir, de escolher.
De não me escolher.
E decidiu assim porque era o melhor a fazer.
Que não era a hora.
Que eu seria um peso enorme, uma alternativa errada, uma coisa indesejada.
Uma coisa que deveria ser abortada.

Mamãe, me falaram que eu não tenho direito nenhum,
que, na verdade, eu não sou nada.
Apenas um feto desprovido de emoções, de sensações, de reações.
Mas, isso não é verdade, mamãe, eles estão errados,
eu era com você dois corações. Dois corações.
Senti o seu calor. Senti o seu desconforto. E senti dor, muita dor.

Mamãe, me falaram para que não falasse por mim.
Que eu fosse apenas o que todos imaginam o que eu fui: um nada.
E que eu sou apenas mais uma pessoa que não existiu
porque alguém decidiu isso por mim.
E esse alguém foi você, que eu chamo de mamãe.
Eu não tenho nem um nome,
você sabe como teria me chamado, mamãe?

Mas eu quis voltar para você ainda que apenas em pensamento
para murmurar carinho e afeição ao seu ouvido,
para acalentar a sua aflição,
para estancar a sua dor.
Porque eu não entendo nada de escolhas, mamãe, nada mesmo,
mas aprendi aqui, do outro lado,
o que significa o perdão
e a medida do amor sem medidas.

(Arcos de Pilares)

sexta-feira, 15 de abril de 2016

TANTUM QUANTUM

Eu não existia... Deus me criou; não podia continuar a existir por mim mesmo. Deus me tem conservado: logo sou todo seu. Entregar-me-ei em suas mãos sem reservas. 'Entrego-me nas vossas mãos, com confiança, como um pouco de barro, fazei de mim um homem novo!' Que fim nobre é o meu! A felicidade de Deus consiste em amar a si mesmo e este amor é também um objeto de minha felicidade. Ó liberalidade infinita de Deus: a alma no céu ficará saturada de gozo, não pode imaginar um prazer que não possua. Para um fim sobrenatural, é necessário viver uma vida sobrenatural; todas as minhas ações, palavras e pensamentos devem ser dirigidos pelo sobrenatural: ser o homem sobrenatural. 

Eis o ideal! Mas se o homem não alcançar o seu fim será lançado no inferno por toda a eternidade... desespero eterno; sem um momento de descanso, de felicidade. E eu me salvarei? Com tantos pecados? Que dúvida terrível! No entanto, posso assegurar a minha salvação e nela cuido tão pouco. A minha vocação à Companhia é uma prova não só de que Deus quer me salvar, mas que quer me salvar com perfeição. Se queres entrar na vida observa os mandamentos: os mandamentos, os votos, as regras, as ordens dos superiores, eis como posso assegurar a minha salvação: na sua perfeita observância. Ânimo e coragem! Um fim tão nobre merece que se empreguem todos os meios. E todas as mais criaturas Deus criou para a consecução do meu fim e para que eu O glorifique por meio delas. As criaturas me ajudarão: i) buscando nelas o seu Criador pela contemplação; ii) usando delas moderadamente; iii) abstendo-me daquelas que prejudicam a minha salvação. Reta intenção antes de usar qualquer criatura. 

Para observar a lei do uso das criaturas necesse est facere nos indifferentes. Durante a explicação dos pontos, parece-me que compreendi a necessidade e os bens desta indiferença. Na vida prática e cotidiana como tem lugar a aplicação deste facere indifferentes. É uma conclusão lógica do que ficou atrás: fui criado por Deus, devo servi-lo e para este fim usar das criaturas tantum quantum. Ora, a respeito do uso de algumas, não sei quanto e quando me ajudam à consecução do meu fim. Logo, devo estar indiferente. É necessário. Sem esta indiferença, a vida religiosa toma-se pesada, custe embora à natureza nada lhe devo conceder. Tempo livre, trabalhos manuais, ofício, mudança de horário, em tudo a aplicação prática do necesse est facere nos indifferentes. Não só nisto mas também nas coisas espirituais, na oração, facere nos indifferentes, quanto à consolação ou à desolação. 

Persuadi-me intimamente que não devo servir a Deus como eu quero, mas como Ele quer, e a Sua vontade se manifesta pelo superior, qualquer que seja ele. Esta indiferença pode ser matéria de meditações e reformas com muita aplicação na vida prática, desejando e escolhendo aquilo que mais conduz ao fim. Em geral são as coisas da natureza que mais nos ajudam à consecução do nosso fim; estas, é lícito desejar a procurar não tendo nada em contrário manifestado pela obediência. Eis o ideal do jesuíta: homens crucificados para o mundo e para os quais o mundo seja também crucificado, tais devemos ser por obrigação do nosso estado. Que perfeição exige de mim a Companhia! Como tenho me ocupado pouco em alcançar as sólidas e verdadeiras virtudes! Determinei usar dos meios que a Companhia me oferece: oração, exame geral e particular, leituras, exercícios espirituais, renovação semestral, reforma mensal, sacramentos etc. e com tantos meios não chegarei à perfeição de meu estado? Um jesuíta perfeito, igual em tudo a si mesmo! 

Todas as criaturas já estão no mundo. Deus forma o primeiro homem, dá-lhe uma alma racional e colocando-o no paraíso lhe diz: 'Tu me glorificarás, por meio destas criaturas; criei-as para te servirem de meio ao teu fim que é servir-me'. E o homem usa das criaturas para seu deleite e prazer, põe nelas o seu fim! Que loucura! O que não me conduz ao meu fim devo deixar, embora agrade à natureza. Se Deus não tivesse usado de misericórdia comigo eu estaria no inferno. Quantos pecados Deus suportou e não me castigou! 

Mas não só não estou no inferno. Estou na Companhia. Que ingratidão se não correspondo à minha vocação; uma vida de mediocridade não basta, é necessário ser santo. Devo trazer sempre à memória os meus pecados, como um estímulo e aguilhão para me levar à perfeição. Senti uma dor viva dos meus pecados. No colóquio me dava grande fervor e consolação imaginar-me aos pés de Jesus Crucificado, abraçando-o como Madalena e o seu sangue me lavara toda a alma. Senti vivamente a bondade divina. Que misericórdia! Jesus, meu Pai, meu amor! Será possível que Vós me não tivésseis perdoado depois de me fazer sentir o que senti? Jesus, continue a usar comigo a vossa misericórdia. Manda-me qualquer castigo, tudo é pouco em relação ao número e enormidade de meus pecados. Perdão, meu amado Jesus!

Impressionou-me nesta meditação, principalmente, os tormentos da vida e dos ouvidos. Milhões e milhões de condenados agitando-se em convulsões horrorosas, o desespero transparecendo no rosto, os cabelos eriçados como outras tantas víboras. Que espetáculo! Resolvi observar com rigor a regra da modéstia para de algum modo satisfazer os pecados que cometi com a vista. Os ouvidos são atormentados por uma gritaria de desespero, imprecações, injúrias e blasfêmias contra Jesus e Maria. Se Deus não houvesse usado de misericórdia para comigo, estaria agora ouvindo blasfêmias contra Jesus e contra minha boa mãe, Maria. Que gratidão não devo mostrar para com Deus. Ó pecado, como és um grande mal, pois mereces tamanho castigo. Um castigo eterno! Passam-se mil anos, um milhão de milhões de anos e ainda está no seu princípio. Como por um prazer instantâneo me hei de por em perigo de ir ao inferno. Ah, não, com o auxílio de Deus, não cometerei nunca um pecado mortal!

(Excertos da obra 'Exercícios Espirituais' do Pe. Leonel Franca)